O Colégio Metalúrgico atende cerca de 400 operários que, após uma jornada intensa de trabalho na fábrica, frequentam os cursos noturnos de 2º grau nas áreas de mecânica, eletrônica e eletrotécnica. A proposta da escola é procurar criar bases sólidas para a construção de uma pedagogia do trabalho que tenha como referência os interesses da classe operária, que garanta a competência técnica e contribua para a formação político-sindical do trabalhador.

ESCAMOTEANDO OS CONFLITOS

Se, por um lado, o Estado Novo, através da Constituição de 1937, destina o ensino técnico-profissional às "classes menos favorecidas" (art. 129), abrindo as portas para o acesso da população à escola, por outro, é bem verdade que esta mesma escola para os filhos dos outros contribuiu para consolidar os interesses da classe de uma burguesia industrial emergente no país. Isto porque, uma vez assegurando a reprodução acelerada de mão- de-obra qualificada para a indústria, assegurava também a estrutura das relações de produção.

Desde 1937, a Política Nacional, de Formação de Mão-de-Obra, escamoteando os conflitos de classe e os interesses inconciliáveis entre a burguesia e o proletariado, preconiza o espírito da teoria do capital humano, veiculando a idéia de que a educação, à medida que qualifica o trabalhador, contribui para a "redução das desigualdades na distribuição da renda nacional", proporcionando-lhe o acesso aos patamares mais elevados do bem-estar social (PNFMO-1981).

Na euforia do "milagre brasileiro", leis, pareceres, resoluções sobre o ensino técnico, apontando as diretrizes para a profissionalização compulsória no 2º grau (Lei nº 5.692/71), enfatizam a necessidade de ajustamento e adaptação do trabalhador às mudanças tecnológicas e econômicas do país (Parecer 76/75-CFE). Indicam também o processo educativo como meio para incutir nos trabalhadores "o senso de responsabilidade, obediência às ordens superiores, disciplina e cooperação” (MEC 1978).

A prática pedagógica das escolas técnicas tampouco aponta a perspectiva de um trabalhador capaz de transformar o mundo, um trabalhador que interfira nas relações de trabalho; a formação de um homem, enquanto ser social, que não é passivo à produção tecnológica, mas se apropria do conhecimento da totalidade do processo produtivo, fazendo deste não só seu instrumento para a elaboração de novos conhecimentos, mas também um de seus instrumentos de luta na relação explorador-explorado. Na concepção capitalista, o trabalhador ideal é aquele apto a ajustar-se com facilidade às necessidades do mercado e ao processo de trabalho, enfim, é aquele flexível e maleável aos interesses das classes patronais. E, para um melhor ajustamento, a educação deve estar imbuída de um chamado "novo Humanismo", numa tentativa de amenizar e abafar os conflitos de classe.

Com o agravamento da crise econômica, altas taxas de desemprego, com a não absorção pelo mercado de trabalho dos profissionais de nível médio, a Política Educacional, a partir de 1982 (falando em Marx, Althusser etc, como fundamentação), assume uma postura pseudo-liberal-progressista, tornando facultativa a profissionalização no 2° grau (Lei n° 7.044/82). É interessante notar também que além dos interesses econômicos e sociais que estavam em jogo, a escola perde a obrigatoriedade de formação de técnicos e auxiliares técnicos, justamente num momento em que os empresários, acionando a defesa de seus interesses de classe, concluem que a qualificação para o trabalho é bem mais eficaz quando não ocorre na escola, mas no seio do próprio processo produtivo!

"Quando o patrão ganha o corpo, ganha a mente também. Se o empresário descobrir isso, ele fará todos os funcionários submissos a ele. Aí, todos os empresários vão querer ter muitos Centros de Treinamento dentro da empresa”.
(Torneiro-mecânico da Casa da Moeda, ex-aluno do Colégio Metalúrgico)
Desde a II Conferência Nacional das Classes Produtoras (1972), as classes patronais, repudiando a Lei 5.692/71, alertavam para o fato de os alunos egressos de escola técnica saírem "irremediavelmente contaminados pelo vírus da ascensão social. Reivindicam melhores salários, mudanças de cargo e de tratamento, enfim, buscam uma promoção, visando a ocupar um lugar mais elevado na divisão hierárquica do trabalho". A tendência, hoje, da qualificação para o trabalho ser cada vez mais implementada sob o patrocínio dos próprios empresários – quer sob forma de treinamento intensivo ou no próprio processo de produção – está relacionada a interesses patronais como:

