Para abordar este problema temos de nos reportar preliminarmente à discussão da própria natureza do socialismo feita por Marx e Engels. Os fundadores da teoria do socialismo científico nunca formularam um "anteprojeto" do que "deveria ser" a futura sociedade socialista. Nem poderiam, pois sua crítica aos socialistas utópicos se baseou justamente na negação dos intricados e complexos modelos intelectuais de "sociedades perfeitas", elaboradas totalmente à margem da luta de classes na sociedade real. Mas, analisando as contradições básicas da sociedade capitalista, eles conseguem não só fundamentar cientificamente a inevitabilidade do socialismo como também apontar as suas principais tarefas econômicas.

Segundo a teoria marxista, a contradição fundamental que dilacera o capitalismo é a que confronta o caráter privado da apropriação com o caráter cada vez mais social da produção na sociedade. Ou seja, a propriedade dos meios de produção se concentra nas mãos de uma ínfima minoria – a burguesia – enquanto o processo de produção concentra cada vez mais nas grandes fábricas a classe majoritária na sociedade – o proletariado. Isto, por sua vez, aguça a contradição entre a "anarquia" que reina na economia como um todo – isto é, o trabalho produtivo de homens e mulheres submetido à operação de forças de mercado que eles não dominam – e o caráter cada vez mais planejado, organizado e científico dessa mesma produção no interior de cada empresa. A tecnologia e a ciência se desenvolvem ao extremo enquanto generalizam-se a miséria e a penúria para a maioria da sociedade, levando a economia capitalista a viver crises sucessivas e cada vez mais profundas.

Para Marx, a superação destas contradições intrínsecas ao capitalismo aponta necessariamente para a revolução socialista dirigida pelo proletariado. Após tomar o poder de Estado em suas mãos, os trabalhadores enfrentam tarefas econômicas bem determinadas para construir uma nova sociedade sem classes. Em primeiro lugar, eliminar a propriedade privada na economia socializando o conjunto dos meios de produção. E, nesta base, acabar com a "anarquia" na produção, passando a planificar conscientemente o desenvolvimento equilibrado, harmonioso e contínuo do conjunto da economia como se se tratasse de uma única e gigantesca fábrica.

Assim, após eliminar a exploração de classe, a primeira fase desta nova sociedade comunista (a que convencionamos chamar hoje de socialismo) tem como tarefa central eliminar gradativamente as diferenças de classe herdadas do capitalismo, como a distinção entre o trabalho manual e intelectual, entre trabalhador rural e urbano, entre campo e cidade etc. Dessa forma, o alto nível de desenvolvimento científico e tecnológico acumulado pela humanidade passaria a reverter em benefício de todos, e não só de uma parcela minoritária da sociedade. Esta concepção tem, inclusive, implicações filosóficas mais profundas para a teoria marxista. Marca a passagem do "Reino da Necessidade", onde a humanidade está dominada pela ação de forças externas incontroláveis (sejam elas intempéries das forças da natureza ou a ação "cega" das forças de mercado), para o "Reino da Liberdade", onde a humanidade domina conscientemente as leis da natureza para o seu bem-estar coletivo. Como dizia Marx, é a passagem da pré-história para a História da sociedade humana.

Particularidades da construção do socialismo na URSS

Nas condições concretas do capitalismo no Século XIX, Marx avaliava que as primeiras revoluções socialistas vitoriosas eclodiriam justamente nos países mais adiantados do sistema, onde o capital estava mais desenvolvido e a classe operária mais concentrada. Com isto, poder-se-ia aplicar desde o início a técnica mais avançada já existente no capitalismo para a construção da nova sociedade socialista. Mas a passagem do capitalismo para a sua etapa imperialista, na virada do século, possibilitou que a primeira revolução socialista vitoriosa no mundo eclodisse na Rússia, um país que, embora imperialista, mantinha um acentuado atraso econômico e cultural em relação às demais potências capitalistas. Isto colocou problemas e desafios novos para a teoria marxista.

