Estruturam para isso uma legenda própria – o Partido da Frente Liberal, PFL – aglutinando boa parte das oligarquias mineiras, banqueiros de São Paulo e do Sul, a maioria dos governadores nordestinos, eleitos pelo PDS, o sistema tecnocrático-militar que gravita em torno do general Ernesto Geisel.
Atiram-se também à luta de idéias. O ministro Marco Maciel, ágil e destro, movimenta-se e ganha espaço como ideólogo do liberalismo tupiniquim: em fins de maio lançou até um livro sobre o assunto, intitulado Frente Liberal – Programa e Partido.

Não que nossa burguesia tenha afinal, tardiamente, se convertido a um espírito de princípios em questões de doutrina política e econômica. Nascida nas casas-grandes do latifúndio, criada na dependência do capital estrangeiro, deformada pela monopolização precoce, viciada no clientelismo e na corrupção estatais, covarde perante os poderosos, hipócrita para cima dos fracos, dona de potentes mandíbulas e um formidável aparelho digestivo, mas desprovida de espinha dorsal, ela não tem escrúpulos doutrinários. Se possui alguma consistência ideológica, filia-se à escola do pragmatismo, gerada nos Estados Unidos durante a virada do século: valoriza acima de tudo o conceito de utilidade; aquilo que é útil (para o burguês pragmático) é bom, necessário, justo. É o que, no feijão-com-arroz da política cabocla, batizou-se de fisiologismo.

DOS ESCOMBROS DO REGIME

Acontece que uma somatória de circunstâncias, sobretudo do ano passado para cá, tornou conveniente para gorda parcela dessa burguesia pragmática remendar, tingir de novo e hastear a bandeira liberal. O regime militar entrou em agonia e morreu. A aventura fascistizante de Paulo Maluf também deu com os burros n'água. Esgotou-se, assim, um longo e penoso ciclo de tirania das Forças Armadas, arbítrio e terror político, que nossos liberais de hoje preferem chamar pelo nome mais condescendente de "autoritarismo".

Por seu lado, as massas do povo brasileiro puseram-se em movimento em escala nunca
vista no movimento de rebeldia cívica contra a ditadura e pela liberdade que tomou forma na campanha das diretas já.

Ser adepto do velho regime tornou-se estigma infamante, capaz por si só de arrasar uma carreira política. E tornar-se adversário do regime, democrata, virou galardão consagrador.
Foi nesse quadro que uma parte do bloco de sustentação política do antigo governo afastou-se dele, em julho de 1984, formou a Frente Liberal, aliou-se com PMDB e, em dezembro último, constituiu-se formalmente como partido, adotando a sigla PFL.

O PFL não nasce com todos os contornos definidos de um partido liberal. Mais uma vez o pragmatismo trabalha para borrar fronteiras e enevoar definições doutrinárias. O figurino liberal não serve a todos que estão com o PFL – entre os quais gente como o tristemente célebre Major Curió, ou o ex-ministro Armando Falcão, de um conservadorismo raivoso e empedernido. E nem de longe os liberais aderiram todos ao PFL – já que inúmeros continuam dentro do PMDB, ou alhures. Para completar a identificação, passou-se a falar ultimamente numa fusão do PFL com as alas não malufistas do PDS remanescente – o que criaria um perfil partidário bem distinto do atual.

De qualquer forma, o fato é que o PFL, mesmo em formação e com fisionomia às vezes nebulosa, aí está. Possui hoje razoável força parlamentar, com mais de cem deputados federais e 19 senadores da República. Detém um bom pedaço dos postos da administração federal e o governo de quase todos os estados nordestinos. E os peefelistas dispõem ainda de um trunfo: graças ao papel positivo que jogaram na derrota do regime militar, ao apoiarem a candidatura Tancredo-Sarney, gozam da tolerância e até de alguma indulgência da parte das grandes massas populares.

QUE LIBERALISMO É ESSE?

Em que consiste esse liberalismo? De onde ele vem? E para onde se encaminha?
São indagações necessárias para quem queira visualizar o novo mosaico político-partidário do país. E mais ainda, porque a influência da ideologia liberal não se cinge ao PFL, ou a este e ao PMDB, exercendo também pressão direta dentro do movimento operário e popular (1).

