A Charge Política
No Brasil, a charge tem traçado este caminho com mais uma particularidade – a de consolidar seu caráter político, e aqui muito mais do que em outros países do mundo.
Se observamos bem, as ditaduras, particularmente a de 1964, têm cevado esse estilo, a tal ponto que foi difundida uma crença segundo a qual toda charge seria, por princípio, progressista, com alguns chegando a jurar que toda ela é antigoverno, é do contra, por sua própria essência.
O objetivo deste artigo é alinhavar algumas informações e opiniões sobre esta forma de arte e comunicação. Será enfocada aqui, com mais atenção, a sua ação nos últimos anos, particularmente durante o regime militar próximo-passado. Outra coisa que deve ser assinalada logo de início é que os nomes aqui citados não contemplam o universo dos chargistas em atividade, ou mesmo que tenham dado contribuições importantes nesse campo, exatamente porque com esta expansão da charge os nomes são inúmeros por este Brasil afora.
Vamos, desta forma, citar os que resumem as principais expressões e tendências.
É bom relembrar que o artigo tratará da charge política, ficando de fora, no momento, exemplos que teriam de ser estudados num artigo que tratasse do humor nacional na sua totalidade, como os recentes trabalhos do humor-metralhadora giratória, que usa no geral o texto jornalístico como forma de expressão e que tem no Papo-Figo (fundado no Recife em 1976) seu mais original e criativo exemplo, enquanto no Planeta Diário (Rio de Janeiro, 1985) a mais bem sucedida publicação de humor nos últimos anos.
HISTÓRICO
O registro da primeira charge impressa no Brasil data de 14 de dezembro de 1837. É de autoria do pintor Manoel de Araújo Porto Alegre e já trata de denunciar a corrupção na própria imprensa.
O termo "caricatura", hoje definidor do desenho que apresenta uma interpretação visual de alguém de forma diferente de sua real imagem fotográfica, é usado para se referir à charge (que deve ser o retrato de uma situação determinada), o que não é de todo incorreto. Afinal, surgiu baseada no nome dos irmãos Caracci, italianos de Bolonha que no século XVI inventaram de divulgar as gozações que desenhavam em seus cartões, esboços de pinturas "sérias" com as quais ganhavam a vida. A charge, ou caricatura, chegou ao Brasil, 200 anos depois que um certo padre Massani, lá na Itália, usou pela primeira vez o termo "caricatura", referindo-se ao trabalho dos Caracci. Mas, mesmo atrasada, chegou para ficar.
No Brasil Imperial, por exemplo, Angelo Agostini, imigrante italiano, reinou absoluto no campo da charge e da caricatura política, editando o jornal Revista Ilustrada, um dos mais eficientes testemunhos da visão crítica dos contemporâneos da família real. Além deste periódico surgiram outros como O Mosquito, Mephistópheles, Charivari. Em todos eles se encontra um retrato diferente do pintado pelo que poderíamos chamar de "grande imprensa" da época: um imperador indolente aos problemas do país, uma Corte de políticos conservadores, manipuladores e oportunistas, o escravagismo degradante – era, enfim, a denúncia do humor político no Segundo Império, por cima dos cronistas oficiais, assim como a defesa da abolição da escravatura.
A República, seus marechais, as oligarquias, as epidemias, as eleições e os golpes – tudo vai sendo registrado impiedosamente pela pena dos chargistas. Surgem novos periódicos de humor, recheados de charges políticas, como O Malho, O Mequetrefe, Careta, e mais tarde (não poderíamos deixar de citar) o histórico A Manha, do Barão de Itararé.
O HUMOR CONTRA A DITADURA
Nas ditaduras recentes do Brasil (o Estado Novo de 1937 e o regime militar de 1964), a censura à imprensa foi um traço de unidade. Alvo principal, o texto foi duramente atingido.
"Em outubro de 1937, senti de repente que a liberdade de opinião, como se fosse água derramada na areia, desaparecia entre as teclas de minha máquina de escrever", testemunha Antônio Callado, descrevendo também em 1964 "a vexatória tentativa de burlar a censura com a sofisticação, de procurar falar ao leitor por cima da cabeça do censor, de escrever de forma tão velhaca que o censor nada ali percebesse ofensivo ao Estado, enquanto o leitor ao contrário, tudo havia de compreender. O resultado, melancólico, é que ninguém entendia nada". A Censura tinha, portanto, total desenvoltura em ferir particularmente o texto: e isso não é difícil de compreender. Esta necessidade de se sofisticar – de chegar ao leitor através de frases que não estavam (nem podiam ser) escritas – tinha que facilitar o desenvolvimento de uma forma de comunicação ao mesmo tempo mais simples e dissimulada.
