Desde meados da década de 1970 a Organização Mundial da Saúde (OMS) vem dando extrema ênfase à denominada Assistência Sanitária Primária (ASP) como a maneira
mais eficaz de expandir a atenção médico-sanitária às populações em geral. Em 1977, em sua 30a Assembléia Mundial, a OMS lança a meta "Saúde para todos no ano 2000". Em 1978 realiza-se em Alma-Ata, União Soviética, a célebre Conferência sobre ASP, na qual foi a ASP foi declarada como a chave para se alcançar a meta de "Saúde para todos no ano 2000". Desde então, a literatura a respeito, divulgada principalmente pela OMS, vem aumentando significativamente. Esta mesma Organização tem lançado vários manuais técnicos discutindo uma série de questões práticas referentes à implantação da ASP.

Ao ser lançada a meta "Saúde para todos no ano 2000" e a seguir ao ser declarada a ASP como a chave para alcançá-la, deduz-se que a OMS entende ser possível resolver os problemas de saúde do mundo através do desenvolvimento deste modelo em cada país.
O Brasil, como seria de esperar, procura pôr em prática, pelo menos nas aparências, as recomendações da OMS e, atualmente, estas são temas de congressos, encontros, publicações, conferências etc.

Assim como os principais funcionários da OMS, vários técnicos brasileiros acreditam que, finalmente, o problema da assistência médica em nosso país será equacionado. Temos inclusive alguns "cardeais" da saúde pública que recebem polpudas verbas, para darem seus bordejos do Oiapoque ao Chuí apregoando as excelências da proposta.
É, pois, de grande atualidade tal proposta ser analisada para se procurar saber até que ponto representa um progresso social.

Pesquisamos a caracterização da proposta utilizando artigos e publicações da OMS, principalmente daqueles grupos ou pessoas que representam o pensamento da Organização, como seu diretor-geral, Halfdan Mahler, ou grupos constituídos, seguindo resoluções aprovadas em assembléias, para estudarem determinados aspectos da questão.

O QUE É ASSISTÊNCIA PRIMÁRIA

Iniciemos nossa discussão definindo ASP ou Cuidados Primários de Saúde (CPS):
"Os CPS são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país podem manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de confiança e autodeterminação. Fazem parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde" (1).

Da conceituação acima destacamos os seguintes itens: a) a proposta pretende dar cobertura universal à população; b) prevê que os serviços sejam oferecidos a um custo que o país possa manter em seu estágio atual de desenvolvimento; c) é parte integrante do sistema de saúde, do qual constitui o núcleo central e primeiro nível de contato ("porta de entrada") e, d) é considerada parte integrante do desenvolvimento social e econômico da comunidade.

Para alcançar seus objetivos, os CPS incluem as seguintes atividades: 1- educação referente aos problemas prevalentes de saúde e aos métodos de prevenção e controle; 2- promoção da distribuição de alimentos e da nutrição apropriada; 3- provisão adequada de água de boa qualidade e saneamento básico; 4- programas materno-infantis, inclusive planejamento familiar; 5- imunização, principalmente contra doenças infecciosas; 6- prevenção e controle de doenças localmente endêmicas; 7- tratamento de doenças e lesões comuns; e 8- fornecimento de medicamentos essenciais (1).
Em seguida, analisaremos alguns aspectos da proposta, que julgamos mais característicos.

O PRIMO POBRE DO SISTEMA DE SAÚDE

A que tipo de população a proposta é dirigida?

Se acreditarmos na formulação teórica da OMS, toda a população de um determinado país deve ser servida por tal sistema. Vejamos, por exemplo: o modelo é "igualmente válido para todos os países, do mais avançado até o menos desenvolvido” (1). Há uma grande preocupação no sentido de que a proposta não seja vista como um "parente pobre" do sistema vigente (2), ou seja, no sentido de que haja, na verdade, dois sistemas de saúde: um, de alta qualidade para atender à população de maior nível sócio-econômico e, outra – no caso a proposta em discussão –, para atender aos pobres.