Quando nasceu, há mais de 200 anos, o liberalismo era uma corrente de pensamento progressista e até revolucionária. Representava os anseios da jovem burguesia em luta contra a velha ordem feudal e as monarquias absolutas. Pensadores políticos como o inglês John Locke (1632-1706), os franceses Charles-Louis de Montesquieu (1689-1755) e Jean Jacques Rousseau (17121788) influíram positivamente sobre as revoluções americana (1776), francesas (1789, 1830, 1848) e as que se seguiram, em vários países da Europa, até por volta de 1870.

Em sua juventude, o pensamento político liberal se contrapunha à rígida divisão feudal entre plebe e nobreza com o conceito de que todos os homens nascem livres e iguais. E desafiava as monarquias absolutas, baseadas no "direito divino", com a tese de que o poder político deve emanar do povo.
Também as idéias econômicas liberais, ao nascerem, tinham sentido progressista. Os ingleses Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823), com base na experiência da revolução industrial e da nova ordem burguesa, proclamaram o trabalho como verdadeira fonte das riquezas e lançaram as bases da economia moderna – que a teoria marxista iria retomar e desenvolver. O próprio lema Laissez faire, laissez passer ("Deixai fazer, deixai passar"), quando foi formulado pelos fisiocratas franceses, no século XVIII, exprimia a rebelião da burguesia contra os acanhados limites das corporações e o peso dos impostos feudais, que peavam o livre desenvolvimento das forças produtivas.

Mas isso foi há muito tempo. Já faz perto de um século que a burguesia européia e norte-americana triunfou em toda a linha, em seus países, e fez com que o planeta inteiro se dobrasse às regras do sistema capitalista. E se a ordem burguesa mostrou ser superior à feudal, desmentiu sem piedade os sonhos de liberdade e igualdade, harmonia e justiça social, alimentados pelos primitivos pensadores liberais.

SUA EVOLUÇÃO E TENDÊNCIAS

O liberalismo previa que a livre concorrência, a divisão do trabalho e o livre comércio capitalista acarretariam o desenvolvimento harmônico da economia. Em vez disso, a produção burguesa mostrava padecer de crises cíclicas inevitáveis, geradas pelas próprias "leis naturais" do mercado. E, no final do século XIX, a livre concorrência passou a transformar-se em seu contrário, com o advento dos monopólios e do imperialismo, tornando as crises ainda mais extensas e destruidoras.

Após a grande depressão de 1929, até o tabu liberal do Laissez faire começou a desmoronar. Os próprios Estados burgueses, na tentativa de salvar a ordem capitalista de suas contradições congênitas, passaram a interferir mais e mais no curso das atividades econômicas, e a se transformarem eles próprios em gigantescos empresários coletivos, com a proliferação do capitalismo monopolista de Estado. Surge aí a cisão, de dimensões mundiais, entre os burgueses adeptos do liberalismo clássico, que anseiam pelo retorno aos velhos tempos do Laissez faire e os burgueses partidários do chamado neoliberalismo, que se conformam com a impossibilidade de permitir o livre jogo das forças do mercado e apelam em escala crescente para a interferência econômica do Estado.

Também a igualdade entre os homens revelou-se uma falácia. Mesmo nas mais democráticas repúblicas, ela só existe no plano formal. Na prática social, o que se criou é um abismo cada vez maior entre a minoria que vai concentrando toda a riqueza e a maioria proletária, condenada a sobreviver apenas na medida em que consegue vender seu único bem – a força de seus braços e suas mentes.
Por fim, a liberdade política também é descartada pela burguesia na medida em que ela se transforma em classe retrógrada, obstáculo ao progresso da humanidade. A harmonia entre os três Poderes, proposta por Montesquieu, deixou de existir há tempos com a inchação do Executivo, que mesmo os liberais da atualidade reconhecem como fenômeno generalizado. Os direitos dos cidadãos são espezinhados cotidianamente já não só pela força do dinheiro, mas igualmente pela da polícia, quando a primeira mostra-se incapaz de atender aos desígnios do grande capital.

UMA PROPOSTA FALIDA

Onde vigora hoje a democracia liberal? Nos Estados Unidos de Ronald Reagan, onde 1.300 pessoas foram presas em julho por protestarem contra o financiamento à agressão contra-revolucionária na Nicarágua? Na Inglaterra de Margaret Thatcher, que prendeu 7 mil operários ao longo da heróica greve dos mineiros em 1984-85? Na França do "socialista" François Mitterrand, que também atira a polícia contra o movimento operário e ainda assim não apazigua o capital, que prepara a volta da direita ao governo? Ou na Alemanha de Helmut Kohl e Joseph Strauss, onde os nazistas mortos são objeto de homenagens oficiais, por parte dos nazistas vivos que se encastelam na cúpula do aparelho estatal?

