Política nuclear brasileira. Uma ameaça à segurança da população
Mostraremos que as recentes alterações da política nuclear brasileira atacam, de forma superficial, uma das características da política nuclear brasileira, a dispersão de esforços. Mas consolidam os aspectos mais nocivos adquirindo um feitio de verdadeira ameaça à segurança do povo brasileiro. Analisaremos quatro aspectos básicos cotejando-os com as recentes decisões governamentais: a indefinição da política, os fins militares, a questão ambiental e a questão energética.
Política nuclear
A história da política nuclear brasileira é a história de iniciativas contraditórias, muitas vezes anulando-se mutuamente. É também a história de um conto-do-vigário exemplar, o Acordo Nuclear Brasil—Alemanha assinado em 1975. Também é uma história de disputa pelo poder entre uma camada de militares, burocratas e tecnocratas.
A pesquisa em física nuclear no Brasil iniciou-se na década de trinta com a criação da Universidade de São Paulo e a contratação de cientistas estrangeiros para aqui implantar cursos e desenvolver pesquisas.d) Mas é no final da Segunda Guerra que ocorrerá o primeiro ato governamental que poderíamos caracterizar como elemento de uma política nuclear. O Departamento de Estado americano, através do seu Subsecretário Edward R. Stettinius Jr. conseguiu em fevereiro de 1945 a concordância do presidente Vargas para a aquisição das areias monazíticas — matéria-prima para combustíveis nucleares — brasileiras, a verdadeiro preço de banana: 30 dólares por tonelada. A exportação de areia monazítica brasileira continuou ininterruptamente até 1951. Este acordo de exportação levou o pomposo nome de Acordo Atômico Brasil —Estados Unidos.
Esta postura entreguista encontrou oposição de setores políticos e intelectuais patrióticos. No próprio governo esta oposição expressou-se através do Almirante Álvaro Alberto. No plano diplomático esta oposição expressou-se na Assembléia Geral da ONU, onde a delegação brasileira chefiada pelo Almirante teve papel importante na rejeição do Plano Baruch proposto pelos EUA que colocaria todas as atividades nucleares sob o comando de uma autoridade supranacional, controlada pelos países que detinham a tecnologia nuclear, à época os próprios EUA.
A luta entre grupos nacionalistas e entreguistas pela definição da política nuclear brasileira estendeu-se pelos anos 50 e 60, com vitórias parciais para os dois lados. Exemplo típico da evolução pendular da nossa política nuclear ocorreu em 1953 quando o mesmo Almirante Álvaro Alberto "foi autorizado pelo presidente Vargas a ir à França e à Alemanha inteirar-se dos progressos da tecnologia nuclear. Esta missão viveu alguns episódios rocambolescos, como a contratação da construção secreta de três estágios de uma instalação de ultra-centrifugação para a separação isotópica de hexafluoreto de urânio por 80.000 dólares, pagos diretamente pelo governo brasileiro ao Instituto de Física e Química da Universidade de Bonn. Em 1954, na véspera do embarque dos equipamentos para o Brasil, os norte-americanos vetaram a operação e, com a interveniência das tropas inglesas de ocupação, apreenderam as centrífugas. O embargo só foi levantado em 1956, durante o governo Eisenhower (2).
No período pós 1964 a linha mais nacionalista na política nuclear brasileira ficou bastante enfraquecida, seja pela orientação abertamente entreguista do regime militar, seja pela cassação de cientistas de destaque defensores destas posições como os físicos Leite Lopes e Mario Schemberg. Os remanescentes destes grupos buscaram neste período uma aproximação com o próprio regime que levou a uma forte militarização da Comissão Nacional de Energia Nuclear-CNEN, órgão que aglutinava no período anterior de 1964 os setores nacionalistas.
