O PARTIDO COMUNISTA CHINÊS – PARTIDO PROLETÁRIO?

O Partido Comunista Chinês foi fundado em 1921 sob a égide da recém-criada Internacional Comunista (Comintern). Em seu congresso de fundação contava com apenas 50 militantes, a grande maioria de origem intelectual pequeno-burguesa. O Partido só conseguiu adquirir uma cor mais proletária a partir de 1926, aplicando a linha do Comintern de participar da frente-única do Kuomintang na revolução democrática em curso. De 1926 a 1927 o PCCh viveu um crescimento espetacular, passando de 900 para 57.900 militantes. A composição social do Partido também melhorou sensivelmente, chegando a 58.070 de operários nesse ano. Ainda em 1927, Chiang Kai-shek, principal dirigente do Kuomintang promoveu um massacre de comunistas, assassinando milhares e milhares de militantes nas principais cidades chinesas. Assim, ainda jovem, o PCCh teve de refluir para o campo em face da derrota da revolução nas cidades e da sanha repressiva da reação.

Este processo provocou uma brusca alteração na composição social do PCCh, que se tornou um partido de base essencialmente camponesa. Já em 1929, o número total de operários no Partido caiu para apenas 4.000. Dos 58% de operários que tinha em 1927, passou a mais de 90% de camponeses na década de 1930. Em 1949, ano da Libertação, a porcentagem de operários no Partido estava reduzida a 3%.

A fraca formação marxista da direção do PCCh, composta na sua maior parte por intelectuais, tornou-a especialmente vulnerável à pressão da ideologia pequeno-burguesa do campesinato. Desse modo, já na década de 1930, Mao Tsetung elaborava a linha de "cerco das cidades pelo campo" na revolução chinesa, encarando na prática o campesinato não só como força principal da luta revolucionária, mas também como força dirigente da revolução.

Fruto desta política, o PCCh praticamente abandonou o trabalho entre as massas operárias urbanas. Durante toda a prolongada guerra de libertação, a mobilização independente do proletariado ficou restrita a ações insignificantes de cunho meramente defensivo. A classe operária, que embora pequena representava o que havia de mais avançado na sociedade chinesa, assistiu à Libertação como mera espectadora, vendo-se por isso impedida de erguer no curso da luta seus próprios órgãos de poder.

A pressão da ideologia pequeno-burguesa afetou também a política de organização do Partido que, desde cedo, foi marcado por profundas lutas internas. O PCCh caracterizou-se pela existência de várias alas e frações em seu seio, com orientações e plataformas inteiramente diferentes e até contraditórias. O Partido se abriu para abarcar os interesses de diferentes classes e frações de classes não proletárias. O próprio Mao viria depois tentar justificar teoricamente essa situação com a tese de que sempre coexistiriam no seio do Partido Comunista pelo menos duas alas antagônicas estruturadas – uma "socialista-proletária" e outra "capitalista-burguesa". Na prática, a política do PCCh era determinada pelos compromissos e acordos entre as diversas alas sob os auspícios de Mao.

O PCCh, portanto, afastava-se dos princípios leninistas de um autêntico partido proletário. A agremiação que encabeçou a vitoriosa revolução chinesa em 1949 se assemelhava muito mais a uma frente de libertação nacional, abarcando diferentes interesses de classes e inspirando-se fundamentalmente na ideologia nacionalista do campesinato.

A REVOLUÇÃO NACIONAL E DEMOCRÁTICA NA CHINA

A libertação da China constituiu um poderoso golpe no imperialismo. A liquidação da dominação do capital estrangeiro e de seus associados capitalistas e latifundiários locais acarretou enormes benefícios para o povo chinês e serviu de poderoso impulso às lutas antiimperialistas dos povos de todo o mundo. Mas não se tratava ainda de uma revolução socialista. O alvo da luta era as estruturas imperialistas-feudais que mantinham o país no mais completo atraso. A passagem para o socialismo dependia de o proletariado se tornar a força hegemônica no processo revolucionário.

Os períodos da reconstrução nacional (1949-1952) e do primeiro Plano Qüinqüenal (1953-1957) completaram na China as tarefas nacionais e democráticas da revolução. Foram expropriadas todas as empresas dos capitalistas estrangeiros e dos burgueses chineses a eles associados. Somadas às empresas estatais já existentes no governo Kuomintang, isto levou à formação de um poderoso setor estatal da indústria que, em 1956, abarcava 67,5% da produção industrial global. Paralelamente, desenvolveu-se o setor misto estatal privado da indústria, enquanto o setor privado não estatal deixava de existir.