O proletariado tomou o poder num país basicamente agrário, economicamente atrasado, com predomínio da pequena produção, e ainda por cima arruinado por sete anos seguidos de guerras. Logo após a revolução, o próprio Lênin identificava cinco tipos diferentes de estruturas econômico-sociais na URSS:

1. A economia camponesa, patriarcal, isolada do mercado;
2. a pequena produção mercantil (abarcando aí a maioria dos camponeses);
3. o capitalismo privado;
4. o capitalismo de Estado; e
5. o socialismo (1).

Nestas condições, seria possível cumprir as tarefas econômicas da revolução socialista descritas acima?

A direção do Partido Bolchevique respondeu a esse desafio separando o esforço de construção da base econômica do socialismo em duas fases distintas. Na primeira, o período da Nova Política Econômica (NEP), foram adotadas medidas de concessão ao capitalismo, tanto interna quanto externamente, para reorganizar e desenvolver a economia atrasada e devastada. Nesta fase, Lênin defendeu inclusive o fortalecimento inicial do capitalismo de Estado, junto com o setor socialista, para se contrapor à dispersão da pequena produção mercantil e do capitalismo privado na economia. Ao mesmo tempo, o jovem poder soviético conduziu ampla campanha para a eletrificação completa do país e despertou o generoso entusiasmo das massas trabalhadoras em iniciativas como a dos "Sábados Comunistas", onde operários "doavam" um dia de trabalho por semana ao esforço de fortalecimento do setor socialista da economia. A tolerância com a iniciativa privada, no campo e na cidade, bem como as concessões oferecidas ao capital estrangeiro, eram apresentadas abertamente ao povo soviético como um recuo em direção ao capitalismo, necessário para criar as condições para uma nova ofensiva de socialização mais adiante.

A segunda fase veio com o enorme esforço de industrialização socialista e coletivização da agricultura nos dois primeiros planos quinquenais (de 1928 a 1932 e de 1933 a 1937). As concessões anteriores foram suspensas e, ao término do segundo plano quinquenal, os últimos setores capitalistas da economia já tinham sido socializados. Estavam criadas as condições para a planificação centralizada da economia como um todo. O Estado passou a alocar centralmente os meios de produção para as empresas, de acordo com as metas do plano econômico elaborado com a participação de todo o povo trabalhador. Os operários e camponeses das fazendas coletivas eram mobilizados através de diferentes órgãos de controle para vigiar o processo produtivo e evitar qualquer desperdício ou esbanjamento de recursos. Data deste período o famoso movimento Stakhanovista, onde se multiplicava no seio dos operários e camponeses a procura de mecanismos e idéias para racionalizar a produção na economia e superar as contradições que entravavam o seu desenvolvimento. No tocante a suas relações econômicas externas, a URSS não admitia a exportação ou importação de capitais, por entender que isto implicava a reprodução de relações capitalistas de produção. Nesta base, enquanto os países capitalistas amargavam os efeitos da Grande Depressão de 1930, a economia socialista da União Soviética alcançava os mais elevados índices de crescimento contínuo e sustentado da história da humanidade, só interrompidos pela devastação da Segunda Guerra Mundial.

Dadas as condições de atraso da Rússia pré-revolucionária, este esforço de construção da base econômica do socialismo se deu principalmente através da industrialização extensiva. Ou seja, procurava-se aumentar a produção da economia fundamentalmente pela montagem de novas unidades de produção com base na técnica mais moderna. A partir da década de 1950, esta fase já estava, no fundamental, ultrapassada. Colocava-se um novo desafio para o socialismo na URSS: inaugurar uma nova fase de desenvolvimento mais intensivo da economia, dando ênfase à modernização tecnológica dentro das empresas já constituídas para aumentar a produtividade geral do trabalho na economia. Era necessário mobilizar mais uma vez a energia criadora dos trabalhadores soviéticos para alcançar e superar as conquistas da revolução técnico-científica que se operava nos países capitalistas.

Este desafio relaciona-se com as particularidades da construção do socialismo em países que não eram os mais adiantados do sistema capitalista. O mesmo desafio é enfrentado hoje pela Albânia socialista.