Acordo com Alemanha
A iniciativa mais importante do regime militar na área nuclear ocorreu em 1975, quando o General Geisel assinou o Acordo Brasil —Alemanha. O acordo previa a construção de 8 usinas ao custo de 10 bilhões de dólares. Previa também a transferência para o Brasil de uma determinada tecnologia de produção do combustível nuclear partindo do urânio como matéria-prima. Esta tecnologia, denominada de jato centrífugo, ainda não estava testada mesmo na Alemanha. Aliás, a extinção da NUCLEI, anunciada por Sarney, é o reconhecimento da inviabilidade deste processo tecnológico comprado aos alemães.
O Acordo Brasil —Alemanha revelou-se um verdadeiro fracasso. O governo Sarney, ainda em 1985, reconheceu ao reduzi-lo para duas usinas e formalizar o adiamento dos prazos mesmo para estas. Inicialmente previstas para estarem concluídas em 1986 e 1987 as usinas de Angra II e III agora estão previstas para 1993 e 1995 respectivamente. "Já nos custaram 4 bilhões de dólares sem estarem concluídas. Este Acordo constituiu o que alguns convencionaram chamar de o negócio do século, somente comparável aos contratos de compra de usinas nucleares realizadas por Reza Pahlevi, do Irã, com empresas norte-americanas, posteriormente anulados pela revolução xiita" (3).
Insucessos
Estes insucessos levaram o próprio regime militar a buscar outro caminho. No início dos anos 80, a Marinha, articulada com a CNEN, desenvolveu secretamente, e sob seu controle, o chamado Programa Nuclear Paralelo revelado publicamente no ano passado pelo governo Sarney. Este programa é mais promissor do ponto de vista tecnológico, permitindo o desenvolvimento autônomo nesta área. Em particular este programa desenvolveu, com sucesso, uma tecnologia de produção do combustível nuclear, chamada de ultra-centrifugação, distinta daquela constante no Acordo Brasil — Alemanha e que nunca saiu da fase de projeto.
Levamos, portanto, quase oito anos nos dando ao luxo de desenvolver dois programas nucleares. Isto num país com uma dívida externa astronômica e com graves carências sociais. Ê esta dispersão que as medidas governamentais recentes tentam eliminar. Especialmente através da extinção da Nuclebrás, criada com o único fim de executar o Acordo com a Alemanha e da centralização da política nuclear no conselho criado. Mesmo neste aspecto as medidas são limitadas. Primeiro porque os reais executores do mal fechado acordo Brasil —Alemanha continuam em posições-chaves nesta área. É o chamado grupo Geisel na questão energética em geral e nuclear em especial. A começar por Aureliano Chaves, Ministro das Minas e Energia. E em segundo porque os militares já anunciaram que não aceitam dividir o comando nesta frente. O Ministro da Marinha, Henrique Sabóia, apressou-se a declarar no dia imediato ao anúncio das medidas governamentais que seu Ministério não irá perder o poder de decisão sobre o programa nuclear desenvolvido pela Marinha (OESP, 2/9/88)
Militarização
O segundo aspecto a salientar na atual política nuclear brasileira é a sua militarização. O programa nuclear paralelo, sob o comando da Marinha, foi desenvolvido secretamente por quase oito anos. Mas os fins belicistas da política nuclear brasileira ficaram evidentes quando a maioria da Constituinte, sob pressão dos ministérios militares, recusou proposta de texto constitucional apresentado pelas sociedades científicas brasileiras com mais de 30.000 assinaturas, proibindo a produção, o armazenamento e o transporte de artefatos nucleares pelo Brasil.
Os fins belicistas ficam também evidentes quando o governo brasileiro aceita salvaguardas internacionais para os reatores de Angra, para os reatores de pesquisa, para as instalações nucleares no âmbito do Acordo Brasil—Alemanha mas recusa estas mesmas salvaguardas quando se trata do Programa Paralelo, desenvolvido em Aramar, no IPEN e no CIA.
As medidas anunciadas pelo governo federal são completamente omissas na garantia dos fins pacíficos da política nuclear brasileira. A luta contra o belicismo inerente à nossa política terá nova fonte de inspiração na iniciativa da Sociedade Brasileira de Física de propor a criação de um órgão/sistema subordinado ao Congresso Nacional com competência técnica para supervisionar e fiscalizar, inclusive com inspeções in loco, as instalações nucleares brasileiras que estejam fora das salvaguardas internacionais contra bombas nucleares e de articular com a Associación Física Argentina uma proposta idêntica ao Congresso Argentino.
