O MARXISMO E O REVISIONISMO SOVIÉTICO – CAMINHOS ANTAGÔNICOS
A outra forma de capitulação se materializa na negação da própria validade do movimento marxista-leninista e na defesa da reconciliação com os partidos alinhados com o revisionismo soviético. Esta posição surge, sobretudo, em alguns países onde os revisionistas mantêm certa influência junto à classe operária. Embora menos difundida do que a primeira, esta posição representa um grave perigo para a luta revolucionária do proletariado e dos povos.
O subterfúgio usado para tentar justificar esta capitulação é o argumento de que, após a queda do arqui-revisionista Kruschev, houve um retorno do PCUS às posições do marxismo revolucionário com a ascensão de Brejnev e seus sucessores. Em particular, apresenta-se a "Conferência Internacional dos Partidos Comunistas e Operários", realizada em Moscou em 1969, já sem a participação do Partido do Trabalho da Albânia, como um marco na volta do partido soviético e seus seguidores a uma política marxista correta. A seguir, analisaremos a linha política adotada pelo PCUS após a queda de Kruschev para ver se esta avaliação tem algum fundamento.
A CRÍTICA AO MAOÍSMO
O ponto de partida para as formulações que defendem a "reconversão" do PCUS ao marxismo é a crítica feita pelos soviéticos ao maoísmo desde meados da década de 1960. Segundo estes formuladores, o PTA e demais componentes do movimento marxista-leninista do mundo, ao romperem abertamente com o maoísmo em meados dos anos 1970, reencontraram-se com as posições que o PCUS já vinha defendendo uma década antes. Mas a realidade, que esta visão deliberadamente omite, é que a crítica feita pelos soviéticos ao revisionismo de Mao sempre se baseou em argumentos e posições igualmente revisionistas nas questões mais fundamentais da teoria marxista.
Tanto isso é verdade que na luta entre as diversas alas e facções no interior do PC Chinês, a direção do PCUS desde a década de 1960 sempre defendeu em seus documentos o grupo burguês mais direitista de Liu Shao-Shi, Deng Xiaoping e companhia. É justamente este grupo que hoje governa a China pela via capitalista mais aberta e desavergonhada. A crítica ao aventureirismo pequeno-burguês que predominou em alguns períodos na China era feita pelos soviéticos não do ponto de vista proletário, mas do ponto de vista liberal burguês.
Por isto o Kremlin qualificou como "muito positiva" a ascensão de Deng Xiao-ping, e vem tentando insistentemente uma recomposição com os atuais dirigentes chineses. O próprio Gorbachev, num de seus primeiros discursos como secretário-geral do PCUS em abril deste ano, logo afirmou: "A União Soviética reforçará enérgica e insistentemente os contatos e desenvolverá a cooperação com os outros países socialistas, principalmente com a República Popular da China" (1).
Este processo só não avançou mais até hoje porque os chineses querem esgotar ao máximo as "vantagens" da sua aliança com o imperialismo norte-americano. No entanto, ironicamente, o partido de Deng Xiaoping vem adotando justamente a posição que os capituladores querem impor ao movimento marxista-leninista: voltou a estabelecer relações de partido a partido com as agremiações revisionistas de outros matizes, dentro do princípio de "olhar para frente e esquecer o passado" (2).
Enquanto os verdadeiros comunistas cortam todos os contatos com os revisionistas chineses, os partidos alinhados com o PCUS restabelecem relações fraternais com o partido de Deng Xiaoping.
Alguns podem afirmar que isso não passa de uma "tática política" para minar a aliança Washington/Pequim. É certo que a arte de fazer política envolve saber explorar ao máximo as contradições no campo do inimigo em benefício próprio. Mas, do ponto de vista proletário revolucionário, isto não pode ser feito em detrimento dos princípios nem com tentativas de iludir os povos fazendo passar gato por lebre, qualificando sociedades capitalistas e partidos revisionistas de "socialistas" e "comunistas". No fundo, soviéticos e chineses convergem na negação da concepção marxista sobre a própria essência do socialismo. E aqui, a posição de Brejnev e seus sucessores é uma mera repetição da formulação revisionista de Kruschev.