No entanto, abundam as citações esclarecendo, na verdade, qual a população alvo desta proposta. Vejamos algumas: a proposta deve ser implantada "nas comarcas rurais mais afastadas, nas minas, nos bosques e zonas pesqueiras, onde vive e trabalha a grande maioria da população e onde os serviços de saúde, se os há, são muito deficientes" (3); ou então, deve-se dar "ênfase inicial nos grupos desservidos" (1). Esta mesma publicação (1) recomenda que seja atribuída alta prioridade a "mulheres, crianças, população que trabalha sob alto risco e setores desprivilegiados da sociedade"; diz também que os grupos desprivilegiados não têm acesso permanente aos serviços de saúde.

Constituem "talvez 4/5 da população mundial, vivem esses grupos principalmente em áreas rurais e favelas urbanas" (1). Um autor americano coordena um serviço de ASP aos índios da América do Norte (4). Como se depreende, realmente a proposta de ASP destina-se às populações desatendidas, tanto urbanas como rurais, incluindo também as populações sub-atendidas. Embora os documentos e escritos oficiais da OMS repisem a cada instante que o modelo deve servir a toda a população, indistintamente, vemos que tal postura prende-se mais à retórica do que à realidade. Seguramente, a ASP está orientada para ser o "parente pobre" do sistema sanitário de um dado país. Em outras palavras: a população de melhor nível sócio-econômico continua a receber assistência privada, privatizada, via seguro saúde, enquanto as populações de baixo poder aquisitivo recebem os "benefícios" da ASP.

ASSISTÊNCIA EFETIVA OU ADIAMENTO DE PROBLEMAS?

Podemos inquirir, a seguir, por que, a partir de determinada época histórica (meados da década de 1970), a assistência a essas populações desassistidas passou a ter grande importância. Em 1972, realizou-se a III Reunião dos Ministros da Saúde da América Latina com o objetivo de elaborar o Plano Decenal para as Américas até 1980. Na introdução ao documento então aprovado, os ministros de Saúde dizem que o objetivo central do Plano é "a extensão da cobertura com serviços às populações rurais e urbanas não atendidas e sub-atendidas.” (5). A mesma publicação, que reproduz o trecho acima, esclarece-nos a respeito:

"Nos diferentes países, e na medida em que se foi desenvolvendo o processo de extensão da cobertura de serviços, foram tomando importância as populações marginalizadas urbanas, principalmente aquelas das grandes cidades, que se aglomeram nos cinturões de miséria e que têm chegado a conformar um grupo de especial preocupação para os governos. Assim, a população rural e urbana marginalizadas, ou seja, os mais pobres entre os pobres, passaram a constituir prioridade" (5) (grifo nosso).

Na mesma linha de raciocínio, outro documento assim se expressa:
"As marcadas desigualdades que existem atualmente na situação sanitária das populações são causas de preocupação comum para todos os países e devem reduzir-se drasticamente" (6) (grifo nosso).

Vemos, assim, que tais populações desassistidas ou marginalizadas são causa de preocupação comum a todos os países. Aliás, também para os países capitalistas avançados, pois os CPS são também recomendados para setores desassistidos de sutis populações, quais sejam: trabalhadores migrantes, imigrantes, anciãos (7), índios (4).

Pela crescente organização popular em defesa de seus direitos mais elementares, os povos têm se insurgido contra as oligarquias dominantes em particular, e contra o modo de produção capitalista no geral, embora isto nem sempre seja claramente explícito. Entende-se, pois, que tipo de preocupação os governos têm em mente quando procuram tomar medidas para atender essas populações: procuram agir de maneira preventiva, impedindo ou dificultando a emergência de reivindicações várias, de greves, motins e revoluções.

Nesta linha de pensamento, como temos procurado mostrar e continuaremos mostrando, a OMS é uma poderosa aliada do imperialismo mundial. Procura apresentar-se como uma organização neutra, como já o declarou seu diretor-geral (B), para melhor granjear a simpatia de governos, entidades e pessoas progressistas do mundo inteiro, mas em essência representa os mais altos interesses imperialistas, no momento histórico atual. É uma entidade "tão neutra" como o são as Nações Unidas, às quais está associada, ou o Banco Mundial e outros organismos internacionais financiados quase que totalmente pelos países capitalistas avançados.