A esta tendência natural devemos acrescentar a triste realidade da leitura de jornais no Brasil. O texto foi forçado a se sofisticar e dissimular exatamente no país de menor índice de leitura de jornais de toda a América Latina. O Brasil, último colocado, lê proporcionalmente três vezes menos jornais que a República Dominicana, o penúltimo colocado, enquanto o Uruguai lê proporcionalmente 20 vezes mais jornais que nós. Se formos considerar as superpotências imperialistas, os Estados Unidos lêem 28 vezes mais, e a URSS, 67,3 vezes mais. E esses são dados tomados quando já não existia aqui a censura política!
Naquelas condições, a importância de uma forma de comunicação como a charge, simples e sub-reptícia, visual e usando pouco ou nenhum texto, tinha necessariamente que aumentar. Temos que considerar ainda o próprio caráter do desenho de humor, que deve trazer embutido o seu real sentido; deve forçar o leitor a procurar e encontrar a "segunda intenção" contida no desenho, numa ação instantânea, mas não explícita.
Quem conseguiria – na imprensa legal – alvejar o poder autoritário dos militares, já que isto não poderia ficar explícito, mas ao mesmo tempo tinha que ficar evidente? Aquela necessidade política de desmoralizar o regime encontrou um leito fluente no próprio sentido satírico da charge. Como não se podia escrever que "estes milicos são uns gorilas", uma boa charge macaqueando um fardado qualquer já passava essa opinião, ou melhor, já refletia uma opinião que era, sem dúvida, a da maioria da população – que, em muitos casos, recortava a tal charge e a passava adiante de alguma forma, muitas vezes transformada em piada oral.
Evidentemente a charge não tem o poder de romper qualquer censura, em qualquer situação política. Ela tem vantagens, mas não imunidades. Seu espaço aumenta ou diminui, como as demais formas de comunicação, de acordo com o avanço ou retrocesso das liberdades democráticas. Assim, quando a censura prévia caiu, em 1979, havia eliminado inúmeros desenhos de humor, ao lado de fotos, textos, discos e filmes. Só para citar um exemplo: logo depois da queda da ditadura, o jornal Movimento pôde abrir seus arquivos, deles tirando charges até então vetadas para o público, e com elas pôde inaugurar uma nova seção de página inteira (a última página), o Corta Essa!, publicando durante números a fio apenas desenhos censurados.
OS CHARGISTAS
Dado o golpe militar em abril de 1964, este já era "saudado" em setembro do mesmo ano com a publicação do livro Hay Gobierno?, reunindo charges de Claudius, Jaguar e Fortuna, dedicado, segundo os autores, ao naufrago espanhol que, chegando a uma ilha não deserta, perguntou se havia governo e, quando responderam que sim, disse: “SOY CONTRA!". O livro constitui uma denúncia vigorosa do caráter do recém-nascido regime e ao mesmo tempo é uma reportagem sobre seus primeiros dias.
Ao lado desses três, a ditadura encontrou importantes e experientes nomes da charge em plena atividade, como Millôr Fernandes (tradutor, teatrólogo, intelectual de múltiplas atividades e considerado o mais implacável dos humoristas, criador do antológico Pif-Paf na revista o Cruzeiro; na década de 1950). Ziraldo (cujo nome terminou virando sinônimo de chargista), Lan, Alvarus, Nássara, Loredano, entre outros.
A ditadura, com seu autoritarismo, sua violência, seus escândalos, sua situação trágica e ridícula ao mesmo tempo, compôs o caldo de cultura necessário ao surgimento de novas gerações de chargistas, que durante os 21 anos de regime militar, somados aos veteranos, consolidaram a posição do desenho de humor como meio de comunicação dotado de uma rara eficiência. O espaço retangular da charge tornou-se obrigatório em todo o país, a ponto de hoje, em cada estado, existir pelo menos um chargista diferente para cada jornal local.
Tal foi a importância do humor político na resistência democrática que, em 1969-70, na arrancada do fascismo, O Pasquim representou a mais eficiente trincheira existente na imprensa legal de então, chegando à histórica marca de 300 mil exemplares vendidos semanalmente em todo o país.
