Gorbachev e seu “moinho satânico”
Há mais de um século, no entanto, Marx e Engels já haviam desmistificado tanto o sistema parlamentar burguês quanto o mercado, demonstrando que ao invés de impulsionar eles impedem a construção de uma nova sociedade. O mercado, em especial, chegou a ser chamado de "moinho satânico", mesmo por pensadores progressistas não ligados diretamente ao marxismo, que estudaram sua ação devastadora contra os trabalhadores.
Em fins de 1978, quando uma greve geral dos metalúrgicos da cidade de São Paulo ameaçou abalar os alicerces da política de arrocho salarial mantida pelos governos militares, o então presidente do sindicato, Joaquim dos Santos Andrade, que mantinha vínculos estreitos e evidentes com a ditadura, alterou repentinamente o processo de tomada de decisões pela categoria, introduzindo o voto secreto como instrumento de deliberação. Isso ajudou a abortar o movimento grevista. Joaquim dissolveu uma assembléia dos metalúrgicos e, depois de discursar aos operários advertindo-os contra a continuidade da paralisação, forçou-os a pronunciarem-se sobre o prosseguimento da greve individualmente, na cabine eleitoral. Impedidos de opinar coletivamente sobre algo essencial para sua luta, os operários acabaram, em sua maioria, dizendo não à greve. O método de Joaquim – que aliás está reproduzido na lei de greve que o governo Sarney acaba de enviar ao Congresso – foi condenado unanimemente pelos militantes progressistas.
No início de 1989 o secretário-geral do PCUS, Mikhail Gorbachev, anunciou uma reforma política de grandes proporções na União Soviética. A principal característica das mudanças era a introdução do voto individual e secreto como método fundamental para a democracia. O debate aberto entre o povo no interior dos conselhos populares, prática que formalmente ainda era o alicerce do sistema político do país, foi abandonado. Gorbachev foi calorosamente saudado pelos veículos de comunicação e pelos políticos conservadores, como era de se esperar. Mas além disso a maioria dos ativistas da esquerda não viu em suas decisões nada que ferisse a democracia socialista, e sim "um aperfeiçoamento das instituições políticas soviéticas".
Registrar a mudança de atitude de amplas parcelas do povo em relação à decisão de Joaquinzão e à de Gorbachev é importante, mais pelo que esta mudança tem de simbólico que pelos fatos em si. O período compreendido entre as duas datas coincide com mais uma ampla ofensiva ideológica desencadeada no mundo inteiro pelas forças conservadoras contra o marxismo, e que surtiu efeito mesmo entre setores da opinião progressista. De um modo geral disseminou-se neste último período a idéia de que o socialismo, embora seja um modo de produção teoricamente mais "justo", revelou-se uma catástrofe quando se tentou aplicá-lo à vida social concreta.
O socialismo teria se revelado um sistema social ineficiente tanto para concretizar o aumento da produção de bens e a melhora constante das condições de vida quanto para estabelecer formas de participação política que se igualassem às que estão em vigor há séculos nas grandes democracias ocidentais. Uma declaração feita a um grupo de economistas brasileiros em agosto de 1988 por Abel Aganbenguian, considerado o principal teórico da perestroika, seria a demonstração cabal deste fracasso. "Senhores, é justamente o padrão de vida do cidadão americano que queremos para o nosso povo", disse ele.
Certamente o fracasso de inúmeras experiências socialistas tentadas neste século permitiu que a burguesia obtivesse sucesso inegável em seu esforço para "demonstrar" que o modo de produção capitalista não é algo próprio de uma determinada época histórica, e sim de um sistema "natural", derivado da própria condição humana e por isso indispensável para assegurar o bem-estar e o progresso.
Entretanto, as bases desta teoria foram lançadas em meados do século XVIII pelo economista inglês Adam Smith. Smith, que viveu uma fase inicial do capitalismo, foi um dos teóricos da apropriação privada das riquezas. Ele não pôde enxergar outra forma de organizar a vida social. Smith pensava que a satisfação das necessidades coletivas não era algo que pudesse ser feito consciente e coletivamente pelos homens. Cada ser humano, argumentava ele, é capaz de raciocinar e agir apenas segundo seu próprio interesse egoístico. No entanto, os resultados do trabalho de cada indivíduo encontram-se, relacionam-se entre si obrigatoriamente no mercado capitalista, uma instituição que possui uma espécie de mão invisível, um mecanismo, inteiramente independente da ação consciente dos homens, mas capaz de fazer com que as ações individuais egoísticas atendam, em seu conjunto, às necessidades sociais, promovendo a felicidade coletiva.
Os seguidores modernos de Adam Smith vêem o mercado e sua "mão invisível" como algo universalmente capaz de estimular a iniciativa e garantir a eficiência, tanto dos indivíduos quanto das empresas. Uma empresa só é capaz de continuar funcionando e de prosperar, dizem eles, se der lucro. E ela só dá lucro se for capaz de atender às necessidades da sociedade, expressas através do mercado. Da mesma forma, acrescentam, os trabalhadores são levados a competir uns com os outros para atender mais eficazmente às necessidades do mercado de trabalho, e ganhar mais.
Segundo este mesmo raciocínio, o socialismo, que para os conservadores se resume em "estatismo", é um modo de produção incapaz de promover o progresso, porque desconhece essa "natureza humana", conduz à ineficiência das empresas, e freia a iniciativa dos indivíduos. As primeiras são submetidas ao planejamento estatal, que inibe a iniciativa própria. Os segundos deixam de contar com o único mecanismo capaz de impedir que sejam indolentes. Como não temem o desemprego (porque o socialismo assegura o pleno emprego), perdem os estímulos para se desenvolverem pessoal e profissionalmente, que resultariam da concorrência. Outro fator destes desestímulos à tendência ao igualamento salarial, existente na sociedade socialista.