O SOCIALISMO COMO ETAPA DE TRANSIÇÃO
Os grandes teóricos do socialismo científico tinham uma compreensão bastante precisa do socialismo como uma etapa de transição, a primeira fase de uma única formação social comunista. O socialismo não cai puro do céu. Ele nasce das entranhas do próprio capitalismo, e por isso carrega dentro de si as marcas e as chagas da velha sociedade. Mesmo após a construção da base econômica do socialismo e a eliminação das classes exploradoras, permanecem na sociedade diferenças de classe herdadas do sistema de exploração anterior. Entre estas estão as distinções entre campo e cidade, entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre as tarefas de direção e tarefas de execução na produção, entre trabalhador urbano e trabalhador rural etc. Ao lado disto, persistem na consciência dos homens valores e preconceitos das antigas classes exploradoras, que dominaram a sociedade durante séculos, e continuam alimentando o egoísmo e a mesquinhez mesmo na sociedade socialista.
Estas diferenças e concepções não se eliminam "por decreto", da noite para o dia. É necessário um trabalho de várias gerações, calcado na elevação constante do nível de vida material e cultural do povo. Por isto os marxistas sempre criticaram a utopia anarquista de querer passar de imediato para uma sociedade "comunista" sem Estado. Para completar a transição ao comunismo (onde cada um trabalha segundo suas capacidades e recebe segundo suas necessidades), é preciso ir criando as condições para que o trabalho deixe de ser reconhecido como um fardo pelo homem, para se tornar na condição primeira da sua afirmação como ser humano. Para isso, a própria carga de trabalho tem de se reduzir a um mínimo, e tornar-se cada vez menos estafante e mais criativo. Até lá, no socialismo, ainda predomina o princípio do "direito burguês" sem burguesia, segundo o qual cada um recebe proporcionalmente ao trabalho que dá para a sociedade.
Pelos fatores que já vimos acima, surgem forças no interior do próprio socialismo que procuram barrar a transição e restaurar o sistema de exploração e injustiça. Ainda mais quando a sociedade socialista se desenvolve em meio a um cerco de países capitalistas. Lutar contra estas forças é justamente a essência da transição do socialismo ao comunismo. A luta de classes, portanto, continua sendo a força-motriz de todo este processo, até a completa eliminação das classes. Por isso, como ressaltava Lênin, o socialismo é um período de luta aguda entre as forças da velha sociedade capitalista que agoniza e a nova sociedade comunista que nasce. Até o pleno triunfo desta, em escala mundial, a questão de "quem vencerá quem?" não estará resolvida.
NEGAÇÃO DA LUTA DE CLASSES
Ocupamos este espaço até aqui expondo os pontos fundamentais da concepção marxista sobre o socialismo porque é precisamente sobre a negação desta visão que se constrói todo o edifício de idéias revisionistas, tanto dos dirigentes soviéticos como dos chineses. Os textos de Marx, Engels e Lênin são mais do que claros a esse respeito e não dão margem a "reinterpretações". É sabido que isto foi a "pedra de toque" das formulações revisionistas de Kruschev. Mas a atual direção soviética prosseguiu inteiramente no mesmo caminho, negando a essência do socialismo como etapa de transição. O socialismo é apresentado como um modo de produção próprio, independente do comunismo. Isto pode ser visto no trabalho do Doutor de Direito V. Chevstov, publicado pela Editora Progresso que busca fundamentar do ponto de vista teórico a linha endossada pelo PCUS com a ascensão de Brejnev: "A construção do socialismo na URSS e noutros países evidencia que este sistema possui um elevado grau de independência que se manifesta na ação de suas próprias leis e princípios” (3).
Segundo a formulação dos dirigentes soviéticos, a fase de transição propriamente dita se limita ao breve período que separa a tomada do poder da construção da base econômica do socialismo. A partir daí, cessam os antagonismos de classe e a própria luta de classes. A sociedade entra na fase do "socialismo desenvolvido", onde o problema central da passagem ao comunismo se reduz ao desenvolvimento das forças produtivas. É interessante notar que esta é a mesma posição adotada hoje pelos revisionistas chineses e expressa no livro de um dos seus principais economistas na atualidade, Xue Muqiao (4). O mesmo Chevstov coloca a questão deste modo: “Com a construção da base econômica do socialismo foram eliminadas as classes exploradoras, resolvendo-se deste modo a questão de "Quem vencerá quem?" (…) São próprios do socialismo desenvolvido um elevado nível de maturidade de todas as relações sociais; uma poderosa base técnica e material; uma estrutura de sociedade que se define pela ausência dos antagonismo entre classes e nações e um elevado grau de unidade e homogeneidade” (5).