Meio ambiente
É na questão da segurança ambiental que a política nuclear brasileira apresenta a sua feição mais perversa. O acidente de Goiânia revelou a incapacidade do governo brasileiro para assegurar a defesa da nossa população ante os mais elementares usos dos fenômenos nucleares. A opinião pública mundial tem desenvolvido grandes movimentos contra o impacto ambiental dos dispositivos nucleares preocupando-se com problemas como: corrida armamentista, possível guerra nuclear e o conseqüente desaparecimento da vida na Terra, testes nucleares, acidentes em usinas com vazamento de material radioativo como em Three Milles Island, nos EUA e Chernobyl na URSS, e guarda do "lixo atômico". Não se registra, todavia, um movimento de opinião pública contra o uso da radioatividade na medicina, na agricultura e em pesquisas científicas. E tal ocorre porque os riscos aí envolvidos podem ser completamente controlados com severa fiscalização do licenciamento e uso destes dispositivos.
No Brasil um hospital abandona um aparelho radioativo num local de fácil acesso. Cidadãos desinformados levam-no para um ferro velho e demolem a proteção de chumbo para a venda deste metal. E ocorre o acidente. Três mortos, mais de 50 internamentos, 250 contaminados. Uma cidade estigmatizada. E o que é pior: nos próximos anos serão registrados aumentos na incidência de câncer entre as pessoas contaminadas e deformações genéticas nos seus descendentes. Assim como tivemos no passado a criação da Associação das vítimas da Talidomida, hoje temos no Brasil a Associação das Vítimas do Césio, fundada em dezembro do ano passado.
Decorrido mais de um ano desde os trágicos acontecimentos em Goiânia, persiste sem solução a causa de fundo do acidente. O mesmo órgão responsável pelo licenciamento e fiscalização das atividades nucleares, a CNEN, é também órgão executor da política nuclear e produtor de artefatos radioativos. É como botar cachorro para tomar conta de lingüiça.
Uma dificuldade adicional para a adoção de providências é que entre certos setores científicos existe uma subestimação do problema. Um exemplo: a comissão constituída pelo governo Sarney para avaliar o Acordo do Brasil—Alemanha analisa no item 11 das suas conclusões "os impactos ambientais do uso de cada forma de energia". Dedica 10 linhas ao impacto ambiental da combustão do carvão e aos riscos de "inundação de extensas áreas do território nacional". Quanto aos riscos inerentes ao uso dos fenômenos nucleares como fonte de energia dedica 3 parcas linhas para afirmar genericamente que "os riscos e impactos ambientais do uso da energia nuclear devem igualmente ser objeto do mais acurado exame e de medidas institucionais apropriadas". Esta leviana conclusão sobre os riscos da energia nuclear foi elaborada por uma comissão com a participação de cientistas brasileiros do renome de Oscar Sala, Leite Lopes, Marcelo Damy, Ramayana Gazzinelli, entre outros. Estas conclusões causaram grande mal estar nos meios científicos, tendo o físico Rogério Cerqueira Leite tachado os subscritores destas conclusões de "nucleopatas e sofistas".
Incompetência
A incapacidade e a despreocupação da CNEN com a proteção ambiental são gritantes. Em relatório encaminhado ao Conselho Nacional de Meio Ambiente, anteriormente ao acidente de Goiânia, não faz a menor referência à fiscalização de aparelhos radioativos usados na medicina e na indústria. Levantamento feito pelo CRA, órgão do governo da Bahia, revelou que a CNEN só tinha conhecimento de 25% dos aparelhos radioativos existentes naquele estado. Mesmo em Goiânia teremos problemas no futuro. A CNEN passou para o governo do Estado de Goiás a responsabilidade do lixo atômico. A própria CNEN afirmou publicamente que o depósito estará em boas condições de segurança apenas até o ano que vem. Coincidentemente é quando termina a sua responsabilidade (4).