O surto revisionista e suas contradições

Só que com a ascensão do grupo de Nikita Kruschev à direção do PCUS no final da década de 1950, ele passou a ser encarado de forma pragmática e imediatista, perdendo por completo a perspectiva das tarefas da transição ao comunismo completo apontadas pela teoria marxista. Optou-se pelo caminho aparentemente mais "fácil de procurar modernizar a produção com a reintrodução de mecanismos capitalistas na gestão da economia soviética. Assim, de imediato, investiu-se contra o caráter centralizado da economia socialista. Os ministérios econômicos centrais foram abolidos e substituídos por 105 conselhos econômicos regionais. Os poderes e autonomia dos diretores de empresa e dos órgãos econômicos locais foram alargados. Passou-se a reintegrar economia soviética no mercado capitalista mundial, dentro da ótica de "absorver" os avanços tecnológicos do Ocidente. Em suma, foram liberadas forças centrífugas na economia que apontavam num direção diametralmente oposta à construção de uma sociedade comunista completa.

Já tivemos oportunidade de analisar este processo mais detalhadamente em artigos publicados na revista Princípios n. 3 e n. 12. O que gostaríamos de salientar aqui é que após se consolidar no poder, o grupo de Kruschev se dividiu em duas correntes básicas representando diferentes setores de mando na economia. De um lado, os diretores e administradores de empresas mais "aguerridos" procuravam levar as novas medidas econômica às suas últimas consequências, ampliando ainda mais a operação da forças de mercado na economia soviética, para se "libertar" da tutela do aparelho econômico central. De outro, os dirigentes dos órgãos econômicos centrais procuravam conciliar a adoção dos novos métodos com a preservação de seu papel central na economia, herdado do período de construção socialista anterior. Ao mesmo tempo, a nova direção do PCUS não podia liquidar de vez uma série de conquistas sociais da revolução (como o direito universal ao trabalho, a ausência de inflação, o acesso gratuito à saúde e à educação etc.), sem perder a legitimidade de seu poder perante os povos da União Soviética.

Pode-se dizer que a queda de Kruschev e a ascensão de Brejnev em meados da década de 1960, após intenso debate em torno das reformas econômicas propostas pelo economista Liberman, representou a vitória inicial dos dirigentes do aparelho econômico central. Não é à toa que sua primeira medida econômica de vulto foi justamente o restabelecimento dos ministérios econômicos centrais abolidos anteriormente. As chamadas "Reformas de Kossiguin" que se seguiram sistematizaram a introdução do mecanismo econômico capitalista no conjunto da economia. Mesmo sob a capa da "propriedade estatal socialista", a meta central da produção de cada empresa ou unidade passou a ser a maximização dos seus lucros em nível local. Os diretores tiveram seus poderes alargados dentro das empresas, a ponto de poderem determinar o seu próprio ritmo de produção e remuneração, e até mesmo demitir operários.

Mas, ao lado disto, procurou-se preservar ao máximo, também, o poder dos órgãos econômicos centrais. Os diretores continuavam sendo nomeados pelos ministérios a que se subordinavam, o que evidentemente reduzia a sua autonomia. O Banco Central do Estado ficou como grande fonte de financiamentos para a compra de bens de capital dentro do princípio de "auto-gestão financeira". Podia, assim, controlar o processo produtivo "bancando" os financiamentos para diretores mais "obedientes". Mesmo o poder dos diretores de demitir operários era mitigado pela preocupação dos organismos centrais em só efetivar a demissão após assegurar um novo emprego para o trabalhador demitido. E no tocante à fixação dos preços, isso contava com a ajuda do Comitê Estatal de Preços, que procurava refletir as forças de mercado através de mecanismos como pesquisas de opinião e reuniões com compradores.

A interação destes elementos contraditórios teve efeitos desastrosos para a economia soviética. A URSS afundou num processo de estagnação econômica durante os anos Brejnev. E boa parte do pouco crescimento econômico alcançado se deve, na verdade, à militarização da economia soviética em função da corrida armamentista com os EUA. O fracasso dessa política para impulsionar o desenvolvimento mais intensivo da economia pode ser medido pelo seguinte dado: enquanto no plano quinquenal de 1966 a 1970 o aumento da produtividade foi responsável por 40% do crescimento da renda nacional, em 1981-1982 essa participação caiu para 25% (2).