O "ESTADO DE TODO O POVO"
Como não poderia deixar de ser, a negação da continuidade da luta de classes no socialismo teve como conseqüência a negação também da essência do Estado socialista. Na visão dos clássicos do marxismo, todo Estado é um órgão de dominação de classe, onde a classe dominante monopoliza em suas mãos o poder da violência e da repressão armada. Assim, todo Estado é um sistema de opressão, independente da forma democrática que assuma. Esta compreensão faz parte do Bê-a-bá do marxismo. No entanto, ela foi abertamente deturpada pelos dirigentes soviéticos com a formulação da tese do "Estado de Todo o Povo".
A elaboração desta tese vem do XX Congresso do PCUS, em que Kruschev se firmou na direção do Partido e do Estado soviético. Os capituladores hoje pretendem que, após a queda deste, o princípio da ditadura do proletariado foi recuperado pelo PCUS. Nada mais falso. Os revisionistas soviéticos limitam a vigência da ditadura do proletariado ao período que separa a tomada do poder da construção da base econômica do socialismo. Isto já era a política do PCUS na época de Kruschev.
A questão central do revisionismo de Kruschev é justamente o abandono da noção de ditadura do proletariado no próprio socialismo. E quanto a isto, os atuais dirigentes soviéticos seguem fielmente as suas pegadas.
Para elucidar a atual posição soviética, voltamos a recorrer ao texto de Chevstov:
“Na sociedade soviética, o sistema político era inicialmente um sistema de ditadura do proletariado. Na sociedade socialista desenvolvida, embora ela continue sendo uma sociedade de classes, já não existe uma classe dominante, assim como não existe, naturalmente, a ditadura de uma determinada classe" (7).
"Uma vez que na sociedade socialista não existem classes exploradoras e, por conseguinte, classes com interesses opostos, o Estado de Todo o Povo não desempenha já o papel de esmagamento dos inimigos de classe. Este traço, que caracteriza o Estado como fenômeno de classe, desaparece totalmente (…)” (8).
É interessante contrapor esta visão dos atuais dirigentes soviéticos com a seguinte colocação de Engels ao comentar o Programa de Gotha do Partido Socialista Operário da Alemanha numa carta ao dirigente revolucionário Bebel (publicada neste número de Princípios): "Os anarquistas nos lançaram repetidamente a face essa coisa de "Estado do Povo", apesar de que a obra de Marx contra Proudhon, e em seguida o Manifesto Comunista dizem claramente que, com a implantação do regime social socialista, o Estado se dissolverá por si mesmo e desaparecerá. Sendo o Estado uma instituição meramente transitória, que é utilizado na luta, na revolução, para submeter os adversários pela violência é um absurdo falar de Estado Popular Livre: enquanto o proletariado ainda necessitar do Estado, não o necessitará no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários, e tão logo que for possível falar-se de liberdade, o Estado como tal deixará de existir" (9).
Este problema da substituição da ditadura do proletariado pela tese do "Estado de Todo o Povo" não é uma questão meramente semântica. O abandono da perspectiva da luta de classes no socialismo tem profundas implicações para todo o desenvolvimento da sociedade. Se o Partido Comunista no poder perde o rumo e a sociedade não avança na revolucionarização da sua vida política, econômica, ideológica e cultural, as forças do conservadorismo ainda presentes na sociedade levam a melhor e a arrastam de volta à lógica do passado. É como uma canoa subindo o rio contra a corrente. Se os ocupantes pararem de remar, a embarcação não fica parada, será inexoravelmente puxada para trás. No caso do socialismo, perder de perspectiva a luta contra as forças conservadoras que se erguem na sociedade significa afundá-la no burocratismo paralisante. Sem mobilizar o proletariado e as massas camponesas para a luta de classes contra estas forças hostis, os órgãos de poder do povo trabalhador, como os sovietes em todos os níveis, os sindicatos etc. vão degenerando, perdendo seu caráter vivo, para se transformarem em instâncias puramente formais.