MULTIPLICIDADE DE SISTEMAS

Quando se discute a questão da organização dos serviços sanitários, tem fundamental importância saber se estão organizados em um sistema único de atendimento ou se comportam vários sistemas paralelos. O estudo desta questão nos leva a observar que na sociedade capitalista, dividida em classes, os serviços de atenção médico-sanitária se organizam para atender aos interesses das classes dominantes em primeiro lugar e, a seguir, aos interesses das outras classes, de acordo com o nível de organização ou a prioridade que ocupam na sociedade. Parece-nos óbvio que vários sistemas de prestação de serviços implicam diferentes graus de qualidade de serviço oferecido. Se não fosse assim, os serviços seriam únicos.

Para exemplificar, ninguém compara a qualidade do atendimento recebido pelo capitalista que procura o professor universitário em seu consultório, ricamente instalado no local mais atrativo da grande metrópole, por cuja consulta paga altos honorários, como aquele recebido pela velha senhora que vive de esmolas, habita a periferia desta mesma cidade e que procura um posto de atendimento médico do Estado.

Os serviços oferecidos serão os mesmos, com a mesma qualidade de atendimento a toda a população, se forem organizados como um todo único, seguindo as mesmas diretrizes para o atendimento das variadas camadas sociais. No Brasil, por exemplo, temos vários sistemas paralelos: a rede privada, os serviços do INAMPS (chamados de "medicina privatizada"), os serviços das Secretarias Estaduais de Saúde, os serviços das Secretarias Municipais de Saúde, os serviços das Cooperativas Médicas, os serviços especiais para funcionários públicos, forças armadas, diversas categorias profissionais etc. É lógico que a qualidade destes serviços varia com a população atendida. No geral, isto é o que ocorre na maioria dos países capitalistas avançados, como também nos países capitalistas menos avançados, dependentes do imperialismo mundial.

Vejamos, a seguir, como a OMS equaciona essa importante questão, ou seja: a OMS preconiza um sistema único de atendimento ou considera os CPS um serviço a mais, destinados a atender determinada população, conforme já a caracterizamos? Esta questão é facilmente respondida: em lugar algum a OMS propõe um sistema único de atendimento; pelo contrário, considera os CPS parte integrante dos serviços nacionais de saúde (1, 3).

Ao contrário do sistema único, a OMS prefere pregar a reorganização dos serviços sanitários "considerando os sub-setores público e privado e o sistema comunitário” (5) ou então recomendar, de maneira genérica, a reorganização da infra-estrutura sanitária (9).
Em um documento (6) são relacionados 6 princípios que se aplicariam em todos os sistemas de saúde baseados na ASP. Nenhum deles fala em sistema único. Ainda nessa publicação há referências à coordenação entre as instituições de saúde públicas, privadas e outras.

A SERVIÇO DA PRIVATIZAÇÃO

Não adianta, em alguns documentos e discursos, a OMS insistir que se devam tomar medidas enérgicas, promover a integração intersetorial e outras recomendações de efeito. Na prática, a proposta mantém os atuais privilégios de classe e mantém os interesses que estão à sombra da medicina privatizada (tipo INAMPS), de cuja política os maiores beneficiários são justamente os empresários do setor saúde. Não existem preocupações em coibir os abusos desses empresários, em favor do bem comum. Pelo contrário, conforme a OMS, os CPS devem ser reorganizados sem tocar no setor privado. Sabemos que a privatização do setor saúde visa ao lucro e que é responsável pelas distorções da assistência sanitária observadas em todos os países onde existe. A denominada "iniciativa privada", não só no setor saúde, mas em todos os outros, não se preocupa com o bem-estar dos indivíduos, mas procura o local onde o capital possa se multiplicar com maior intensidade no menor prazo possível.