No campo, uma ampla reforma agrária já em 1949, repartiu as terras dos latifundiários entre os camponeses que compunham 90% da população do país. A partir do final de 1955, eclodiu um movimento cooperativista calcado fundamentalmente nos camponeses pobres e nas camadas mais baixas dos camponeses médios, que abarcavam ao todo de 60% a 70% da população rural.
Em menos de um ano, este movimento tomou conta do campo da China. Só de novembro de 1955 a janeiro de 1956 quase metade do total de explorações agrícolas do país foi agrupada em cooperativas. Mais adiante veremos sobre que bases se assentava a instalação tão rápida de cooperativas agrícolas.

ERA A CHINA UM PAÍS SOCIALISTA?

Os dirigentes chineses argumentam que, com a eliminação do setor privado não estatal na indústria e a instalação de cooperativas agrícolas, a China completou a transição ao socialismo em 1956. Vamos nos deter aqui para analisar essa questão com mais cuidado.

Para empreender a passagem ao socialismo, era necessário se apoiar na grande indústria moderna do setor estatal para eliminar os elementos capitalistas na cidade e no campo. Desenvolvendo ao máximo a indústria pesada, se garantiria a base objetiva para o desenvolvimento proporcional, harmônico e planificado da economia em longo prazo. É esta inclusive a superioridade básica do sistema socialista, que permite a elevação geométrica da capacidade produtiva do país e do bem-estar do povo.

Em 1956 um grande movimento se ergue entre os capitalistas privados no sentido de ampliar e defender seu capital contra o crescimento da indústria estatal. Partiu dos próprios capitalistas, na sua maior parte ligados à indústria ligeira, a exigência de se associar ao Estado e transferir suas empresas do setor não estatal para o setor estatal, privado, ou misto. Em janeiro de 1956, 77% das empresas industriais não estatais se transformaram em empresas de economia mista. Em março do mesmo ano 88% e, em junho, chegou a mais de 97%. No final desse ano, 70 mil empresas industriais não estatais haviam sido transformadas em empresas mistas, representando 99,6% do valor global de produção das antigas empresas privadas e 32,5% da produção industrial global da China.

Vê-se que a eliminação do setor privado não estatal representou, na verdade, um fortalecimento dos elementos capitalistas na economia chinesa. Não só os capitalistas continuavam administrando suas empresas como ampliavam o capital à sua disposição e ainda recebiam um dividendo fixo anual de 5% do ativo da empresa qualquer que fosse o lucro desta.

É importante ressaltar que este processo de fortalecimento dos segmentos capitalistas na cidade ocorre paralelamente ao movimento cooperativista no campo. Do ponto de vista socialista, o impulso à instalação de cooperativas seria louvável desde que associado à perspectiva proletária de priorizar a indústria pesada para promover a mecanização em larga escala da agricultura. Ou seja, desde que a classe operária se afirmasse como força dirigente na aliança operário-camponesa. Mas o que presidiu o impulso cooperativista foi o imediatismo dos setores menos favorecidos do campesinato. Em 1956 o trabalho manual continuava sendo a base da produção agrícola. A superfície cultivada com a ajuda de energia mecânica representava menos de 10% do total e a área irrigada menos de 7%. Assim, o movimento cooperativista acabou sendo mais uma fonte de pressão sobre o PCCh, para que este revertesse investimentos aplicados na grande indústria, para dispersá-los entre as cooperativas.

Esta pressão dos segmentos burgueses e pequeno-burgueses se viu reforçada com a ascensão de Kruschev ao poder na URSS. Os dirigentes chineses acolheram com entusiasmo no primeiro momento as teses revisionistas do XX Congresso do PCUS. Estas inclusive serviram de base para os trabalhos do 8º Congresso do PCCh no final de 1956. Precisamente em maio desse ano Mao Tsetung publicou seu texto Sobre as Dez Grandes Relações com críticas à construção do socialismo na URSS e defendendo uma prioridade maior para a agricultura e para a indústria ligeira. Em fevereiro de 1957 ele publica Sobre o Tratamento Correto das Contradições no Seio do Povo, no qual afirma que havia uma contradição entre o proletariado e a burguesia não antagônica na China.

Assim, a conjugação de forças internas e externas enterrava no nascedouro qualquer perspectiva de passagem ao socialismo. Todo desenvolvimento posterior da República Popular passaria a ser marcado pela disputa de hegemonia entre as diversas orientações burguesas e pequeno-burguesas no interior do Partido, do Estado e do Exército.

O GRANDE SALTO… NO FOSSO

De imediato, as forças pequeno-burguesas é que levaram a melhor. Em 1958, o Partido lança a política do "Grande Salto", que promete ao povo "trocar uns quantos anos de árduo trabalho por dez mil anos de felicidade".