O problema central é que as medidas implementadas desde a ascensão de Brejnev reintroduziram mecanismos capitalistas na gestão da economia soviética sem reincorporar uma série de mecanismos que poderíamos chamar de mais "punitivos" do mercado – a dependência da venda para a realização dos lucros, a ameaça da falência por uma gestão empresarial incompetente etc. Assim, a marca da economia passou a ser a ineficiência.

Sem a ameaça da falência, os diretores tenderam a se acomodar com a "proteção" de seus superiores. Pouco esforço era dedicado à racionalização da produção para evitar desperdícios e esbanjamento de recursos. Pelo contrário, desenvolveu-se uma rede de compadrismo e impunidade que, segundo o próprio Procurador-Geral da URSS atual, Aleksander Rekinkov, levou à generalização da corrupção na sociedade soviética, sobretudo a partir da década de 1970 (3). No tocante aos preços, isto se refletiu na generalização de práticas que conhecemos de perto no Brasil durante o Plano Cruzado, como a introdução de falsos "produtos novos" no mercado com preços mais elevados, ao lado do sumiço de produtos essenciais com o preço congelado. Assim, enquanto formalmente não existia inflação (hoje os soviéticos já admitem até uma inflação de 8% no período) (4), agravava-se o problema do abastecimento. Os trabalhadores, por sua vez, sentindo-se sem controle sobre o processo de produção, resvalaram para uma atitude de apatia e desinteresse, antítese do entusiasmo gerado no período de industrialização socialista.

No fundo, essa estagnação era o reflexo das contradições entre a introdução do novo mecanismo capitalista na gestão da economia e a preservação de determinadas formas de governo e administração econômica herdadas do período de construção socialista anterior. O novo conteúdo entrava cada vez mais em choque com a manutenção das antigas formas. Diante do impasse, voltaram a ganhar ímpeto no Partido e no Estado as forças interessadas em adequar as formas de administração econômica ao novo conteúdo capitalista da produção, ampliando a força reguladora e disciplinadora do mercado na economia como um todo.

É precisamente este o sentido das medidas econômicas implementadas na curta administração de Andropov e, agora mais ainda, com a política de "reconstrução" econômica de Gorbachev. Entre as mudanças, a que tem merecido maior destaque por parte da grande imprensa ocidental é a restauração formal da propriedade privada no tocante à pequena produção. Esta liberação da iniciativa privada atinge tanto o setor de produção como o de serviços. Pela nova legislação, as cooperativas privadas podem ser formadas livremente com pelo menos três pessoas, podem obter financiamentos dos bancos oficiais, estabelecer preços e salários, além de distribuir lucros, sem qualquer interferência do Estado!

Este processo já assumiu tal vulto que uma matéria sobre o assunto da agência soviética Novopress trouxe o seguinte título estampado: "Moda na URSS agora é ser empresário!" (5). O Setor em que mais vem se desenvolvendo a pequena iniciativa privada é o de vendas de comida – bares, cafés e restaurantes. E a tônica tem sido criar empresas voltadas para a parcela mais rica da população. Assim, o preço de um prato no primeiro restaurante privado aberto em Moscou equivale a um terço do salário médio mensal de um trabalhador. E essa expansão da iniciativa privada começa a atingir, inclusive, setores tidos até aqui como conquistas intocáveis da revolução. Assim, segundo informou um alto funcionário do Ministério da Saúde da URSS, Vsevolod Kozluk, as autoridades soviéticas estão estudando medidas para autorizar os médicos a abrirem seus próprios consultórios particulares e estabelecerem livremente os preços de suas consultas (6).

Este componente das medidas econômicas de Gorbachev tem importância. Afinal, o próprio Lênin dizia que a pequena produção privada gera a todo momento, incessantemente, o capitalismo. Intensificam-se a concorrência e a "livre operação" das forças de mercado na economia. Mas a verdade é que a pequena iniciativa privada em si vai atingir um setor apenas secundário da economia. De maior significado são as medidas voltadas para as empresas estatais, que compõem o grosso da produção e aprofundam o processo de restauração da propriedade privada nesse setor por trás da figura jurídica da "propriedade de todo o povo".