Daí se dizer que qualquer reorganização dos serviços sanitários, na qual os serviços privados ou privatizados continuem a existir, significa manter os privilégios das classes que deles se beneficiam em detrimento do restante da população. Em conclusão, os CPS, tal como são recomendados pela OMS, visam, como vimos, a evitar as "preocupações" que os governos possam ter com as populações desservidas; e não se baseiam, em qualquer medida, em preocupações de ordem comunitária, onde se procura realmente resolver o problema de saúde das populações. Seria até estranho, incoerente, que tal preocupação houvesse; como explicar, na maioria dos países capitalistas, uma autêntica preocupação com a saúde dessa população e um descaso total em relação à questão do desemprego, da moradia, dos direitos humanos, da violência urbana?

Porém, nossos argumentos contra o caráter reformista dessa proposta, toda ela feita de modo a atender os altos interesses dos países imperialistas, não param aí. Vejamos a seguinte questão: como a OMS coloca a questão da luta de classes nas sociedades?

Por tudo o que já discutimos, é evidente que essa questão é ignorada. A sociedade é apresentada como formada de camadas com interesses homogêneos, de tal modo que o latifundiário e o camponês sem terra têm os mesmos interesses, ou que os executivos das grandes indústrias farmacêuticas internacionais estão tão preocupados com a saúde do povo de um país dependente como estão os cidadãos morando em favelas nas grandes metrópoles.

FAVORECENDO INTERESSES IMPERIALISTAS

Porque assim pensam pregam a conciliação, ou, usando o termo da OMS, a cooperação entre as classes, entre os países imperialistas e o restante dos países, entre os interesses das indústrias farmacêuticas internacionais e os interesses da população. Vejamos alguns exemplos:
"Todos os países devem cooperar (…) para assegurar os CPS a todos os povos, uma vez que a consecução da saúde do povo de qualquer país interessa e beneficia diretamente todos os outros países" (1) (grifo nosso).

Julgamos oportuno sublinhar o trecho acima. Veremos, adiante, que a resolução de alguns problemas de saúde nos países dependentes beneficia diretamente os países imperialistas.
Outro exemplo de "cooperação" entre os países dependentes e o capital internacional é representado pela indústria farmacêutica. Inicialmente a OMS alerta para o fato de que as indústrias farmacêuticas podem ameaçar a viabilidade dos programas de ASP. Mas logo apresenta uma solução:
"É possível orientar a oposição das indústrias farmacêuticas para canais positivos, fazendo-as interessar-se pela produção de equipamentos condizentes com a tecnologia a ser empregada nos CPS. Quaisquer prejuízos decorrentes da redução de vendas de quantidades limitadas de equipamentos caros seriam mais do que compensados pela venda, a grandes mercados ainda inexplorados, de maiores-quantidades de equipamentos e suprimentos mais baratos utilizados nos CPS” (1).

Sabe-se que nos países capitalistas dependentes quase 100% da indústria farmacêutica é estrangeira. Segundo a OMS, os lucros das mesmas podem ser "mais do que compensados" desde que se adaptem às novas condições, produzindo os equipamentos que esses países necessitariam e que são chamados de "tecnologia apropriada". Vê-se que as empresas multinacionais, além de serem intocáveis, terão, inclusive, maiores possibilidades de lucros. Este é o modelo de atenção sanitária que o imperialismo quer impor aos países dependentes e que a OMS, tendo à frente o Dr. Halfdan Mahler, seu diretor-geral, assume o papel de camelô na sua divulgação. Aliás, é o próprio Mahler quem opina que os governos do Norte e do Sul podem diminuir suas "zonas de fricção e aumentar as de colaboração" (8). Esta divisão de países, ou do mundo, em Norte e Sul, frequentemente citada por Mahler. define bem uma determinada corrente ideológica – a social-democracia – chefiada por Willy Brant. Voltaremos a este assunto para mostrar com maiores detalhes a quem a OMS e seu diretor-geral servem.