Antônio Callado, vivenciando pela segunda vez um período ditatorial, identificou muito bem esse processo: "Aconteceu que o Brasil, em geral ocupado pela censura sólida e latifundiária, começou a ser sub-repticiamente ocupado e colonizado pela caricatura. Os cartunistas são nossos posseiros. Tomaram a terra proibida do editorial, do comentário político, e nela se plantaram com ar ingênuo, de pincel na mão como se fosse um enxada".
A charge política, opinativa, denunciativa, desempenhou importante papel na resistência democrática, particularmente nos últimos anos. Forjou uma imagem avançada e progressista.
A CHARGE É, POR PRINCÍPIO, PROGRESSISTA?
Durante um debate realizado em abril de 1985 na Universidade Federal de Alagoas, a pergunta mais insistente dirigida aos chargistas presentes (Ziraldo, Paulo Caruso, Chico Caruso, Lapi, Lailson, Jorge de Sales) foi: "agora que a ditadura acabou, o que vai ser do trabalho de vocês?"
Este importante papel de denúncia, resistência e enfrentamento ao autoritarismo; papel de contestação aos governos militares e civis apaniguados do sistema – um papel progressista e oposicionista, como já dissemos – levou ao desenvolvimento de mitos, ao entendimento de que a charge política seria, obrigatoriamente progressista, ou ainda dotada de inevitável fim demolidor. Só funcionaria para se opor a um governo, e daí a ilação: se muda o caráter do governo, se deixa de existir um regime despótico, finda igualmente junto com ele o instrumento que teria se desenvolvido para combatê-lo, no caso a charge política.
Quanto ao mito do encerramento da atividade da charge política, a história não lhe dá tempo de proliferar. Como podemos ver, ela não só não sumiu, como "cresceu em todo o país o número de chargistas. Com as liberdades democráticas, a política se sofistica; deixa de existir o inimigo comum facilmente identificável. As colorações vão-se atenuando e passam a exigir uma maior sutileza – e os chargistas políticos estão formando-se mais e melhor que na época da repressão", como afirma (exclusivo) Paulo Caruso. Mas da charge política da Nova República trataremos logo mais.
Já o mito da charge como elemento em si, progressista e avançado, precisa ser esclarecido. Por um lado, esse mito supervaloriza uma forma de comunicação como se esta fosse superior às demais, dotada de vontade própria, seguindo sempre no rumo da revolução, independente do motorista. Por outro, supervaloriza o papel do chargista, que seria um ser sobre as falhas dos demais – só seria chargista quem tivesse idéias avançadas, política e ideologicamente acima dos demais comunicadores, infalíveis com suas penas de nanquim.
Evidentemente as condições objetivas de um país como o nosso – submetido ao imperialismo, dominado pelos monopólios, com o campo ocupado por um latifúndio retrógrado, tudo isso agravado pela imposição de um regime militar como o de 1964-85 – possibilitaram o avanço da charge política sobre a crítica de costumes, do sexo etc., dos chargistas progressistas e das idéias avançadas entre esses profissionais. Praticamente as charges atrasadas e preconceituosas desapareceram junto com seus autores, forçados para baixo pelo peso das lutas democráticas, das aspirações populares – do reflexo, enfim, da chamada opinião pública.
Mas existem chargistas e charges atrasadas, conservadoras, de direita – e de vez em quando acontece de surgir um trabalho que ajuda o atraso, mesmo que seu autor seja pessoa avançada. Na campanha de Tancredo, por exemplo, o genial Henfil, ao defender a posição petista de "diretas até a morte", investiu contra a opção mineira publicando numa última página da revista Isto É um desenho onde aparece um cidadão pró-Tancredo "atrás de uma moita com um negão" ao tempo em que justifica "é isso ou Maluf…" De uma só pernada explora o preconceito contra o homossexualismo e também contra os negros.
As charges, como não poderia deixar de ser, exprimem as posições políticas e ideológicas de seus autores, e estão sujeitas tanto a essas condições subjetivas, quanto às condições objetivas da realidade política e histórica do momento em que são criadas e desenhadas. Temos em nossa história exemplos de preconceitos contra a ciência – quando se tratou da questão do combate à febre amarela; contra os trabalhadores – quando estouravam as primeiras greves; ao marxismo, principalmente quando de sua divulgação no mundo. E este preconceito continua até hoje, inclusive fantasiado de "crítica de esquerda". Não podemos esquecer o preconceito contra a mulher, área onde se têm formado verdadeiros "especialistas".