Uma das primeiras medidas tomadas por Gorbachev em relação às empresas estatais foi a generalização para toda a economia de uma série de experiências econômicas iniciadas por Andropov em 1983. O componente central destas medidas foi o fim da garantia estatal de compra das mercadorias produzidas pelas empresas. Só a efetiva venda de suas mercadorias no mercado passa a garantir, agora, o ingresso de recursos para realizar os lucros da empresa, bem como para pagar os salários dos funcionários.

De volta à falência

O próximo passo foi reintroduzir na economia o principal mecanismo disciplinador da atividade empresarial pelo mercado: a falência. No início deste ano, pela primeira vez desde a construção da base econômica do socialismo, foi decretada a falência de uma empresa na URSS. Trata-se de uma empresa de construção civil de Leningrado que não vinha operando em bases lucrativas. A Associação de Construção Civil da cidade informou que, após o pagamento das dívidas, os bens da empresa serão distribuídos entre as mais lucrativas do ramo. Do ponto de vista marxista, a "falência" de uma empresa no socialismo é inconcebível, já que ela pertence ao conjunto do povo trabalhador. Se estiver sendo mal administrada, cabe afastar os responsáveis pela situação. Aliás, se houvesse mecanismos reais de controle operário na economia, o mais provável é que não se chegasse a essa situação. No caso soviético, agora, não só a empresa vai à falência, como seus bens são abocanhados por empresas mais fortes. É a concorrência capitalista de volta com força total! Comentando este episódio, a própria agência soviética TASS afirmou: "Não há dúvida de que a saudável competição que surgiu na União Soviética com a adoção de novas regras administrativas levará muitos executivos a mudar o seu estilo de trabalho" (7).

Atualmente está em discussão na União Soviética uma nova lei para as empresas estatais que permitirá a "liquidação das organizações insolventes". Outros elementos da nova legislação são a introdução do conceito de "mercadoria socialista", a implementação da "autogestão completa, auto-financiamento e auto-administração" das empresas, e a obrigação de que estas "cumpram as exigências dos consumidores". A lei atribui, ainda, ao conjunto de trabalhadores de cada empresa o direito à "utilização como dono da propriedade de todo o povo" (8). É um esforço para adequar melhor o regime jurídico da propriedade ao novo conteúdo capitalista da produção e à ampliação da força reguladora do mercado na economia.

Ao lado disto, Gorbachev implementou medidas para descentralizar o comércio externo da URSS. Mais de 20 ministérios e 70 empresas de grande porte ganharam o direito de fechar negócios diretamente com empresas estrangeiras sem passar pelo plano estatal. Até aqui, o comércio externo soviético era conduzido exclusivamente por intermédio do Ministério do Comércio Exterior da URSS e das empresas de exportação-importação a ele vinculados.

Outro aspecto central da política econômica de Gorbachev é o aprofundamento da reintegração da economia soviética no sistema capitalista mundial. A penetração de capitais estrangeiros na URSS desde Kruschev levou os soviéticos a acumularem hoje uma dívida externa de 27 bilhões de dólares, só com bancos ocidentais. Mas neste terreno Gorbachev vem adotando medidas que seus antecessores nem ousaram propor. Assim, pela primeira vez desde a construção da base econômica do socialismo, será permitido às empresas multinacionais serem proprietárias formais e diretas de forças produtivas na URSS.