GESTÃO CAPITALISTA DA ECONOMIA
A grande tragédia do triunfo do revisionismo nos Partidos Comunistas no poder é justamente o fato de os desvios não ficarem restritos à esfera teórica ou de mera discussão política, mas se converterem em ações de Estado. No caso soviético, estas concepções passaram a dominar a política do PCUS justamente no período em que a URSS enfrentava o desafio de passar da fase de industrialização extensiva da sua economia para uma nova fase de desenvolvimento intensivo, onde a modernização tecnológica ganhava importância para aumentar ainda mais a produtividade do trabalho.
Com o abandono das posições marxistas revolucionárias este problema não foi abordado do ponto de vista da luta de classes e da mobilização da energia criadora das massas para superar as contradições que entravavam o pleno desenvolvimento da sociedade socialista. O PCUS não despertou o generoso entusiasmo revolucionário que caracterizou a participação dos trabalhadores soviéticos nos "Sábados Comunistas" da década de 1920 e no movimento Stakhanovista da década de 1930, no primeiro esforço de industrialização. Desta vez, o que predominou foi a perspectiva economicista mais estreita, buscando incrementar a produtividade do trabalho pela reintrodução de mecanismos capitalistas na gestão da economia soviética. Não cabe aqui analisar a fundo este processo que já descrevemos anteriormente no artigo "A Degenerescência Capitalista da União Soviética", publicado em Princípios n. 3. Vamos, no entanto, responder a alguns argumentos apresentados agora pelos capituladores para defender a "regeneração" da sociedade soviética.
O primeiro argumento apresentado é de que Brejnev, ao assumir o poder, revogou as medidas econômicas descentralizadoras implementadas por Kruschev e retornou a uma correta política socialista. No fundo desta colocação está uma visão que identifica socialismo com "centralização" e capitalismo com "descentralização". A questão assim está mal-colocada. O socialismo tem de viabilizar a mais ampla iniciativa descentralizada das massas através de um plano centralizado. O próprio capitalismo centraliza cada vez mais a produção num punhado de empresas monopolistas, na sua fase atual. A questão fundamental, portanto, é ver em que bases concretas se processa esta centralização/ descentralização.
É verdade que uma das primeiras medidas econômicas tomadas pela direção do PCUS após a queda de Kruschev foi o restabelecimento dos ministérios de planejamento central, que haviam sido abolidos por este e substituídos por 105 conselhos econômicos regionais. Mas esta "centralização" se deu justamente nos marcos de uma ampla reforma econômica implementada por Kossiguin em 1965 que liquidou com os mecanismos socialistas que restavam na economia soviética. Senão, vejamos o sentido das demais medidas das chamadas "Reformas de Kossiguin". O objetivo central da produção de cada empresa passou a ser a maximização dos lucros em nível local. Grande parte do lucro passou a ficar retido na própria empresa para reinvestimento em bens de capital. Foi abolido o abastecimento gratuito e centralizado de meios de produção do Estado para as empresas. As empresas passaram a comprar estes meios de produção, baseadas em empréstimos em longo prazo do banco estatal. Os diretores das empresas passaram a gozar de grande autonomia, passando a determinar o ritmo de produção, número de pessoas empregadas e níveis salariais na sua empresa.
Por tudo isto, não tem fundamento o argumento dos capituladores de que na URSS "o dinheiro não pode ser transformado em capital, não pode ser investido em meios de produção". Sob o sistema de "autogestão financeira" introduzido por Brejnev e Kossiguin, cada empresa financia a expansão de seu próprio capital, com os próprios lucros ou com empréstimos do Estado. O diretor nomeado toma as decisões sobre a elaboração dos recursos e, como ressalta o economista soviético A. Oinarov, "torna-se desnecessário sublinhar que se acha investido de todos os poderes necessários para executar suas obrigações" (10). A própria planificação econômica se dá em bases inteiramente novas. O Estado passa a atuar como capital financeiro e os meios de produção se transformam novamente em Capital.