Cabe assinalar que nas medidas anunciadas pelo governo Sarney não há uma só destinada a resolver este problema pelo qual, no Brasil, o órgão federal que executa a política nuclear é o mesmo encarregado, nesta espera, pela fiscalização destas atividades. Não é por desconhecimento do problema. Desde 1975, pelo menos, a Sociedade Brasileira de Física tem exigido do governo a criação de um órgão especial de fiscalização das atividades nucleares, com orçamento próprio e participação paritária de representantes da sociedade civil. Medida, aliás, adotada por quase todos os países que lidam com dispositivos nucleares.
Fonte energética?
Quanto ao uso dos fenômenos nucleares como fonte capaz de suprir parte da demanda energética brasileira, o primeiro comentário a fazer é que se fôssemos depender desta fonte teríamos tido grave déficit nos últimos 10 anos. É que a primeira usina, a Angra I, comprada dos americanos no início dos anos 70 até hoje não funciona regularmente. É justamente denominada de usina-vagalume. Já o acordo com a Alemanha previa a construção de oito usinas para fazer frente ao "previsto" déficit dos anos 80. Nem ocorreu o déficit, nem as usinas foram concluídas. O déficit não ocorreu porque o governo superestimou o crescimento econômico considerando que a economia manteria os índices de crescimento do "milagre" econômico da época do General Mediei. E também subestimou as nossas reservas hidrelétricas. Agora as usinas estão reduzidas a duas, com previsão de entrarem em funcionamento em meados da década de 90.
A discussão sobre a viabilidade econômica da energia nuclear e da existência de outras alternativas de suprimento energético escapa ao objetivo deste artigo. Mas a política nuclear de um país democrático e soberano deve necessariamente subordinar o uso de uma fonte energética com riscos ambientais tão graves, alguns sem solução consistente como o do "lixo" nuclear a uma decisão soberana das populações envolvidas. Tal foi a decisão da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro.
Sintomaticamente o estado que terá de conviver com as usinas Angra I, já concluída, e Angra II, em construção. Positiva, neste sentido, a decisão da Constituinte de subordinar a localização das usinas a lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.
No que toca ao financiamento da construção das usinas, as medidas anunciadas pelo governo federal trazem embutidas uma importante conseqüência para o bolso do cidadão. Com a,extinção da NUCLEBRÁS sua dívida externa, de 4,6 bilhões de dólares passa à responsabilidade do Tesouro Nacional. Ou seja, ao bolso do trabalhador. E o financiamento para concluir Angra II e construir Angra III passa à responsabilidade da ELETROBRAS, ou seja, cada consumidor de energia elétrica passará a pagar mensalmente, embutido na conta de luz, a herança do governo do General Geisel, o espólio do finado Acordo Nuclear Brasil —Alemanha.
Concluímos que a nossa política nuclear é uma política de dispersão de esforços, militarizada, sem fins pacíficos assegurados e sem nenhuma preocupação ambiental. A sociedade brasileira deve exigir uma política que evite a dispersão de esforços e incorpore as universidades brasileiras no seu desenvolvimento. (*) Uma política transparente, sob o comando de autoridades civis e cuja primeira preocupação seja a proteção da saúde ambiental. E principalmente uma política decidida democraticamente pela sociedade.
(*) Que priorize os investimentos em pesquisa para uso da energia nuclear em aplicações industriais, biomédicas e agricultura.
1.Ciência e Libertação, J. Leite Lopes, Editora Paz e Terra, 1978, págs. 137-50
2.O Brasil Nuclear, vários autores, editora Tchê! 1987, pág. 17
3.De Estado civil a nação soberana, J. W. Bautista Vida/, Editora Vozes, 1987, pág. 172
4.Informe, Boletim informativo da SBPC, nº 140, pág. 3
Professor do Instituto de Física da UFBA e Pós-Graduando do Instituto de Física da USP.
EDIÇÃO 16, DEZEMBRO, 1988, PÁGINAS 54, 55, 56, 57