A tendência à reação, característica do poder burguês na fase dos monopólios, se manifesta por ondas e de maneira desigual, mas com a teimosia inexorável de uma lei do desenvolvimento social, no conjunto das metrópoles imperialistas. E o que dizer, então, da vasta periferia dominada em Ásia, África e América Latina? Aqui, com alguma exceção limitada no tempo e no espaço, o liberalismo não passa de uma caricatura de si mesmo, usada para mascarar o despotismo e a dominação estrangeira.

Naturalmente, ainda assim as formas democráticas de domínio burguês distinguem-se das formas tirânicas, das ditaduras militares e do fascismo. Nós, brasileiros, sabemos por nossa própria e dura experiência quanto a existência de liberdades, ainda que limitadas, mutiladas, favorece a luta pelos interesses imediatos do povo e por nossos objetivos finais. Por isso, as forças sociais mais avançadas atuam em unidade com uma vasta e heterogênea frente oposicionista, incluindo a burguesia liberal, para pôr um paradeiro ao regime dos generais ou para consolidar as conquistas democráticas e impedir uma volta à ditadura. Mas não há motivos para dar crédito à arenga dos senhores liberais que nos apresentam isto que aí está como o melhor dos mundos e descartam tudo o mais como utopias.
Faz mais de cem anos que a burguesia deixou de ser uma classe revolucionária, impulsionadora do avanço da humanidade. Suas doutrinas econômicas, sociais e políticas, mesmo quando tiveram no passado um papel fecundo e vanguardeiro, esgotaram seu poder transformador. Hoje, atuam no sentido inverso, como fatores de freio e retrocesso da roda da História, idéias velhas e bolorentas de uma classe que caminha para a cova.

Em nossa época outra classe social, o proletariado, caminha na vanguarda do avanço histórico. E outra, igualmente, a doutrina que ilumina esta caminhada. De pouco adianta a burguesia exorcizar mil vezes o marxismo e fazer seus escribas trabalharem em tempo integral para difamá-lo. Ao agir assim ela apenas imita as forças do feudalismo, que um dia tentaram barrar sua marcha e que ela afastou pela via revolucionária.

Nossos liberais, além das mazelas próprias do liberalismo no mundo de hoje, carregam ainda outras derivadas das condições específicas do Brasil.

DESCOMPASSO COM A LIBERDADE

Ocorre que as classes dominantes brasileiras, mesmo no passado, jamais quiseram saber de revolução. O latifúndio sempre primou pelo reacionarismo extremado. E a burguesia, na melhor das hipóteses, em seu segmento mais avançado, não foi além de uma tímida inclinação reformista. Assim, os liberais revolucionários que o Brasil conheceu no século passado foram trucidados precisamente pelas mesmas oligarquias que hoje envergam a fatiota do liberalismo conservador. Que o digam Tiradentes, Frei Caneca, Cipriano Barata, Angelim, Pedro Ivo e tantos outros.

Outro problema é a falta de escrúpulos com que nossos liberais, num passado recentíssimo, trocaram seu liberalismo pela quartelada e o despotismo militar.
No período de relativa e precária normalidade democrática entre 1946 e 1964, o partido nacional que mais se aproximava teoricamente do figurino liberal era a UDN – e dentro do atual PFL as raízes udenistas são as mais fortes.

Entretanto, a UDN combinava o liberalismo verbal com a prática nada liberal de rondar os quartéis e açular pronunciamentos militares como os de 1954, 1955, 1961 e, com destaque, de 1964.
É certo que os generais no poder relegaram seus parceiros paisanos para papéis meramente decorativos, ou de figurantes, quando não para o ostracismo ou a lista negra dos cassados. Mas é igualmente verdadeiro que a maioria dos nossos liberais se conformou docemente com a ditadura.
Pouquíssimos ousaram romper com a ditadura e avançar para um democratismo arrojado, já bem distante da bitola liberal – entre eles o admirável Teotônio Vilela, que foi da UDN e da Arena antes de se passar para o MDB e morrer dando razão aos que pegaram em armas pela liberdade. Normalmente os senhores liberais enfiaram suas proclamadas convicções no saco e trataram de aproveitar as sinecuras que a ditadura lhes propiciava. Alguns passaram mesmo a teorizar sobre a incompatibilidade dos princípios democráticos com a complexidade do Estado moderno. Só o estágio já avançado de decomposição do poder militar, e o clamor das massas na praça exigindo as diretas já, haveriam de despertá-los…