No período de desenvolvimento socialista anterior, o Estado distribuía centralmente os meios de produção de acordo com o plano econômico elaborado por todo o povo trabalhador. As massas de operários e dos camponeses dos kholkhoses eram mobilizadas através de vários órgãos de controle para vigiar o processo produtivo e evitar qualquer desperdício ou esbanjamento de recursos. Agora, as grandes decisões econômicas ficaram restritas às direções das empresas e dos ministérios com base na autogestão financeira. O critério da "eficiência" passou a ser o lucro. Os produtores diretos perderam o controle sobre o processo produtivo. Os trabalhadores voltaram a ser tragados como meras peças no redemoinho da expansão do Capital, agora camuflado, em busca do lucro.
É evidente que este processo não se verifica sem contradições e percalços. Desde a sua implementação, e em particular nos últimos anos, tem havido uma luta aberta no Estado e no Partido da URSS entre diferentes setores de mando na economia. De um lado, dirigentes de ministérios centrais e seus protegidos se esforçam por manter a tutela sobre os dirigentes de empresa, restringindo seu grau de autonomia e dando cobertura às falhas econômicas dos diretores "fiéis". De outro, diretores de empresa lutam por aumentar a "eficiência" da economia ampliando a força reguladora do mercado. Exigem que os princípios da Reforma sejam levados às últimas conseqüências, para aumentar seus próprios poderes e autonomia.
Na curta administração de Andropov, e atualmente com a consolidação do mandato de Gorbachev, esta última perspectiva nitidamente levou a melhor. É por isso que a direção do PCUS hoje ataca abertamente o "esbanjamento, desperdício e corrupção" do período de Brejnev, propondo disciplinar a atividade de todas as empresas através do "aumento da responsabilidade, inclusive jurídica, de pessoas concretas (diretores, L.F.) pela conservação e devida utilização dos bens" (11). O importante é ressaltar que ambas as posições se dão nos marcos da Reforma que reestruturou globalmente a economia soviética em bases capitalistas após a ascensão do grupo Brejnev/Kossiguin ao poder.
A EXPORTAÇÃO DE CAPITAL PELA URSS
Outro argumento predileto dos neo-revisionistas é negar a validade da tese do "social-imperialismo soviético", alegando que ela foi formulada pela direção maoísta do PC Chinês, tendo em vista unicamente a disputa territorial com a URSS. Os partidos e organizações marxistas-leninistas teriam "caído no conto do vigário", cometendo o erro básico de tratar o imperialismo como uma mera política externa, e não como um sistema onde predomina a exportação de capital excedente pelos grandes monopólios.
Na verdade, a análise marxista-leninista vai bem mais fundo do que a imaginação simplista dos capituladores pode vislumbrar. Ela estuda sobretudo o processo pelo qual, com a implementação das medidas da Reforma Econômica, algumas empresas e às vezes ministérios começaram a levantar que não podiam usar integralmente os seus fundos de investimentos internamente nas unidades, pois a lucratividade das inversões sofreria uma queda. Isto nada mais é do que a formação de um capital excedente que acaba pressionando no sentido da expansão externa, para assegurar maiores lucros à custa da exploração da mão-de-obra em outros países. A política de agressão a outros povos, como nos casos de Tchecoslováquia, Eritréia e Afeganistão, é uma conseqüência do impulso expansionista que voltou a operar no sistema econômico soviético com a reintrodução de mecanismos capitalistas de gestão.
O artigo publicado na Princípios número 3 traz bastantes dados sobre as diversas formas utilizadas pela URSS para exportar seu capital. Nos últimos anos este processo não só se incrementou, como vem assumindo feições cada vez mais abertas e diversificadas. A imprensa nacional noticiou a visita ao Brasil de uma missão econômica soviética na segunda quinzena de novembro integrada, entre outros, por dois ministros. O principal negócio por trás dessa viagem é uma proposta soviética de investir capital no Brasil para a construção de um alto-forno para a produção de ferro gusa. O pagamento deste investimento será feito com a venda do ferro gusa à própria URSS! Este é um pequeno exemplo da ofensiva que o capital soviético tem dado nos últimos tempos em direção à América Latina, região considerada até aqui "quintal" exclusivo do imperialismo norte-americano. O próprio Gorbachev anunciou sua disposição de desenvolver ainda mais novas formas de contatos econômicos que vão além de simples relações comerciais visando "à exploração conjunta das novidades técnico-científicas, ao projeto e construção de empresas e a extração de matérias-primas" em outros países (12).