Os objetivos do "Grande Salto" eram absolutamente delirantes – previa-se para o período de 1958 a 1962, referente ao segundo plano qüinqüenal, um aumento de 650% na produção industrial e de 250% na produção agrícola. Este crescimento se basearia na idéia de descentralizar a economia em unidades comunais auto-suficientes de base camponesa, as Comunas Populares, que possuiriam suas próprias indústrias de pequeno porte. Em agosto de 1958, 740 mil cooperativas agrícolas já haviam sido transformadas em 26 mil Comunas Populares com 120 milhões de explorações agrícolas.

Cada Comuna tinha em média 5 mil explorações com 26 mil pessoas e cerca de 4 mil hectares de terra arável. Durante os nove primeiros meses de 1958 foram criadas nada menos de 7 milhões e 500 mil pequenas empresas industriais, 6 milhões das quais pertencentes às Comunas Populares. Mais da metade dos investimentos básicos na indústria em 1958 se destinou à montagem dessas pequenas empresas, o que levou a uma brutal descentralização da economia.

Na empolgação desse "socialismo agrário-camponês", o sistema de pagamento por jornada de trabalho foi substituído por um novo sistema de distribuição que combinava o salário com o abastecimento gratuito de alimentos e bens de primeira necessidade. Dentro de poucos meses em 1958, 500 milhões de camponeses passaram a se alimentar gratuitamente à custa da produção agro-pecuária das Comunas. O abastecimento gratuito de alimentos drenava 70% dos fundos de consumo das Comunas Populares. A isto os dirigentes chineses chamaram "embrião do comunismo".
Este aventureirismo pequeno-burguês teve conseqüências catastróficas para a economia chinesa. A produção das novas micro-empresas comunais, baseada em métodos primitivos de produção, era na maior parte imprestável. Das mais de 7 milhões criadas, em 1958, só sobravam, em 1969, as 200 mil maiores. A produção de aço caiu de 12 milhões de toneladas em 1959 para 8 milhões em 1961. A maioria das grandes empresas industriais passou a operar com 50% de capacidade ociosa.

Igualmente na agricultura, a política do "Grande Salto" gerou uma profunda crise. A produção agrícola manteve-se em bases extremamente atrasadas. A parte mecanizada da área cultivada não excedia a 10%. A produção de grãos caiu de 250 milhões de toneladas em 1958 para 160 milhões em 1960 e 1961. A partir de 1959 se registrou uma queda na produção agrícola global. Em 1960, a produção agro-pecuária acabou sendo 16% mais baixa do que a de 1957.

Devido à crise provocada pela política pequeno-burguesa do "Grande Salto", as forças burguesas se fortaleceram no interior do Partido e do Estado. Já em 1959, o grupo de Deng Xiao-ping e Liu Shao-shi começa a se impor no interior do PCCh, e Liu é até mesmo nomeado presidente do Estado. Paulatinamente foram sendo revogadas as medidas do "Grande Salto" e esboçou-se uma série de medidas para reestruturar a economia chinesa em bases capitalistas. Em 1966, as forças pequeno-burguesas voltavam à ofensiva com a deflagração da chamada "Revolução Cultural".

"REVOLUÇÃO CULTURAL” E CONTRA-REVOLUÇAO POLITICA

A "Grande Revolução Cultural Proletária" foi um movimento dirigido contra o núcleo burguês que se havia consolidado na direção do PCCh em torno de Liu Shao-shi, Deng Xiao-ping e Peng Chen. No curso da luta, os órgãos do PC Chinês, da Juventude Comunista, do Estado etc. foram praticamente dizimados e a China lançada num período de absoluta anarquia.

Em nível econômico se retomou a política do "Grande Salto" que, mais uma vez, resultou em fracasso. Em 1967 a produção industrial sofreu uma queda de 15 a 20%. Em face disto, as forças burguesas passaram ao contra-ataque. A partir de 1971, vários funcionários destituídos durante a "Revolução Cultural" foram sendo reincorporados às suas funções por ordem expressa de Mao. Entre estes, o próprio Deng Xiaoping que nunca chegou a ser afastado do PCCh e voltou a ocupar posições de alta responsabilidade no Estado.

A morte de Mao em setembro de 1976, figura que até então mantinha a "unidade" das diferentes alas e frações do Partido, empurrou a disputa para seu "desenlace final". Como todos sabem, o núcleo burguês de Deng Xiaoping e Hua Kuo-feng levou a melhor.