Gorbachev liberou a formação de empresas mistas (joint-ventures) associando empresas ocidentais com empresas soviéticas dentro de território da URSS. Os soviéticos ficam com 51% do controle dessas empresas, e o capital estrangeiro com 49%. Mas o mais interessante é as vantagens oferecidas para a instalação das multinacionais. Nos dois primeiros anos, elas não pagarão qualquer imposto. Depois disso, estarão sujeitas ao imposto regular de 30%. Os lucros que forem reinvestidos na economia soviética estarão isentos de impostos. Já os lucros remetidos para o exterior terão de pagar aproximadamente 20% (no caso da lei brasileira de remessa de lucros, o imposto é de 25%) (9).
As "joint-ventures" terão garantias totais para sua operação; dentro da União Soviética. Não poderão ser confiscadas nem multadas por processo administrativo. Terão total autonomia administrativa, podendo decidir a melhor forma de comercializar os seus produtos, totalmente à margem do plano estatal. Poderão buscar mercados externos por iniciativa própria. Dentro da URSS, as vendas serão feitas em rublo, com os preços acompanhando as flutuações do mercado mundial. Com tamanha mamata, não é surpresa que em poucos meses mais de 150 empresas multinacionais já tenham manifestado seu interesse em formar "joint-ventures" na União Soviética entre as quais, Singer, Coca-Cola, Caterpillar e Ocidental Petroleum. Será que elas vão se instalar na economia da URSS com outro interesse que não o de extrair altos lucros à custa do suor e do sangue dos trabalhadores soviéticos?

O conjunto de medidas que descrevemos acima coloca parte considerável da economia soviética inteiramente à margem do plano estatal. Mas mesmo nas áreas que continuam atingidas pela planificação estatal, esta é enormemente reduzida e esvaziada. Segundo o próprio Gorbachev: "Convém, na planificação, que passem a ser aplicados métodos normativos quer quanto à determinação dos custos, quer quanto à definição das metas em matéria de eficácia e de satisfação das necessidades da sociedade" (10). Assim, em vez de estabelecer metas mais concretas para cada setor da economia, os organismos de planejamento central devem se limitar a elaborar normas gerais para a atuação das empresas. O poder de decisão se concentra nos diretores e administradores que procuram maximizar a realização dos lucros de sua empresa ou combinado de empresas. Mas que consequências isto traz para os trabalhadores da União Soviética?

Consequências para os trabalhadores soviéticos

O próprio vice-diretor de um instituto de pesquisas do Gosplan, Vladimir Kostakov, confessou: o "programa de modernização" levará de 13 a 19 milhões de trabalhadores a perderem seus empregos. Por isso mesmo, ele os alerta de que terão de "se acostumar que será necessário um certo tempo para encontrar emprego" (11). Kostakov defende, inclusive, a adoção de uma espécie de seguro-desemprego no conjunto da economia. E a perspectiva para a reabsorção desses trabalhadores no mercado de trabalho, quando existe, se dá no setor de serviços com salários mais baixos. O quadro, portanto, é de arrocho salarial. Os que não perderam seus empregos enfrentam a intensificação do ritmo da produção e ainda correm o risco de ficar sem salário se a empresa não achar compradores para seus produtos no mercado. Ao mesmo tempo, Gorbachev vem adotando a política de elevar consideravelmente os salários e a autoridade "dos contramestres, engenheiros, projetistas e tecnólogos" (12) nas empresas.

Ao lado desse agravamento das desigualdades sociais, é de esperar também a intensificação das pressões inflacionárias na economia. Em primeiro lugar, porque inúmeros setores ganharam o direito de fixar livremente os seus preços. Mas mesmo no caso das empresas ainda subordinadas ao Comitê Estatal de Preços, elas poderão aumentar em até 30% o preço das mercadorias que considerarem de "melhor qualidade". E a julgar pelas palavras do próprio Gorbachev, pretende-se cobrar bem mais caro por serviços que até aqui eram gratuitos ou de preços bem reduzidos (13).

“Liberdade” para quem?

Os grandes órgãos de comunicação procuram apresentar as medidas que descrevemos acima como o grande "reencontro do socialismo com a democracia". Mas o leitor poderá fazer seu próprio julgamento – será que elas apontam para a construção de uma sociedade comunista sem classes? Pode-se argumentar que estas são medidas de "concessão" ao capitalismo, para modernizar tecnologicamente a economia soviética, e retomar o rumo da socialização mais adiante. Mas a construção da nova sociedade comunista é uma tarefa consciente de todo o povo trabalhador. No caso do recuo da NEP, Lênin assumia abertamente que eram concessões ao capitalismo temporárias e necessárias, e conclamava os trabalhadores a permanecerem vigilantes. No caso de Gorbachev, as medidas são apresentadas como um aprofundamento do "socialismo desenvolvido" – um caminho que a URSS deve continuar seguindo indefinidamente. E mesmo a política da NEP se tornou necessária em função de criar as condições mínimas para socializar a economia. Não se justifica de maneira alguma um retorno a ela depois de haver concluído a construção da base econômica do socialismo na URSS.