a – O baixo salário é justificado pela falta de diploma escolar que o habilita legalmente para o exercício da profissão.
b – O operário aprende um determinado ofício de acordo com as especificidades do tipo de tecnologia empregada na empresa.
c – A aprendizagem das tarefas, no interior da própria fábrica, ocorre concomitantemente à aprendizagem de valores e aos comportamentos desejados pela organização hierárquica do trabalho.
Com o mesmo espírito de adestramento de trabalhadores, o Senai, financiado pela Confederação Nacional da Indústria, vem patrocinando o ensino técnico no Brasil de maneira bastante eficiente. Prova de sua competência técnica – à luz dos ideais do capitalismo – foi a premiação de quatro alunos brasileiros que conquistaram medalha de ouro no 28º Concurso Internacional de Mão-de-Obra, realizado no Japão.

"O SENAI tem agora comprovado o alto nível de formação de seus alunos. A mão-de-obra brasileira é uma realidade" (Jornal do Brasil, 29-10-1985).
Na verdade, o Senai não forma apenas o trabalhador qualificado tecnicamente, mas é uma fábrica para reproduzir e produzir os interesses patronais. Através do processo trabalho-aprendizagem são inculcados atitudes e hábitos que reforçam a meritocracia, a ascensão pelo esforço próprio. Reforçando as idéias de responsabilidade, assiduidade, pontualidade, para o Senai não existem maus patrões, apenas maus empregados. No processo de adestramento de mão-de-obra, além de garantir o saber-fazer, ou seja, a competência técnica, procura-se assegurar também a produção de um trabalhador que venha "vestir a camisa do patrão". E as Escolas Técnicas, no geral, mesmo não cumprindo seu compromisso de qualificação técnica para o trabalho na mesma altura do Senai, exercem também uma função ideológica importante, uma vez que:

a – A divisão social do trabalho na escola introduz a divisão do trabalho na fábrica. O aluno-trabalhador é tratado de maneira compartimentada, onde orientadores encarregam-se de sua "saúde mental", supervisores pedagógicos, de seu cognitivo, e administradores, da ordem e da disciplina. A escola, além de fragmentá-lo enquanto homem, fragmenta-lhe a possibilidade de compreensão de sua totalidade.
b – A compartimentação e a debilidade dos conteúdos de ensino não permitem o domínio do conhecimento historicamente acumulado e o domínio da totalidade do processo produtivo.
c – A estanquização dos conteúdos e das disciplinas asseguram uma visão compartimentada de trabalho e de mundo.
d – A aprendizagem da técnica como uma ciência "neutra" não tem qualquer relação com as questões sociais, políticas e econômicas.
e – O critério de qualificação profissional restringe-se ao saber-fazer, desvinculado do compromisso político, da compreensão do mundo do trabalho, da consciência crítica a respeito das relações capitalistas de reprodução.

Além destas e de outras questões político-ideológicas que perpassam no processo pedagógico, o papel da escola no sistema capitalista tem sido o de justificar e produzir a estrutura de classe. No processo de produção, o que vai garantir a divisão hierárquica das tarefas é a diferenciação entre os detentores e os não detentores do "conhecimento científico”.
No entanto, sabemos que "o laço entre autoridade e ciência é o inverso do que se diz ser: a autoridade não depende da competência, pelo contrário, a competência é função da autoridade (o chefe não pode estar errado)" (GORZ).

Responsabilizando o aluno pelo êxito ou fracasso na sociedade, a escola capitalista tem como tarefa aprisionar uma massa crescente de jovens como forma de estabilização do sistema, dissimulando o número cada vez maior de semi-empregados e desempregados. Na esperança de, quem sabe com mais um diploma, vir a conquistar um lugar ao sol na sociedade, cresce cada dia mais a procura pelo ensino noturno, a volta à escola. No entanto, ao mesmo tempo em que a escola aprisiona, encena o papel do juiz que decidirá sobre a competência e o destino individual de cada um, a escola representa também um palco de confrontos de interesses e conflitos. E é esta a grande contradição da escola. Ao mesmo tempo em que procura reproduzir a estrutura de classes, atiça ela mesma as contradições do sistema capitalista à medida que – a assimilação de conhecimentos e valores dominantes contribuem para a compreensão do mundo capitalista do trabalho –, de posse dos conhecimentos ditos "científicos", proporciona a possibilidade de criação de novos conhecimentos, novos valores para uma nova sociedade. No entanto, a socialização dos conhecimentos por si só não é suficiente para elaboração de uma consciência crítica questionadora do mundo. A forma de organização da escola, os conteúdos ensinados, com que abordagem, como se relacionam, relação conteúdo/prática social, relação professor/aluno, são aspectos da ação educativa que contribuirão para a reprodução e/ou formação de uma consciência crítica transformadora do mundo.