CONSOLIDAÇÃO CAPITALISTA A TODO VAPOR

A vitória dessas forças burguesas nos leva ao período de pleno desenvolvimento do capitalismo na China que perdura até hoje. Com base na política das "Quatro Modernizações", lançou-se um ambicioso programa econômico e militar visando a transformar o país numa superpotência expansionista até o final do século. A partir daí a China se integrou por completo ao mercado capitalista ocidental. De uma política que privilegiava os países do chamado "Terceiro Mundo", o comércio externo chinês cresceu dando preferência às potências capitalistas do mundo ocidental. Países como Estados Unidos, Japão, Alemanha Ocidental etc. passaram a abocanhar mais de 80% do comércio externo chinês. O espetacular aumento do comércio EUA-China pode ser visto na tabela. A China também eliminou todas as restrições à penetração do grande capital estrangeiro em sua economia. Para facilitar a contratação de empréstimos junto aos centros financeiros internacionais, tornou-se membro do FMI e do Banco Mundial em 1980. Em março de 1981 o FMI liberou ao seu mais novo membro um empréstimo "stand-by" de 555 milhões de dólares. Em 1984 o Banco Mundial concedeu o seu primeiro empréstimo-jumbo de 1 bilhão de dólares. Ao iniciar a aplicação do 6º Plano Quinquenal em 1981, a direção chinesa afirmou esperar atrair 20 bilhões de dólares em investimentos externos até o final de 1985. GRÁFICO página 19

Outra faceta dessa política de portas abertas é o investimento direto de grandes corporações multinacionais na economia chinesa. Em 1983 havia 188 projetos de joint ventures em operação, associando empresas ocidentais ao capital chinês. Destas, 105 haviam sido montadas nesse mesmo ano, totalizando um investimento externo de 515 milhões de dólares. Ainda em 1983 a empresa norte-americana Minnesota Mining and Manufacturing tornou-se a primeira empresa estrangeira a ser proprietária integral de uma fábrica na China desde a Libertação em 1949. Hoje, 128 empresas norte-americanas já têm escritórios no pais.

A REFORMA CAPITALISTA NA ECONOMIA

Em nível interno, parte das medidas da "Reforma Econômica" seguiu os passos das "Reformas de Kossiguin" implementadas na economia soviética a partir de 1966. O lucro foi reintroduzido como meta central da produção de cada empresa. Expandiu-se a força reguladora do mercado na economia como um todo. Cada unidade de produção passou a gozar de total autonomia. Os poderes de diretores e administradores foram extremamente alargados, a ponto de ter a capacidade de demitir trabalhadores, estipular salários, decidir o tipo de produção da empresa, determinar como e onde seriam aplicados os lucros etc.

Em julho de 1979, 4 mil empresas já estavam operando nas novas condições da "Reforma". Em 1980 esse número subiu para 6 mil, abarcando as mais importantes empresas estatais. Hoje, praticamente a totalidade das empresas já opera segundo os princípios da reestruturação capitalista.
O governo já autorizou também até mesmo a venda de ações por parte das empresas como medida para aumentar seu capital. Em Shangai, antigo centro financeiro antes da Libertação, já se cogita em restabelecer a bolsa de valores.

Outra característica da "Reforma" chinesa tem sido um brutal incentivo à "livre-iniciativa" para a formação de pequenas empresas privadas. Hoje existem centenas de milhares de pequenos empresários capitalistas espalhados pelas cidades da China.

No campo foi introduzido em 1979 o "sistema de responsabilidade agrícola", segundo o qual a maior parte da produção das cooperativas passou a ser dirigida para mercados "livres". Fora isso, foram estendidas as parcelas privadas-individuais de terra dos 800 milhões de camponeses do país. Só de 1978 para 1979 a participação das parcelas individuais no total de terra cultivada passou de 7 para 15% .
Este modelo, a que os dirigentes chineses têm o descaramento de chamar "socialismo de mercado", conduz ao agravamento de problemas como o desemprego e a carestia de vida, além de acentuar a polarização entre ricos e pobres na sociedade chinesa. Segundo dados do Instituto Central de Estatísticas da China, 10% da população no campo não ganham mais de 3,5 dólares por mês (contra uma média nacional de 19 dólares), o que significa que pelo menos 80 milhões de camponeses vivem em condições de pobreza extrema.

EXTRAINDO LIÇÕES

Por todas essas razões, fica evidente não ter sido o socialismo que fracassou na experiência chinesa. A China, na verdade, nunca efetuou de fato a transição ao sistema socialista. O pretenso "fracasso" do socialismo aqui lembra o episódio da batalha de Itararé na Revolução de 1930 no Brasil – "a batalha que não houve". No caso chinês trata-se do "socialismo que não houve".

De todas as lições que se podem tirar desse triste desfecho da monumental revolução chinesa, talvez a mais importante seja a absoluta necessidade da hegemonia do proletariado nas revoluções nacionais e democráticas, para que estas sejam conduzidas com sucesso até a vitória final. Ou a revolução passa da primeira etapa para a etapa socialista, ou ela está fadada a estancar no meio do caminho e regredir. O caso da China revela de maneira contundente a inviabilidade de qualquer projeto pequeno-burguês de transformação. Socialismo ou capitalismo – em última instância são estas as únicas duas opções colocadas para todos os países do mundo de hoje.

EDIÇÃO 10, ABRIL, 1985, PÁGINAS 15, 16, 17, 18, 19, 20