Vamos tratar aqui de duas questões não muito claras na vasta literatura sobre o assunto: a fundamentação teórica e o problema da medição do reais sacrifícios sendo feitos pelo país ao pagar 12 bilhões de dólares anuais de juros.

Somos um país novo, dependente e com pequeno domínio da ciência e da filosofia. Nossa tendência em geral é partir para explicações rápidas e tomar atitudes imediatistas; o empirismo tropical é exuberante. Num período de preparação da Constituinte temos de nos aprofundar: não é hora de "aparar arestas", mas de "mudar a geometria".

Karl Marx, na segunda metade do século passado, levantou os princípios teóricos do sistema capitalista, identificando, entre outros fatores, o papel do crédito e do juro. No século XX Hilferding, Lênin e Keynes trouxeram contribuições para o nosso entendimento.
No terceiro livro de O Capital encontramos, pela primeira vez de forma científica e elaborada, um estudo detalhado sobre o capital financeiro. Vamos escolher alguns pontos-chave dessa argumentação.

O LUCRO E O JURO

A economia capitalista é produtora de mercadorias. A própria força de trabalho é vendida como mercadoria. O capital compra matérias-primas, equipamentos e força de trabalho com dinheiro. Após o ciclo produtivo, as mercadorias resultantes são vendidas tendo como "realização" uma quantidade maior de dinheiro que, por sua vez, é reinjetado na circulação dando origem a um ciclo de "reprodução ampliada". Essa aparente mágica do crescimento do dinheiro é fruto do trabalho humano, mais especialmente de uma parte desse trabalho que é não paga. Vamos considerar que essa questão do lucro e da mais-valia seja mais conhecida. O que queremos discutir é como o lucro é distribuído e que leis regem essa distribuição. Parece-nos ser esta uma das questões-chave para a compreensão teórica da dívida externa. É importante lembrar que o lucro só pode nascer na atividade produtiva (basicamente nos setores primário e secundário da economia). No entanto, isso é obscurecido no cotidiano. Mesmo que vista fantasias, o lucro é valor adicionado, é trabalho não pago gerado na atividade produtiva.

Para os capitalistas todo dinheiro adicional abocanhado tem sabor de lucro. Mesmo assim vários apelidos são inventados para o lucro: royalties, taxas, impostos e um dos mais importantes, o juro.
Para uma definição simples de juro basta ler em O Capital, Livro III, volume 5, capítulo XXI:
"Imaginemos que a taxa média anual de lucro seja de 20%. Então uma máquina no valor de 100 libras esterlinas, nas condições médias e com aplicação média de inteligência e atividade útil, aplicada como capital, proporcionaria lucro de 20 libras esterlinas. Assim, uma pessoa que dispõe de 100 libras pode transformá-las em 120, ou produzir um lucro de 20 libras esterlinas. Tem nas mãos um capital potencial de 100 libras esterlinas. Se transfere por um ano as 100 libras esterlinas a outra pessoa que as aplica realmente como capital dá a ela o poder de produzir 20 libras de lucro, mais-valia que nada custa ao concessionário que por ela não pagará equivalente. Se no fim do ano pagar 5 libras ao dono das 100, por exemplo, isto é, parte do lucro produzido, terá pago o valor de uso das 100 libras esterlinas, o valor de uso de sua função de capital, a função de produzir 20 libras de lucro. A parte do lucro paga ao cedente chama-se de juro, que nada mais é que nome, designação especial da parte do lucro, a qual o capitalista em ação, em vez de embolsar entrega ao dono do capital".

Na sociedade capitalista o lucro, originário da atividade produtiva é dividido entre os comerciantes, banqueiros e governo (impostos), uma parcela cada vez maior é abocanhada pelo setor financeiro, principalmente externo. Um problema importantíssimo, então, se coloca. Quais leis governam a formação da taxa de juros?

A TAXA DE JUROS

A taxa de juros depende exclusivamente da concorrência, da oferta e da procura do próprio capital. Essa é uma das mais importantes conclusões teóricas para entendermos nossa dívida externa. No mesmo capítulo já citado de O Capital, temos:

"Além disso, o capital se apresenta como mercadoria na medida em que a repartição do lucro em juro e lucro propriamente dito é regulada pela oferta e procura, pela concorrência, portanto, como os preços de mercado das mercadorias. Entretanto, a diferença aí é tão contundente quanto a analogia. Se a oferta e a procura coincidem, o preço de mercado da mercadoria corresponde ao preço de produção, isto é, o preço se patenteia então regulado pelas leis internas da produção capitalista, sem depender da concorrência, pois as oscilações da oferta e da procura apenas explicam os desvios que os preços de mercado têm dos preços de produção – desvios que se compensam reciprocamente, de modo que em períodos mais longos os preços médios de mercado se igualam aos preços de produção.