Acreditamos que as questões que vimos analisando já seriam suficientes para desmascarar a proposta de ASP e mostrar como a mesma serve ao imperialismo. No entanto, esta argumentação tornar-se-ia incompleta se deixássemos de analisar a maneira com que a OMS coloca a questão da ajuda internacional. Para se aquilatar melhor a proposta em relação ao capital financeiro internacional, basta dizer que a ajuda internacional (tanto técnica como financeira) é considerada parte integrante da proposta (1, 3, 8), o que beneficia esse capital internacional. Na Conferência Internacional de Alma-Ata aprovou-se que: “(…) os países ricos estarão agindo acertadamente se aumentarem substancialmente a corrente de recursos de CPS para os países em desenvolvimento” (1).

Por que os países ricos estarão procedendo acertadamente se assim agirem? Vejamos a explicação de uma pessoa insuspeita, no caso, o Dr. Mahler que, como ele mesmo diz, dirige uma organização "neutra":

"Por que motivo o mundo desenvolvido deve contribuir com sua ajuda? Porque neste processo de ajuda não fará mais que ajudar-se a si mesmo. Tomemos o caso da erradicação da varíola. Paradoxalmente, são os países ricos os que estão fazendo, segundo uma estimativa moderada, economias anuais no valor de dois bilhões de dólares. Pareceria razoável que, pelo menos, a metade destes benefícios revertesse aos países em desenvolvimento; estes últimos participaram, em boa hora, na campanha para favorecer os países desenvolvidos. Na Africa, por exemplo, a varíola não se manifestava em formas muito graves. Era possível conviver com ela. Em uma zona onde um milhão de crianças morre de malária, não seria mais importante erradicar a varíola. Sem dúvida, fiel a seu compromisso de solidariedade mundial, a África teve de erradicar a varíola” (8) (grifo nosso).

Note-se, entre parênteses, o que Mahler entende por solidariedade internacional. Para nós, esse trecho seria suficiente para mostrar a quem a proposta interessa em primeiro lugar. Porém, Mahler quer convencer até o imperialista mais renitente que a proposta lhe interessa. E continua:
"Sem dúvida, é provável que onde os países desenvolvidos ganhem mais é no conhecimento de como haverão de abordar seus próprios problemas de saúde mediante a aplicação de métodos que estão se desenvolvendo no Terceiro Mundo, o que suporia uma espécie de transferência invertida de tecnologia (…). Os países desenvolvidos começaram a compreender os enormes benefícios que podem derivar de uma nova ordenação do desenvolvimento. O fato já começou a se produzir; com efeito, podem os senhores abrir o informe da Comissão Brandt e ver como se está compreendendo pela primeira vez que interessa aos países mais desenvolvidos gerar mercados no mundo em desenvolvimento.

Somente assim poderão tais países manter seu potencial de desenvolvimento. Tal princípio está aceito na atualidade" (8) (grifo nosso).
Deixemos ainda Mahler com a palavra. Ele é um excelente propagandista:
"Exige inclusive (a proposta da ASP) que os países estejam dispostos a sacrificar parte da soberania nacional em questões de saúde para favorecer a solidariedade sanitária internacional" (8) (grifo nosso).
Diante de tamanha profissão de fé aos interesses imperialistas, não podemos senão sorrir ao ler o seguinte:

"A OMS desempenhará um papel principal (…) convencendo os bancos e fundos internacionais e os organismos multilaterais e bilaterais da necessidade de que adotem políticas resolutamente favoráveis à concessão de créditos e empréstimos para a Estratégia (de implantação da ASP)" (6) (grifo nosso).

PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA E DECORATIVA

Ainda que de maneira sumária, a questão da participação comunitária merece alguns comentários. Embora os documentos falem que a população deva participar "no planejamento, organização, operação e controle dos CPS" (1), é impossível que, sob o capitalismo, ela possa se manifestar livremente sobre as grandes questões nacionais. Se tal fosse possível é provável que a questão da assistência sanitária já teria sido resolvida no mundo, pois as reivindicações por melhor saúde e melhores condições de vida praticamente têm acompanhado a história da humanidade. Quando a questão não leva em conta a luta de classes, como no caso em discussão, a participação comunitária só pode ser entendida do ponto de vista reformista, como instrumento, por exemplo, de obtenção de mão-de-obra barata, como se vê nos relatos de várias experiências da ASP em diferentes partes do mundo. Ou então atribuir-se à população papel decorativo, chamando a isso de participação comunitária, mantendo intocáveis tanto o autoritarismo como a antidemocracia que impera nas sociedades burguesas para com as classes oprimidas. A própria Conferência Internacional de Alma-Ata reforça este ponto de vista quando declara: "podem (…) os membros da comunidade contribuir para os CPS com recursos humanos, financeiros e de outra natureza" (1) (grifo nosso).

Preocupados com a participação meramente decorativa, três autores assim se expressam:
“ (…) deve haver uma verdadeira delegação de autoridade e de poder, assim como de responsabilidade (à comunidade). Por exemplo, os participantes devem poder influir em certas questões como o estabelecimento das prioridades, a seleção e a demissão do pessoal de saúde, as dotações orçamentárias e o horário de funcionamento das instalações de saúde. Uma situação, na qual os representantes da comunidade figuram unicamente com fins decorativos (…), enquanto o verdadeiro poder continua sendo exercido de maneira centralizada e tradicional, não pode ser considerada como uma verdadeira participação" (10).

No entanto, logo a seguir, esses mesmos autores expressam estranha opinião. Argumentam que se uma oligarquia impopular ou uma ditadura domina determinado país, seria visto com extrema desconfiança pela população um projeto partindo de tal governo, que pregasse a participação popular. Mostrando que os projetos de ASP devem se adaptar à situação política existente, mesmo que seja representada por uma ditadura, os referidos autores recomendam:

"Nesta situação é possível que somente caiba esperar uma verdadeira contribuição ao desenvolvimento mediante pequenos projetos de tipo voluntário. Tratar-se-á, sem dúvida, de empresas muito arriscadas, que podem fracassar, porém, as poucas que resultem eficazes serão certamente estimulantes" (10).

ESCAMOTEANDO A VERDADE

A própria abordagem sobre as causas das doenças é retrógrada, ultrapassada. Sabemos que as doenças estão relacionadas aos meios de vida e que estes são determinados, em grande medida, pelas relações de produção. No sistema capitalista a relação básica de exploração é a representada pela burguesia (classe exploradora) e pelo proletariado (classe explorada). No entanto, conforme diz a superestrutura capitalista, que se desenvolve a partir desse tipo de relações entre os homens, todos os homens são iguais. Sendo assim, as classes dominantes não podem aceitar o fato de serem elas, graças à dominação que exercem sobre a maioria da população, as geradoras indiretas da maioria das doenças que incidem nesta população. Na prática, isso significa que a população passa a ser responsabilizada diretamente por suas doenças, como, por exemplo, pela desnutrição infantil, pelos acidentes de trabalho etc.

É verdade, algumas vezes (3) se reconhece que os problemas de saúde dos países subdesenvolvidos estão intimamente relacionados à pobreza, à desnutrição, à falta de água potável e a outros fatores de risco oriundos do meio ambiente. Nem podemos negar que é comum encontrarmos a expressão "são necessárias medidas enérgicas", para resolver essas situações. Em um documento, por exemplo, encontramos o seguinte: "Os CPS (…) envolvem, além do setor da saúde, todos os setores e aspectos correlatos do desenvolvimento nacional e comunitário, mormente a agricultura, a pecuária, a produção de alimentos, a indústria, a educação, a habitação, as obras públicas, as comunicações e outros setores, e requerem os esforços coordenados de todos esses setores" (1).

Note-se que todos esses fatores são relacionados no mesmo nível de igualdade, com o mesmo peso específico. Isso permite camuflar as relações de produção, caracterizadas no regime capitalista pela dominação de uma classe por outra, ou seja, do homem pelo homem. Além dessa camuflagem, é possível afirmar que a chamada ocasional aos fatores ambientais como causadores de doenças não passa de mera retórica, da atualização de uma linguagem já gasta e desacreditada, a qual consiste em incriminar a população por suas doenças assim como os fariseus burgueses e pequeno-burgueses incriminam os pobres pela miséria em que vivem. De nada valem, por exemplo, frases do tipo de que deve haver “(…) aumento da produção e do emprego e uma distribuição mais equitativa da renda pessoal” (1), se não se diz como isso deve ser conseguido.

