QUEM TEM MEDO DOS CONTEÚDOS EDUCACIONAIS?
Em vista de tantos problemas de tão grandes proporções, temos pouco tempo para pensar em outros problemas que passam desapercebidos, os quais, embora não sejam tão evidentes, irão muitas vezes influir na qualidade do ensino, e estão intimamente ligados à política educacional.
Neste artigo abordamos um desses problemas: o ensino dos conteúdos. Ou seja, quais, e de que maneira as informações, os valores, os símbolos e regras da sociedade são trabalhados na relação professor/ aluno.
A discussão a respeito da importância dos conteúdos educacionais é considerada hoje por muitos educadores como uma "polêmica ultrapassada". Esta polêmica, que teve início no século passado, colocou em confronto os movimentos das escolas tradicional e nova. O primeiro movimento dava ênfase à memorização dos conteúdos, enquanto a Escola Nova enfatizava os métodos utilizados no processo ensino/ aprendizagem, deixando a memorização em segundo plano.
A Escola Nova vem contestar o tipo de ensino em que o professor é o dono da palavra, aquele que fala o tempo todo, enquanto os alunos simplesmente escutam. O novo lema passa a ser então "aprender a fazer, fazendo". Os alunos deixam de ser depósito de conhecimentos para vivenciar diferentes experiências de aprendizagem. O mais importante não é a aprendizagem em si, mas seu processo. Sem dúvida isso não deixou de ser um avanço.
O ensino tradicional, ao enfatizar a memorização dos conteúdos, trabalhava no sentido da perpetuação da ordem social vigente, da conservação dos valores existentes, tratando o aluno como uma tábula rasa. Na tentativa de evitar um ensino que visasse à pura transmissão de conhecimentos e possibilitasse um processo de aprendizagem através da experiência, surge o movimento escolanovista. Porém, este movimento foi na realidade utilizado pela classe hegemônica como um instrumento de manutenção de seu "poder, pois uma de suas características é a ênfase às diferenças individuais, não levando em conta a estrutura de classes. Dessa forma, o fracasso das crianças "carentes" e o sucesso das crianças das classes mais favorecidas são explicados em termos de "inaptidão" por parte das primeiras e de "superioridade intelectual" por parte das segundas. A escola serve, então, para justificar e reproduzir a posição dos indivíduos dentro da escala social.
ESTÍMULO AO INDIVIDUALISMO
O psicologismo e a teoria das aptidões nada mais fazem do que introjetar no aluno a responsabilidade por seu sucesso ou fracasso na sociedade. Hoje, estimulando o individualismo e a competição – essencial ao capitalismo – a Escola Nova é a escola da "meritocracia". O aluno que se esforça, estuda, tira boas notas, e é "apto", tem seu lugar ao sol assegurado pela sociedade. A escola passa a ser a única via de ascensão e de mudança social. Isso nada mais é do que a própria ideologia liberal burguesa em ação, que deforma e escamoteia a verdadeira estrutura de classe.
Apesar de a questão Escola Nova X Escola Tradicional, como querem alguns, ter sido "uma polêmica do século passado e dos primeiros anos deste século" não significa que a mesma esteja ultrapassada, tanto que o assunto ainda vem sendo bastante discutido por todos aqueles que procuram elaborar propostas alternativas concretas para a educação no Brasil. Ao participarmos desta polêmica não queremos defender a escola tradicional. Queremos sim questionar as grandes perdas que sofremos quando caímos no radicalismo escolanovista de negar a importância de todo e qualquer conteúdo no ensino, valorizando apenas o processo de aprendizagem. Mas qual seria a origem desse radicalismo?
Esta posição tendeu a se consolidar de forma dogmática, não deixando espaço para uma avaliação crítica a respeito do tema. Ora, sabemos que por trás de todo dogma existe um interesse ideológico, cuja função é a dissimulação da verdade com o interesse, consciente ou inconsciente, de manutenção de uma ordem vigente. Em que se baseiam certos educadores para considerar o ensino dos conteúdos ultrapassado? A crença na falta de valor dos conteúdos parece ter origem em duas posições distorcidas.
A primeira delas tem origem na seguinte proposição pseudológica: "os conteúdos são informações, valores, símbolos e regras da sociedade adulta, logo, transmiti-los é reproduzir esta sociedade". Esta proposição esquece que no interior de toda sociedade também estão presentes as forças que determinarão uma nova sociedade. Se é verdade que o ensino dos conteúdos pode reproduzir a sociedade adulta. também é verdade que pode contribuir para transformá-la.
"A escola, mediante o que ensina, cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo, liberta de toda magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção histórico-dialética do mundo, para a compreensão do movimento e do devenir, para valorização da soma dos esforços e de sacrifícios que o futuro custa ao passado, para concepção da atualidade como síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro" (Gramsci).