A CHAMADA "VIA NÃO CAPITALISTA"
Os investimentos soviéticos nos países da Ásia, África e América Latina são defendidos pela direção do PCUS como uma forma de ajudar os países receptores a se desenvolverem por uma via "não capitalista". Os marxistas-leninistas sempre denunciaram estes argumentos como mera demagogia revisionista. É difícil explicar como o Brasil ficará "menos capitalista" ao aceitar investimentos soviéticos para construir um alto-forno de ferro gusa. Agora os capituladores "descobriram" que Lênin e a Internacional Comunista também defenderam a tese de “desenvolvimento não capitalista” propugnada hoje pelo Kremlin.
As formulações de Lênin, no entanto, não têm nada a ver com a atual política de investir capitais em países dependentes com governos burgueses. Ele sempre vinculou a possibilidade da passagem dos países coloniais ao socialismo, sem passar pela fase de desenvolvimento capitalista, à conquista da hegemonia do processo nacional revolucionário pela classe operária através do seu Partido Comunista. Só assim a revolução poderia "queimar etapas" com a ajuda estatal de nações socialistas mais desenvolvidas para chegar ao socialismo por uma via não-capitalista.
Vejamos como a questão é tratada nos documentos do Segundo Congresso da Internacional Comunista, citado pelos neo-revisionistas: "Na sua primeira etapa a revolução nas colônias deve ter um programa que inclua reformas pequeno-burguesas, tais como a distribuição de terras. Mas isso não implica necessariamente que a direção da revolução deve ser entregue à democracia burguesa. O partido proletário deve, pelo contrário, lançar uma propaganda intensa e sistemática a favor dos sovietes e organizar sovietes de camponeses e de operários. Esses sovietes deverão trabalhar em estreita colaboração com as repúblicas avançadas, em ordem à vitória final sobre o capitalismo no mundo inteiro. Assim, as massas dos países atrasados, conduzidas pelo proletariado consciente dos países desenvolvidos, alcançarão o comunismo sem passar pelas diferentes etapas do desenvolvimento capitalista" (13).
Outra condição para que as nações socialistas mais desenvolvidas possam prestar ajuda a movimentos de emancipação nacional na transição para o socialismo é a existência de um mercado socialista mundial em oposição ao mercado capitalista mundial. Na seqüência da formação do campo socialista após a Segunda Guerra Mundial, o mercado capitalista único mundial se desintegrou com a formação de dois mercados opostos, um capitalista e outro socialista. Após as reformas da década de 1960, a economia da URSS e de seus aliados voltou a se reintegrar plenamente no mercado capitalista mundial. Assim, tornou-se impossível para a URSS polarizar o desenvolvimento de nações que passaram por revoluções nacionais e democráticas no sentido do socialismo.
Em relação a este aspecto, é bastante elucidativo um trecho do livro Eurocomunismo e Estado do arqui-revisionista espanhol Santiago Carrillo, justificando por que não defende a expropriação das multinacionais no seu país: "Hoje, mesmo na URSS, estabelecem-se muitos bancos de países capitalistas, oferecem-se contratos a empresas japonesa para organizar a exploração e utilização em comum do gás siberiano, instala-se uma filial da FIAT e fazem-se acordos semelhantes com empresas francesas e de outros países (…) Os capitalistas, desta forma, obtêm seus ganhos mas, ao mesmo tempo, ajudam o desenvolvimento econômico de socialismo (…) E, sendo assim, é evidente que uma democracia socialista na Espanha teria de manter uma política aberta às inversões estrangeiras e às multinacionais que conviessem ao nosso desenvolvimento econômico" (14). A própria prática soviética, portanto, não impulsiona as nações recém-libertadas a romperem os laços de dependência econômica ao grande capital ocidental. A capa da "via não capitalista" só serve mesmo para a URSS disputar em melhores condições espaços econômicos com o imperialismo ocidental em países como Argélia, Afeganistão, Etiópia, Tanzânia, Congo, Guiné-Bissau, Angola etc.