No entanto, a idéia fundamental de que a população é responsável pelas doenças que tem aparece com grande frequência. Vejamos alguns exemplos:
"A Conferência (de Alma-Ata) destacou a importância da participação comunitária integral e organizada da ulterior autoconfiança (7) com que indivíduos, famílias e comunidades assumem maior grau de responsabilidade por sua própria saúde" (1) (grifo nosso).
“(…) se a saúde não começa no indivíduo, no lar, na família, no local de trabalho e na escola, nunca alcançaremos o objetivo da saúde para todos" (8).

Note-se bem: a saúde para todos não será o resultado de profundas mudanças sociais, mas sim de mudanças no indivíduo, na família etc.
Sobre questões tão importantes, é sempre recomendável ouvir as opiniões de Mahler; são sempre esclarecedoras:
"O estado de saúde dos pobres depende em grande medida de uma combinação de desemprego (e subemprego), pobreza, baixos níveis de educação, más moradias, saneamento deficiente, desnutrição e falta de vontade e iniciativa para introduzir mudanças positivas. Seria ilusório esperar que nessas populações se produzam mudanças sanitárias substanciais enquanto não se eliminem ou se reduzam tais obstáculos" (8) (grifo nosso).

Continuemos ouvindo Mahler; sempre é útil:
"A auto-responsabilidade permite às pessoas desenvolverem livremente seu próprio destino. Tal noção é a essência da ASP" (8) (grifo nosso).
Desde quando, no capitalismo, alguém pode desenvolver seu próprio destino? Mahler insiste:
"Os indivíduos e as famílias são, naturalmente, afetados pela sociedade onde vivem, mas também influenciam essa sociedade. Em última análise, é deles a escolha" (11) (grifo nosso).
Traduzindo Mahler: pobre é quem quer; doente é quem quer. No capitalismo as pessoas podem "desenvolver livremente seu próprio destino. Em última análise, é delas a escolha".

Temos mais alguns exemplos. Com a palavra, novamente, o diretor-geral da OMS, o "progressista" Halfdan Mahler:
"É fora de dúvida que a sobrevivência dos indivíduos e das famílias requer um mínimo absoluto de recursos de produção e de consumo, mas, além deste mínimo, faltam muitas vezes a inventiva, os conhecimentos ou os tipos de organização sem os quais não há verdadeira saúde" (3) (grifo nosso).
A desnutrição é colocada como consequência da "fecundidade incontrolada" e não devido à questão da posse da terra ou da exploração em que vive o povo, o qual é impedido de se alimentar adequadamente. Por outro lado, a "fecundidade incontrolada" é considerada uma irresponsabilidade da população, a qual deve ser esclarecida a respeito. A desacreditada teoria que relaciona o grau de instrução, o número de filhos e a desnutrição infantil é endossada por Mahler:

"Tampouco ninguém ignora a relação que há entre o grau de instrução das mulheres e o tamanho das famílias e a desnutrição infantil” (3).
Após essas idéias reacionárias, um pouco de demagogia vai bem: "Em poucas palavras, não se remediará a desnutrição sem desenvolvimento social" (3). Porém, igualmente em poucas palavras, Mahler se contradiz quando afirma de que modo a OMS está procurando controlar as deficiências nutriciais: “(…) por meio da distribuição direta de vitaminas ou pela adição de fortificantes aos alimentos" (3).

A questão dos acidentes de trabalho – que somente na América Latina ceifam anualmente a vida de cerca de 50 mil trabalhadores (5) – não merece nenhuma prioridade nos planos da OMS. Uma das poucas referências encontradas não foge à regra do que vimos analisando:
"É necessário informar, além disso, ao pessoal de saúde a respeito dos riscos presentes nos lugares de trabalho de seus países e de que forma os trabalhadores podem aprender a evitar estes riscos" (10) (grifo nosso).