Essas duas forças (oferta e procura), quando coincidem, cessam de atuar, anulam-se mutuamente e a lei geral de determinação dos preços passa a impor-se também ao caso particular; então, o preço de mercado em sua existência imediata e não como média do movimento dos preços de mercado já corresponde ao preço de produção. Isso se estende ao salário. Se oferta e procura coincidem, anula-se o efeito de ambas, e o salário é igual ao valor da força de trabalho. Mas é diferente o que se passa com o juro do capital dinheiro. Aí, a concorrência não determina os desvios da lei, ou melhor, não existe para a repartição lei alguma além da ditada pela concorrência, pois, conforme veremos ainda, não existe nenhuma taxa "natural" de juro. Habitualmente, entende-se por taxa natural de juro a fixada pela livre concorrência. Não há limites "naturais" para a taxa de juros. Se a concorrência não se limita a determinar desvios e flutuações, se, portanto, suas forças opostas se equilibram cessando toda a determinação, o que se trata de determinar é em si mesmo algo arbitrário e sem lei".

A implicação dessa lei sobre a taxa de juros ganha muita importância a partir da Primeira Guerra Mundial, quando o mundo passou a viver sob o talante dos grandes grupos financeiros, união dos capitais industriais e comerciais com os banqueiros, que passam a ter o domínio total sobre a economia do planeta.

Ora, a brutal concentração do setor financeiro faz com que a lei da oferta e da procura seja sempre distorcida em favor dos que concentram a oferta, os grandes bancos internacionais. A lei geral de formação da taxa de juros continua atuando e a situação de monopólio da oferta faz com que as taxas sempre subam, visto do ponto de vista estrutural.

Em outras palavras, o monopólio do capital financeiro leva o juro a ser uma parcela cada vez maior do lucro total. Cada vez é maior a parcela de mais-valia não apropriada diretamente pelo setor produtivo. Aí reside o parasitismo da usura. Trata-se de fenômeno de fortes implicações políticas. A luta contra as altas taxas de juros é possível do ponto de vista econômico, trata-se de decodificar as relações entre as parcelas da mais-valia. É diferente, por exemplo, de uma alteração na taxa média de lucro de uma sociedade em dado período. Nesse caso tem de mexer em profundidade na infra-estrutura. O problema, portanto, deve ser tratado com ênfase no âmbito político.

A SANGRIA FINANCEIRA

Nos últimos seis anos a retirada de recursos de nosso país através dos pagamentos da dívida externa chegou a tal ponto que derrubou o gigante; pela primeira vez em nossa história recente tivemos quatro anos seguidos de recessão. Nossa dívida externa ultrapassa os 100 bilhões de dólares, mas fica difícil medir exatamente seu impacto sobre o país. Muito se tem escrito sobre isso e várias comparações são feitas. Alguns lembram que a dívida já ultrapassa um terço do produto bruto, outros comparam o valor da dívida com o orçamento público, outros ainda a comparam com a folha salarial e argumentam que se pagássemos as prestações não poderíamos dobrar ou triplicar os salários criando um novo país. Apesar destes argumentos terem algum peso, estão, na verdade, comparando laranja com banana. Tentaremos quantificar o sacrifício que o Brasil vem fazendo, usando rigor teórico. Vamos comparar crédito de longo prazo com capital para investimento de longo prazo. Afinal, o crédito é uma parcela do capital investido e como tal deve ser comparado.

A economia capitalista se baseia numa reprodução ampliada do capital, os capitalistas são obrigados a retirar uma substancial parcela dos lucros para reinvestimentos que, por sua vez, geram novos lucros prolongando o ciclo. Desta parcela tem grande importância a quantidade investida em máquinas e bens intermediários, parcela que manifesta claramente seu aspecto de capital, de capital travestido em bens de produção. O investimento em bens de capital é para o capitalismo ao mesmo tempo uma necessidade e uma garantia de desenvolvimento.

Ao buscar nas estatísticas a fundamentação para nossas afirmações enfrentamos sérias dificuldades, pois elas gozam de pouca confiança em nosso país. Mesmo assim, temos de utilizar o material existente e tentar interpretá-lo com cuidado.