É certo que, em política, deve-se olhar para frente e não para trás. Ao se destacarem do bloco de sustentação do antigo regime, quaisquer que fossem suas motivações, os setores que hoje compõem o PFL prestaram um serviço à causa democrática que pertence antes de mais nada às massas do povo. O futuro definirá melhor em que sentido essa experiência interferiu na índole de nossos liberais e até que ponto levou-os a se livrarem – se é que se livraram – dos renitentes cacoetes antidemocráticos de até há pouco.

DIVERGÊNCIAS NO PLANO ECONÔMICO

A dificuldade em afinar o discurso e a prática do liberalismo tupiniquim aparece com nitidez na esfera econômica. Já vimos que em plano mundial os liberais se encontram divididos quanto à maneira de encarar a intervenção do Estado na economia. No Brasil, igualmente, a polêmica corre solta, inclusive nos quadros do PFL.

O ministro Aureliano Chaves, tido como prócer maior do novo partido, por exemplo, alinha-se com o neoliberalismo. No dia mesmo do lançamento do PFL, ele investia contra o que chamava de "confusão premeditada ou não entre liberalismo político, sentimento liberal e liberalismo econômico". E depois de enaltecer os primeiros, descarregava:

"Liberalismo econômico é coisa completamente diferente: é uma escola econômica superada que pregava e praticava o absenteísmo do Estado diante do jogo livre das forças de mercado. Tal procedimento econômico já foi superado no tempo e, sob certos aspectos, foi ele o responsável pelo Manifesto Marxista (sic) de 1848".

Certamente não é este o pensamento dos liberais ortodoxos, que denunciam a existência de uma "república socialista soviética" dentro do Brasil, composta pelas empresas estatais.
Não há sinais à vista de um fim para a divergência. E embora se trate, por assim dizer, de um problema interno do liberalismo, tem interesse na medida em que exemplifica muito bem as vicissitudes dessa corrente de pensamento.

Criada em circunstâncias históricas determinadas, e depois de cumprir um papel, ela envelheceu, caducou. Já deu o que tinha que dar. E, diante da nova realidade de uma ordem burguesa em decomposição, ela paralisa-se atônita, dilacerada pelo dilema entre socorrer o capitalismo à custa da doutrina, ou apegar-se à doutrina numa inútil tentativa de fazer o sistema decrépito voltar a funcionar como nos tempos de sua juventude e robustez.
Por estas razões, nossos liberais não primam pelo otimismo quando lançam os olhos pelo processo histórico em curso.

Eles têm o dinheiro, têm uma alentada fatia dos postos de mando do aparelho de Estado, são donos de uma experiência quatrocentona de domínio de classe, possuem agora um partido novo em folha… e, no entanto, se interrogam pela imprensa: "Ainda há tempo para o liberalismo?"
Seria o caso de as camadas populares, em especial os operários, se colocarem também com seriedade esta questão. Inclusive para se capacitarem a ajustar as contas com os preconceitos e tabus liberais que foram, e continuam a ser, inoculados em sua consciência, sempre procurando estabelecer um sinal de igualdade entre democracia e liberalismo – quando este, na verdade, não é mais que a concepção burguesa clássica de democracia, meramente formal, mutilada, reduzida na prática ao gozo de uma minoria endinheirada.

* Bernardo Joffily é integrante da equipe de redatores da Editora Anita Garibaldi.

Nota
(1) Foi devido ao contrabando liberal e nacional-reformista que o Partido Comunista do Brasil viu-se atingido por uma cisão grave, no inicio dos anos 1960, com boa parte de seus quadros rompendo com o marxismo-leninismo para formar um agrupamento avesso à revolução – denominado Partido Comunista Brasileiro. Foi também sob a égide do ideário liberal com vestimenta "de esquerda" que o secretário-geral nacional do PT, professor Francisco Weffort, publicou em outubro do ano passado sua tese Por que democracia? – uma profissão de fé na democracia "pura", acima das classes, em que o contrapeso do título da obra é outra pergunta: "Por que não revolução?".

EDIÇÃO 11, AGOSTO, 1985, PÁGINAS 23, 24, 25, 26, 27, 28