“Uma escola que defende os interesses dos trabalhadores”

Este tem sido não só o slogan utilizado nos materiais impressos do Colégio Metalúrgico (CMEES), como também um princípio que norteia a proposta político-pedagógica no dia-a-dia da escola.
A preocupação metodológica do CMEES é que os cursos profissionalizantes venham a espelhar uma tentativa de estrutura e funcionamento de uma escola que considere a totalidade do aluno-trabalhador como parte da totalidade do mundo, assegurando-lhe o saber sistematizado e universal não só para a apropriação do concreto pensado, como também para a transformação do real.

Não foi com tranquilidade que iniciamos em 1986 o trabalho no Sindicato dos Metalúrgicos-RJ, pois não é num toque de mágica que se reestrutura uma prática pedagógica alicerçada em 26 anos de existência. (Desde 1960, a escola do sindicato funcionava com um caráter meramente assistencialista). Apesar dos diversos entraves financeiros, da dificuldade da equipe de professores em assumir o desafio do novo, o CMEES caminha este ano com saltos de qualidade, plantando, colhendo e replantando as bases para viabilização de uma pedagogia do trabalho realmente comprometida com a classe operária.

Considerando que a qualificação para o trabalho requer a competência técnica do trabalhador, mas, no entanto, requer um saber fazer vinculado a uma concepção de vida e de sociedade, o Colégio Metalúrgico tem dois objetivos fundamentais e básicos:

1- Capacitar tecnicamente o aluno-trabalhador para sua área de ocupação; e
2- contribuir para sua formação geral e político-sindical em defesa de seus interesses de classe.

Estes dois objetivos não são, no entanto, estanques, mas se complementam dialeticamente no processo pedagógico. Ora, assim como a teoria não caminha sem a prática, a técnica institucionalizada como “neutra” não existe a não ser em função de atender a determinados interesses em determinados momentos históricos. A técnica de tornearia, por exemplo, pode hoje até ser a mesma tanto para o capitalista como para o socialista, no entanto, o que difere é o uso que se faz dela, é a relação de produção em que foi elaborada e executada, é, enfim, a determinação dos interesses de classe a que se propõe. As questões técnicas do trabalho não podem, portanto, ser tratadas isoladamente das relações de trabalho, desvinculadas da discussão dos interesses de classe, da questão das formas de organização dos trabalhadores frente ao capital, e, enfim, da questão política e econômica nacional e mundial.

No Colégio Metalúrgico, no processo de qualificação profissional, quer do técnico de mecânica, eletrônica ou eletrotécnica, estão implícitas a aquisição não só de habilidades específicas para o exercício da profissão, como também a obtenção dos conhecimentos mínimos necessários que contribuam para a construção de sua consciência de classe, do seu papel enquanto trabalhador e cidadão no processo produtivo e na sociedade.

O Guia Pedagógico destinado para discussão entre alunos trabalhadores e professores enfatiza que:
"(…) Os operários que dominam seu próprio trabalho têm maior interferência nas decisões e maior poder de negociação nas questões técnicas e políticas (…) são estes os profissionais mais temidos pelo patronato" (Acácia Kuenzer).

Na fábrica, a dicotomia trabalho manual e trabalho intelectual, a divisão pormenorizada, a especialização cada vez mais acentuada na execução das tarefas, a repetição contínua e ininterrupta dos movimentos, tornam-se um massacre para o trabalhador. O capital, além de desapropriar o conhecimento produzido pela classe operária no processo produtivo, requer cada vez menos a qualificação do operariado, uma vez que simplificando as tarefas, vai eliminando a necessidade dos conhecimentos sistematizados.