A QUESTÃO DA TRANSIÇÃO PACÍFICA PARA O SOCIALISMO
Um dos argumentos centrais também apresentados para "justificar" o retorno do PCUS ao marxismo revolucionário é de que a atual direção do Partido renegou a tese da "transição pacífica para o socialismo" que havia sido elaborada por Kruschev no XX Congresso. De fato, a Conferência de 1969 faz uma certa "flexão" em relação à política anterior de Kruschev. Critica-se a "tendência a ver numa eventual vitória eleitoral a única possibilidade de realizar a revolução socialista por via pacífica e a considerar a luta parlamentar como o meio principal exclusivo que conduz ao socialismo" (15). Mas continua-se afirmando que os partidos farão tudo ao seu alcance para que a transição ao socialismo se dê por mios pacíficos, sem no entanto afastar a possibilidade da luta armada. O recente relatório elaborado por Gorbachev para o XXVII Congresso do PCUS que se realiza em fevereiro de 1986 reafirma essa mesma política. Embora a aparente correção de rumo, a questão continua sendo colocada em bases inteiramente falsas pelos revisionistas soviéticos. Marx e Lênin chegaram a vislumbrar a possibilidade da transição pacífica para o socialismo como uma perspectiva inteiramente excepcional e rara. Lênin chega a escrever: "em casos particulares, a título excepcional – por exemplo, nalgum pequeno Estado depois de um grande vizinho ter realizado a revolução social – será possível a cedência pacífica do poder pela burguesia, se esta se convencer de que sua resistência será inútil e preferir conservar a cabeça" (16). O problema fundamental é que não depende do proletariado nem do seu Partido se o processo de revolução vai ser pacífico ou não. Tudo depende de como a burguesia e demais classes dominantes responderão ao clamor e à luta das massas trabalhadoras por mudanças profundas na estrutura social.
Até hoje, não existiu um processo revolucionário sequer onde as classes dominantes tenham aberto mão de seus privilégios, sem utilizar o terror e a violência mais extremada. Ao proletariado e aos povos cabe estarem preparados para defender com energia e por todos os meios necessários os avanços democráticos e as conquistas populares. Pregar a transição pacífica como uma "opção" dos comunistas implica relaxar a vigilância e a mobilização revolucionária dos povos, única força capaz de convencer as classes dominantes a “conservar suas cabeças".
O que está por trás da nova valorização da possibilidade da luta armada pelo PCUS, na verdade, é a nova etapa nas relações entre URSS e EUA no mundo. No período de Kruschev, estava no centro o esforço de reaproximação e colaboração com o imperialismo norte-americano. Por isso, em relação aos partidos comunistas se absolutizou a questão da transição pacífica. Mas ao par da reintegração da URSS no sistema capitalista mundial, a transformação do país numa potência igualmente expansionista gerou também uma tendência à confrontação com os EUA pela hegemonia do sistema. Aqui passou a interessar aos soviéticos explorar conflitos que debilitassem as bases do imperialismo norte-americano em diferentes regiões do mundo. Para estes casos, não se poderia descartar teoricamente a perspectiva da luta armada.
É neste mesmo contexto que se dá a alegada "mudança de posição" do movimento marxista-leninista nas críticas à política externa da URSS. Os neo-revisionistas consideram uma "incoerência" que antes se criticasse Kruschev por sua colaboração com o imperialismo norte-americano e depois se denunciasse Brejnev e seus sucessores por se armarem para o confronto com os EUA. O que eles não conseguem, ou não querem ver, é que o que mudou de fato foi a fase nas relações EUA x URSS no mundo.
Ao se reintegrar no sistema capitalista mundial como uma potência expansionista, a União Soviética teve de compensar sua relativa fraqueza econômica com o recurso rápido à força militar para responder às tentativas norte-americanas de minar e abalar suas posições. Na década de 1960, e sobretudo na década de 1970 com Brejnev, à medida que aumentavam os focos de disputa com os EUA, a URSS se voltou para uma impressionante escalada armamentista, montando uma agressiva máquina de guerra para a intervenção em todo o mundo. A invasão da Tchecoslováquia em 1968 marcou a entrada em operação do novo belicismo intervencionista soviético. Hoje, em oposição aos 450 mil soldados mantidos pelos Estados Unidos permanentemente no exterior distribuídos por 1.500 bases e facilidades militares em 32 países, a União Soviética mantém mais de 720 mil soldados estacionados fora de suas fronteiras, espalhados por 26 países do mundo.