O HUMOR NA NOVA REPÚBLICA
Aí está uma grande prova para a charge e os chargistas: acompanhar a transição democrática. Agora que os milicos saíram de cena, que o regime autoritário foi pras cucuias, quem vai ser o alvo? Se é para apoiar, como desenhar isso sem cair na bajulação? Como disse Paulo Caruso, o espaço da charge cresceu, e como se pode notar, ela continuou na luta, refletindo a batalha entre as forças avançadas e os setores atrasados da Nova República. Podemos mesmo dizer que a charge continuou no rumo progressista, sua marca no regime autoritário – o que já representa uma vitória, pois como vimos, essa forma de comunicação não possui um intrínseco caráter avançado. É uma vitória, portanto, das idéias democráticas mais avançadas, já que o povo continua a contar com essas "garatujas" ao seu lado.
Evidentemente ampliou-se o espaço para o desenho de humor como um todo – assim como para outras formas de expressão e de arte. O gênero da crítica de costumes tem um apetitoso desenvolvimento – se bem que temos de considerar que o componente político, social e ideológico continua presente e marcante nos melhores trabalhos, como, por exemplo, nos personagens de Angeli, que vivem suas vidas num real contexto social, são pessoas que não apenas são encontradas nos bares e nas esquinas de qualquer cidade do país, mas estão também vivenciando seus problemas existenciais, os mais íntimos sentimentos, nesta mesma conjuntura que nós vivemos. Assim como Luís Fernando Veríssimo e a sua Família Brasil ou o Ed Mort, por exemplo.
Mas, ao contrário do que sonhavam alguns, este espaço não tem roubado o da charge eminentemente política. Abriu-se um novo espaço, sem prejuízo da tradicional charge política, que se inova também a cada dia. Para citarmos um exemplo dessa riqueza, está aí o exemplo de Millôr Fernandes que pela primeira vez na carreira fez uma charge "a favor" e é bom não se deduzir disso que ele nunca tenha sido a favor de nada: não só em suas charges, mas em peças teatrais, artigos, entrevistas etc., sempre defendeu os objetivos democráticos e a liberdade de expressão. Só que sua marca é aprofundar uma das características da charge: defender algo atacando sua antítese. Para citar um caso atual, defendendo o pacote econômico, Millôr fez uma charge onde aparecem Delfim, Langoni e Galvêas, com a legenda: "Já pensaram se a reforma econômica fosse assinada por esses três". Aí está: não é inusitado o Millôr defender algo, mas sua marca é fazê-lo atacando o seu contrário. Pois bem, finalmente ele fez uma charge "elogiativa": caricaturou os ministros Funaro, Sayad e Pazzianoto "estourando a boca do balão" da inflação. E ainda tem gente dizendo que não há nada de novo no campo da charge política…
Mas vamos ficar por aqui, só com este exemplo, porque a caricatura da Nova República ainda está sendo traçada, a cada dia, a cada embate entre forças que empurram para frente e as que puxam para trás. Mas vamos todos acompanhar este retrato, e participar de sua criação.
* Ênio Lins é jornalista, chargista e colaborador de Princípios.
Bibliografia
– Hay gobierno?, Cláudius, Jaguar e Fortuna (1964).
– Antologia Brasileira do humor, Vol. I e II, L&PM (1976).
– Aberto para balanço, Fortuna (1980).
– Antônio Callado. “Prefácio”, para o livro de charges Aberto para balanço.
– História da Caricatura no Brasil, Herman Lima, Vol. I, II, III, IV (1963).
– Pedro II através da caricatura, Araken Távora (1975).
– Natureza Morta, Chico Caruso (1980).
– Sem Palavras, Chico Caruso (1984).
– Bar Brasil, Paulo Caruso (1984).
– Cadê a Graça que tava aqui, Canini (1983).
– Macambúzios e sorumbáticos, Luiz Gê (1981).
– Me segura que vou dar um traço, Nildão (1980).
– O que vier eu traço, Lailson (1981).
– 20 anos de prontidão, Ziraldo.
– Rango, Edgar Vasques (1975).
– Brasil 85, vários autores (1986).
– Careta (seleção das Melhores Edições).
– Vários autores (1983).
EDIÇÃO 13, DEZEMBRO, 1986, PÁGINAS 60, 61, 62, 63, 64, 65