Os dados mais completos sobre o desempenho global da economia brasileira estão nas chamadas "Contas Nacionais", um impressionante levantamento feito em moldes internacionais, sob inspiração do modelo keynesiano de contabilidade nacional. A Fundação Getúlio Vargas executa a compilação sob encomenda do governo.

Pretendemos fazer uma comparação entre as quantias enviadas ao exterior na forma de juros da dívida externa e a quantia destinada para o investimento em bens de capital. Os juros pagos foram pesquisados nos relatórios do Banco Central já que as Contas Nacionais aparecem embutidas no item Importação de Mercadorias e Serviços.

O item que mede os investimentos em bens de capital é chamado de Formação Bruta de Capital Fixo. Podemos considerar à luz dos fundamentos teóricos que já discutimos, que um determinado volume de recursos ou é aplicado como bens de capital ou é destinado ao pagamento de juros de dívidas de longo prazo. Em outras palavras, o recurso drenado pelos juros de monopólio poderia ser utilizado para a formação bruta de capital fixo. São duas realidades afins e sua comparação pode nos ajudar a entender o estrago que está causando o pagamento dos juros, impedindo a formação de capital fixo, impedindo o aumento dos empregos e dos salários, forçando a recessão não apenas conjuntural.
Não estamos levando em conta a dívida externa de curto prazo, que oscila em torno de 10 bilhões de dólares e que pode ser comparada com outros itens, também de curto prazo, da conta de capital. Queremos nos concentrar nas questões de fundo.

Vemos no quadro anexo que a formação bruta do capital fixo tem um crescimento expressivo até 1978, aliás em toda a década de 1970 a média de crescimento é de 20%. Podemos considerá-la como uma das pré-condições necessárias para o desenvolvimento da economia. Essa taxa se propaga pela economia e precisa sempre ser mais alta do que o crescimento do PIB, ou seja, para que o PIB cresça entre 5 e 10% essa taxa tem de aumentar 10%, 15% ou mais. Note-se que a partir de 1979 ela cai a níveis insuportáveis para a economia, gerando recessão. Sua média de elevação não chega a 4%, se considerarmos os anos 1979, 1980, 1981 e 1982. A queda dessa taxa é um dos fatores determinantes da recessão, além de trazer um componente de destruição estrutural quando se mantém por vários anos, pois cria um círculo vicioso.

O que mais queríamos destacar é que justamente nesse período assinalado (1979, 1980, 1981, 1982) o pagamento dos juros da dívida externa passa a pesar em 20% do capital fixo, enquanto nos primeiros anos da década de 1970 não ultrapassava 2,5% do total.
Verifica-se uma mudança estrutural que indica um desvio de recursos da formação bruta de capital fixo para o pagamento de juros da dívida externa de longo prazo.

Podemos chegar à conclusão de que se os juros não fossem pagos e o montante respectivo fosse aplicado para capital fixo (investimentos) teríamos os valores de 56, 61, 67 e 71,4 bilhões de dólares, o que representaria uma expansão média de 9% na taxa de formação bruta de capital fixo, ou seja, não haveria recessão. Esses dados apenas comprovam a tese do FMI: desviar recursos, através da recessão, para o pagamento dos juros.

Mas os dados que discutimos mostram uma parte da realidade. Há um fator que agrava a distorção na formação bruta de capital fixo: a estratégia das exportações.
Acontece que os juros da dívida externa têm de ser pagos com dólares, o que só se torna possível com um brutal superávit no comércio exterior. Grande parte do dinheiro aplicado em capital fixo foi para as exportações; se fôssemos detectar os investimentos voltados para o mercado interno veríamos que houve acentuada queda. O Brasil foi transformado numa grande máquina de pagar juros. A tal ponto de o City Bank, maior truste financeiro do mundo e que atua diretamente em 95 países, retirar 18% do total de seus lucros mundiais do Brasil.

A Física sabe que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço; os economistas sabem que a mesma quantidade de recursos não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo: ou o Brasil investe em capital fixo ou paga os juros da dívida externa. Ou se recupera e garante a dignidade de seus filhos, ou se abeira de uma explosão social.

Várias políticas têm sido articuladas: corte no déficit público, tabelamento das taxas de juros etc. Mas todas as medidas serão inócuas se não se puser o dedo na ferida: a suspensão dos pagamentos dos juros da dívida externa.

* Luiz Gonzaga é jornalista econômico, colaborador de Princípios.

EDIÇÃO 11, AGOSTO, 1985, PÁGINAS 29, 30, 31, 32