Isto nada tem a ver com a política de se armar para a defesa do socialismo praticada no período de Stalin. Aqui, mesmo sob a mira das armas atômicas de Washington, a URSS nunca deixou de dar integral apoio às lutas revolucionárias dos povos contra o imperialismo. Hoje, alcançada a paridade bélica com os EUA, a União Soviética sacrifica as lutas de emancipação nacional dos povos e usa seu gigantesco poderio militar para impor seus próprios interesses hegemônicos de Estado, como no Afeganistão e na Eritréia. É evidente que as críticas dos partidos e organizações marxistas-leninistas ao revisionismo soviético não poderiam deixar de acompanhar esta evolução.
GRAVE PERIGO PARA A LUTA DOS POVOS
Por tudo que vimos acima, somos forçados a concluir que qualquer reconciliação política ou ideológica com o revisionismo soviético representa um grave perigo para a luta de emancipação do proletariado e dos povos. Não será este o caminho para o movimento marxista-leninista conseguir abordar concretamente o problema político das vias de transição ao socialismo em cada país. Muito se tem falado ultimamente sobre as alegadas diferenças de princípio entre o PCUS e os partidos eurocomunistas. Mas a verdade, como vimos acima, é que tanto as formulações dos eurocomunistas como as dos revisionistas chineses não fazem mais do que levar às últimas conseqüências as bases políticas e ideológicas do revisionismo soviético. O que o PCUS de fato abomina nos demais é que estes não se submetem automaticamente ao ditame político do Kremlin.
Para os marxistas revolucionários é especialmente doloroso constatar esta evolução na pátria de Lênin, berço da primeira revolução socialista no mundo. Mas não podemos cair na política da avestruz, que não quer ver, substituindo a triste realidade do PCUS com Kruschev e seus seguidores pelos nossos desejos de ter na URSS um poderoso baluarte da luta pelo socialismo no mundo. Justamente a principal lição que aprendemos com a experiência da revolução soviética é a mais absoluta necessidade de os partidos comunistas romperem com qualquer concepção ideológica revisionista para poder traçar o rumo político que leve a luta de emancipação dos povos à vitória.
* Luís Fernandes é colaborador de Princípios. De sua autoria já publicamos “A degenerescência Capitalista na URSS” (número 3) e “China, o socialismo que não houve”.
NOTAS:
(l) GORBACHEV, Mikhail. "Relatório sobre a convocação do XXVII Congresso Ordinário do PCUS", publicado em URSS – Uma Nova Etapa, Revan, 1985.
(2) JI, Li & QINGSHI, Guo. "Princípios que Regem as Relações com outros Partidos Comunistas", revista China y el Mundo, n. 4, Beijing Informa.
(3) CHEVSTOV, V. O PCUS e o Estado na Sociedade Desenvolvida, publicado pela Editora Progresso, Moscou, 1981, p. 9.
(4) Ver MUQIAO, Xue. Problemas de la Economia Socialista de China, Edições em Línguas estrangeiras, Beijing, 1981.
(5) Op. Cit., Chevstov, p. 13 e 16.
(6) Op. Cit., Chevstov, p. 25.
(7) Chevstov, p. 96.
(8) "Carta de Engels a Augusto Bebel", publicada em Obras Escolhidas, de Marx e Engels, Alfa-Omega, São Paulo, p. 229-230.
(9) OMAROV. Organização da Indústria e Construção na URSS, Editorial Estampa, Lisboa, 1976, p. 99.
(10) Op. Cit., Gorbachev, p. 19.
(11) Gorbachev, p. 48.
(12) "Resoluções do Segundo Congresso", em Os Quatro Primeiros Congressos da Internacional Comunista, Edições Maria da Fonte, Lisboa, p. 182-183.
(13) CARRILL, Santiago. O Eurocomunismo e o Estado, DIFEI, Rio de Janeiro, 1978, p. 97.
(14) LÊNIN, V.I. "Sobre a Caricatura do Marxismo e o Economicismo Imperialista", na coletânea Contra el Revisionismo, Progresso, p. 326.
(15) ZAGLADIN, V. O Movimento Comunista Internacional, 1o Volume, Edições Avante, Lisboa, 1977, p. 79.
EDIÇÃO 12, DEZEMBRO, 1985, PÁGINAS 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18