Ou seja, segundo tais argumentos os trabalhadores são os responsáveis pelos acidentes de trabalho porque são ignorantes.
Acreditamos ter mostrado, com base na literatura considerada oficial da OMS, no que consiste a ASSISTÊNCIA SANITÁRIA PRIMÁRIA. Igualmente acreditamos ter demonstrado que o modelo procura adaptar-se às condições políticas existentes em cada país, mesmo que essas relações sejam caracterizadas como ditaduras ou governos impopulares. Pensamos também que a análise metafísica, não levando em conta a luta de classes, tenha ficado clara, assim como tenham ficado evidentes as idéias retrógradas que estão por trás das discussões sobre a etiologia das doenças.

Todos os povos têm direito à saúde. Mas a saúde plena somente virá com a libertação dos povos do jugo da opressão capitalista, com o triunfo do socialismo. Acreditar que a questão sanitária possa ser resolvida com o auxílio de algumas mudanças na estrutura social também caracteriza reformismo, um pouco mais elaborado, próprio dos fariseus pequeno-burgueses, que sonham convencer a burguesia de que devem abrir-mão, voluntariamente, de seus privilégios na sociedade.

O modelo de ASP proposto pela OMS não resolveu, nem resolverá, o problema de saúde da maioria da população do mundo porque não leva em conta as condições objetivas das sociedades no momento histórico atual.

Acreditamos que a própria organização sanitária, assim como o impulso na cultura, nas ciências, nas forças produtivas, se forja no decorrer da luta de libertação dos povos. Aliar a luta de libertação à melhoria das condições sanitárias é um desafio que devemos aceitar de bom grado.

* Nilton Tornero é médico sanitarista, mestre em saúde pública, professor adjunto da Universidade Estadual de Londrina, PR, colaborador de Princípios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE/ UNICEF. Cuidados primários de saúde. (Relatório da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde. Alma-Ata. 6-12 de setembro de 1978). Brasília. Unicef, 1979.
(2) ORGANIZACION MUNDIAL DE LA SALUD. Formulación de estratégias con el fin de alcanzar la salud para todos en el ano 2000, Genebra. OMS, 1979.
(3) MAHLER. H. La OMS y el Nuevo Orden Económico. Crónica de la OMS. 30: 231-240. 1976.
(4) BATHKE . J. “EL ayudante de médico en 105 servicios de salud de las colectividades de indios de Norteamerica”. In: PITCAIRN, D. M. & FLAHAULT. D. (Ed.) El ayudante de medicina: personal de assistência sanitaria de grado intermedio. Genebra. OMS. 1975. p. 81-88.
(5) ORGANIZACION PANAMERICANA DE LA SALUD. Salud para todos en el ano 2000: estratégias. Washington. D. C., OPS. 1980 (Doc. of. 173).
(6) ORGANIZACION MUNDIAL DE LA SALUD. Estratégia mundial de salud para todos en el ano 2000. Genebra. OMS. 1981.
(7) Actividades de la OMS en 1975. Informe anual del Director General a la Asamblea Mundial de la Salud e a las Naciones Unidas. Genebra. OMS. 1976. (Actas oficiales, 229).
(8) MAHLER. H. EI sentido de "la salud para todos en el ano 2000". Foro Mundial de la Salud, 2 (1): 5-25. 1981.
(9) Saúde para todos no ano 2000. A saúde no mundo: 3-5. fev/mar 1981.
(10) KLECZKOWSKI. B. M.: ELLIG., E. H. & SMITH. D. L. “El sistema sanitário al servicio de la atencion primária de salud”, Genebra. OMS. 1984 (Cuadernos de Salud Pública 80) (Citações: p. 43-44; 45).
(11) MAHLER, H. Saúde para todos preocupação de cada um. A saúde no mundo: 2-5. abr/mai 1983.

EDIÇÃO 13, DEZEMBRO, 1986, PÁGINAS 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52