A proposição correta seria, portanto, a seguinte:
Os conteúdos são informações, valores, símbolos e regras de uma determinada sociedade que trazem em seu bojo forças opostas lutando ou pela manutenção ou pela transformação da ordem estabelecida; logo, quando transmitimos os conteúdos podemos ser cúmplices da reprodução ou da transformação desta mesma sociedade.
A outra distorção, mais perigosa do que a primeira, reside em que esses educadores buscam na ciência o refúgio para suas posições ideológicas. Não estamos, de forma alguma, criticando uma pedagogia com base científica. Acreditamos que o ensino deva ser centrado no desenvolvimento das estruturas mentais, segundo seus níveis de desenvolvimento. O que não podemos é querer imaginar as estruturas mentais se desenvolvendo dentro de um vazio, soltas no tempo e no espaço. O psiquismo ao mesmo tempo em que é determinado pelo social, é também determinante. É necessário haver conteúdos-motores, motivos para o desenvolvimento da inteligência. COMPROMISSOS DA "ESCOLA NOVA" COM O STATUS QUO
Mas para que desenvolver a inteligência? A favor de quem? Seria ingenuidade supor que esses homens que detiveram o poder por quase 21 anos não são inteligentes, não possuem suas estruturas mentais suficientemente desenvolvidas e que não usam métodos científicos para melhor manipular, explorar, dominar, visando à sua manutenção no poder.
Além de trabalharmos inteligentemente os conteúdos, devemos questionar qual intenção, qual objetivo político, explícito ou implícito, desses conteúdos. Assim, chegamos à questão do compromisso político da educação. A quem queremos servir? Qual o sentido de nossa ação educativa: para a reprodução do status quo ou para a transformação da realidade?
É necessário ter claro quais conteúdos a ensinar, de que maneira trabalhá-los e qual o seu direcionamento político em relação à sociedade.
Hoje em dia é consenso o "desenvolvimento da consciência crítica". "É importante aprender a aprender, aprender a aplicar a consciência à realidade, ter consciência crítica". Qualquer professor, educador, atualmente, coloca essa questão em seu planejamento como um de seus objetivos de ensino. Somos a favor do desenvolvimento de uma consciência crítica, mas o que significa "ter consciência crítica"? O grande desafio da educação se encontra na formação de homens que não apenas saibam aplicar os conhecimentos adquiridos à realidade, mas que também, e fundamentalmente, se comprometam com a transformação desta mesma realidade. É neste contexto que o ensino dos conteúdos ganha relevância.
Aqueles que defendem a irrelevância dos conteúdos, que se travestem de um discurso pseudo-revolucionário a favor das classes dominadas utilizando a ciência como um escudo para encobrir seu posicionamento diante da realidade, nada mais fazem do que reproduzir a sociedade, uma vez que não dão às classes subalternas o acesso ao saber instituído – ponto de partida para a elaboração de novos saberes. O novo se constrói a partir do velho.
Como questionar a energia nuclear, por exemplo, se o aluno não tem acesso a esse tipo de conteúdo? A defesa da reprodução do sistema nada mais é do que ignorar os conteúdos oficiais e fazer da escola uma brincadeira. Os conteúdos burgueses, dos donos do poder e do saber existem e devem ser combatidos. Para que o aluno possa combatê-los é preciso conhecê-los, não cabendo ao educador escondê-los, o que seria uma atitude paternalista. Ignorar esses conteúdos seria ignorar o saber acumulado. Não se trata de reproduzir conhecimentos prontos e acabados, mas de investigá-los, pesquisá-los, vivenciá-los de maneira crítica, criando, a partir do velho, os novos conhecimentos que nortearão uma nova sociedade.
O dominado precisa conhecer os conhecimentos do dominante, pois estes serão sem dúvida um de seus instrumentos de luta para a conquista de uma sociedade justa.
Concluindo, achamos importante uma educação que vise ao desenvolvimento da inteligência através de um rico processo de aprendizagem, que possibilite um posicionamento político a favor da grande maioria da população, hoje dominada. Mas os educadores só conseguirão homens engajados na luta pela transformação social, na medida em que derem o devido valor aos conteúdos educacionais no ensino. Afinal, o papel do educador comprometido com a transformação social é o de criar espaço para a apropriação, desapropriação e re-apropriação do saber. Este é o nosso compromisso com as classes dominadas.
* Lia Vargas Tiriba e Gilson Carlos Sant'Anna são mestrandos em Educação – FGV.
EDIÇÃO 11, AGOSTO, 1985, PÁGINAS 38, 39, 40