Num modo de produção onde os detentores dos meios de produção, através de sua "gerência científica", dirigem, planejam e controlam o processo de trabalho, enquanto a grande maioria apenas executa como "uma mão vigiada, corrigida e controlada por um cérebro distante" (BRAVERMAN), a função da escola tem sido a de procurar negar o direito aos trabalhadores do acesso aos conhecimentos elaborados e sistematizados ao longo da história da humanidade.

Um dos pré-requisitos para que o Colégio Metalúrgico contribua para a formação da consciência transformadora do aluno-trabalhador é garantir que o mesmo tome posse dos conhecimentos da classe dominante, tendo acesso ao saber oficial. Procurando quebrar a lógica do capitalismo, propiciar a perspectiva de possibilidade de uma visão de totalidade dos conhecimentos, do processo produtivo e do mundo capitalista do trabalho.

Estas parecem ser propostas bastante pretensiosas do Colégio Metalúrgico, no entanto, através de um processo de muitos erros e acertos, alguns passos já estão sendo dados.
Discutimos intensamente com os professores e com os alunos/operários a necessidade de o ensino estar cotidianamente voltado para as questões de vida do trabalho e do trabalhador. A relação escola-sindicato também se faz fundamental para a viabilização da proposta político-pedagógica no que diz respeito às tentativas de inserção da escola no acompanhamento da vida sindical.

Os objetivos educacionais, ou seja, competência técnica e compromisso político do trabalhador, são desenvolvidos não só através de atividades extra-classe, como filmes, debates, Semana de Formação Profissional, como também através do dia-a-dia em sala-de-aula. Apesar de defendermos a importância de todas as disciplinas do currículo escolar para alcançarmos esses objetivos, ainda são principalmente as disciplinas de formação geral, como História, Português, Geografia etc. que têm dado a tônica à proposta de formação político-sindical.

A História, a título de exemplo, é ensinada tendo sempre como referência a relação dominador/dominado, da pré-história aos nossos dias. A origem do sindicalismo, bem como a história do movimento operário, ou seja, a história do dominado também é contada, relacionando sempre o passado com o presente.

Este ano, reformulando o ensino da matemática, estamos procurando implementar uma proposta de trabalho, onde o ponto de partida para aquisição e compreensão dos conceitos matemáticos seja a própria prática social. A sucessão presidencial, o mandato de Sarney podem ser temas que introduzam conceitos de progressão matemática e geométrica, por exemplo. Aprender a calcular o salário, a inflação, estimar a mais-valia, além de instrumentalizá-los para a resolução de problemas técnicos, têm sido nossas preocupações.

Na área de Ciências, a disciplina Biologia foi transformada em "Saúde do Trabalhador", onde se discutem acidentes do trabalho, CIPA, periculosidade, salubridade, enfim, todas as interferências do capital na vida e saúde do operário e da população, apontando alternativas para as questões.
Partindo da constatação de que o operário vem da fábrica para a escola, discutimos com os professores a importância da valorização dos conhecimentos adquiridos no processo produtivo como ponto de partida para a relação teoria/prática se a ampliação dos conhecimentos de maneira elaborada e sistematizada. Assuntos como informática, automação e a conseqüência na vida do homem vão aos poucos se tornando temas de bastante preocupação entre alunos e professores.

A partir de 1987, incluímos em nossa grade curricular a disciplina "Educação e Trabalho". A proposta é aprofundar e sistematizar com os alunos o significado do trabalho ao longo da história, compreender a dinâmica do modo de produção capitalista, tendo como metodologia o materialismo dialético. Analisando as relações de trabalho no interior de seus locais de trabalho, confrontando com o modo de produção socialista e outros modos, o objetivo da disciplina é proporcionar os elementos para que o aluno/trabalhador, de posse de informações, conhecimentos, e trocas de idéias, possa não só opinar como também se engajar no processo de transformação da sociedade.

A intenção de elaboração e viabilização de uma pedagogia do trabalho, que dê conta da realidade operária, tem se dado, à luz da teoria, no dia-a-dia do Colégio Metalúrgico. Sabemos que não existe nenhuma fórmula, nenhuma receita. Existe, sim, uma perseverança muito grande de acertar e contribuir de alguma maneira não para o adestramento, mas para a formação de trabalhadores competentes e comprometidos com a transformação da sociedade.

* Assessora Pedagógica do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro e diretora do Sindicato dos Professores do Rio de Janeiro.

EDIÇÃO 15, MAIO, 1988, PÁGINAS 47, 48, 49, 50