A imprensa ocidental apresenta como um "renascimento da liberdade" a adoção de medidas como a libertação de dissidentes que mantêm notórias ligações com governos ocidentais, a divulgação oficial de obras de arte com conteúdo abertamente anti-socialista, ou a realização de eleições secretas para cargos de direção do PCUS. Mas estas não passam de um esforço desesperado de Gorbachev em ampliar sua base de apoio, face a uma situação política muito delicada no Partido e no Estado soviético. Persistem resistências generalizadas à política de Gorbachev por parte dos interesses encastelados no aparelho econômico central. O próprio dirigente do PCUS admitiu ter sido forçado a adiar por três vezes consecutivas a reunião do comitê central em função dessas resistências. Cabe perguntar – as medidas citadas acima são de "liberdade" para quem? O fato é que não existe liberdade para quem defenda a retomada do caminho socialista interrompido.

Em seu célebre Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, Engels descreve a sociedade comunista como o verdadeiro "Reino da Liberdade", onde "o Homem, ao tornar-se dono e senhor de suas próprias relações sociais, converte-se pela primeira vez em senhor consciente e efetivo da natureza" (14). Em oposição a esta orientação da teoria marxista, a política econômica de Gorbachev seria melhor resumida assim: "Do Capitalismo Enrustido ao Capitalismo Assumido".

* Luís Fernandes é mestre em Ciência Política pelo IUPERJ. Colaborador de Princípios.

Notas
(1) LÊNIN, V. I. "Sobre o Imposto em Espécie", publicado em Obras Escolhidas, volume 3, Edições Avante, Lisboa, 1979, p. 493.
(2) CHERNIKOV, D. "Scientific-Technological Progess and Strutural Shifts in Social Production". Em revista Ekonomika i Matematicheskiye, n. 4, 1984, Moscou, p.593.
(3) Citado na matéria “Corrupção na URSS prejudica o desenvolvimento econômico", jornal O Dia, Rio de Janeiro, 16-01-1986.
(4) Dados do semanário soviético Moscovskie Novosti citados na matéria "URSS:
Inflação", jornal Retrato do Brasil, São Paulo, edição de 22 a 29-03-1987.
(5) Boletim da Novopress, de 8 a 14-03-1987.
(6) "Governo soviético decide estimular medicina privada", jornal O Globo, Rio de Janeiro, 22-03-1987.
(7) Citado na matéria "Falência de empresa estatal chega à URSS de Gorbachev", Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27-03-1987.
(8) Informação de um artigo do semanário soviético Moskovskie Novosti citado na matéria "Empresa na URSS”, jornal Retrato do Brasil, edição de 30-03 a 05-04-1987.
(9) Dados colhidos do vice-presidente da Comissão Estatal para o Setor Externo da Economia da URSS, Ivan Ivanov, publicados na matéria "URSS anuncia isenção de impostos para os investidores estrangeiros", jornal O Globo, Rio de Janeiro, 10-02-1987.
(10) GORBACHEV, M. Discursos e Artigos Escolhidos, Editora Avante, Lisboa, 1985, p.150.
(11) Citação do jornal Sovietskaya Kultura. publicada na matéria "Modernização na URSS pode cortar empregos", Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11-01-1986.
(12) Op. cit., GORBACHEV, M., p. 26.
(13) Ibid, p. 93.
(14) ENGELS, F. "Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico", publicado em Obras escolhidas de Marx e Engels, Editora Alfa-Omega, São Paulo, sem data, p. 334.

EDIÇÃO 14, OUT/NOV, 1987, PÁGINAS 32, 33, 34, 35, 36, 37