“Que é mais democrático: o voto secreto, na cabine indevassável, ou debate nos conselhos?”
A argumentação ideológica dos apologistas do capitalismo não se limita a anunciar a inviabilidade do modo de produzir do socialismo. Ela investe também contra a forma de organização política socialista, e procura igualmente apresentar a democracia burguesa como algo a-histórico, eterno, como a forma acabada e mais desenvolvida de organização política. Eles silenciam a respeito dos limites desse sistema, onde a participação política da esmagadora maioria dos indivíduos esgota-se na cabine eleitoral. A tarefa de administrar o Estado, mesmo nas democracias burguesas mais avançadas, cabe a um grupo restrito de pessoas, os políticos profissionais.
A propaganda da direita, porém, procura afirmar que a "natureza do homem" é incapaz de conviver com um sistema melhor. A alternativa, diz ela, seria um regime de Estado onipresente, onde as opções individuais seriam inapelavelmente sufocadas pelos burocratas de plantão, ou pelas massas ensandecidas. No Brasil, durante os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, por exemplo, os políticos conservadores e a grande imprensa foram unânimes em anunciar a existência de graves ameaças à "democracia" quando entidades sindicais organizaram manifestações para pressionar os parlamentares e espalharam cartazes apontando aos eleitores os deputados que haviam votado contra os interesses populares. A prosseguirem estas práticas, dizia-se, estaria aberto um caminho capaz de conduzir rapidamente à derrocada das instituições, e ao "totalitarismo".
É inegável que quando Gorbachev anunciou a perestroika os conservadores, já em campanha aberta contra as formas de organização econômica e política propostas pelo marxismo, viram no fato a confirmação de todas as suas teses. As mudanças anunciadas pela União Soviética significavam a revisão declarada das idéias de Marx que guardavam incompatibilidade com o modo de produção capitalista. Era como se partisse, do país que as massas haviam se acostumado a ver como símbolo do socialismo, a confirmação de uma outra grande tese conservadora: a idéia de que o marxismo é, nos tempos "modernos" que vivemos, uma ideologia ultrapassada, útil apenas se puder ser esvaziada de seu conteúdo revolucionário; se puder ser empregada para "melhorar" a sociedade capitalista "eterna", que só pode funcionar eficientemente quando respeita o mercado, preserva as formas de democracia burguesa e elimina a igualdade entre os homens.
"O mercado tem um papel insubstituível na economia", afirmou Vadin Medvedev, novo ideólogo oficial do PCUS. "Falar em certas idéias marxistas neste final de século chega a ser ridículo" – disse no Rio de Janeiro o filósofo soviético Alexandre Cipko. "Devemos perguntar o que ficou do marxismo. Sem dúvida ficaram valores humanísticos".
Esta declaração de falência da essência revolucionária do marxismo, como todas as feitas desde o século passado, precisa ser demonstrada. O próprio Marx destacou certa vez o que pensava ser o mérito de sua obra. Em carta dirigida a José Weidemeyer, líder socialista na Alemanha e nos Estados Unidos, ele afirmou: "No que me refere, não me cabe o mérito de ter descoberto a existência das classes na sociedade moderna, nem a luta entre elas. (…) O que eu trouxe de novo foi demonstrar: 1) que a existência das classes só ocorre em determinada fase da história da produção; 2) que a luta de classes conduz, necessariamente, à ditadura do proletariado; 3) que esta mesma ditadura não é mais que a transição até a abolição de todas as classes, e até uma sociedade sem classes".
Marx e Engels estudaram a sociedade capitalista numa fase posterior à vivida por Adam Smith. Puderam analisar muito mais profundamente seus fundamentos e foram capazes de identificar inúmeros erros e insuficiências nas conclusões do economista inglês, cujos compromissos burgueses faziam-no cego para as mazelas do capitalismo.
Eles demonstraram, por exemplo, que o mercado não é algo inerente às sociedades humanas, mas um mecanismo que atua apenas durante uma fase histórica precisa, e torna-se absoluto com, o capitalismo. E a partir desta formação social, onde as forças produtivas e a divisão do trabalho já alcançaram certo grau de desenvolvimento, os homens passam a produzir não mais para si próprios, mas principalmente para vender seus produtos no mercado. Tais produtos são, por isso, mercadorias, e a própria força de trabalho se transforma numa mercadoria capaz de produzir outras.
As relações de troca entre as mercadorias parecem "provir da natureza dos produtos", diz Marx. Porém, ele esclarece que o caráter de mercadoria de que se revestem todos os produtos, visto como "natural", é resultado de relações sociais próprias de um modo de produção específico, o capitalismo. A transformação dos produtos em mercadorias não é, portanto, alto "trivial", existente desde que o homem se organizou em sociedade. Ela é fruto de uma época em que o dinheiro (a mercadoria das mercadorias) se transforma na medida de todas as coisas. Uma época em que bens, sentimentos, honra, a dignidade pessoal, as numerosas liberdades, as ilusões religiosas e políticas, as atividades reputadas veneráveis, tudo se torna vendável e comprável.
“Fala o filósofo da perestroika: 'certas idéias marxistas chegam a ser ridículas'".
Marx e Engels demonstraram além disso, e já no século passado, que as sociedades baseadas no mercado representam a partir de certo ponto um entrave para o desenvolvimento das forças produtivas. "Toda sociedade baseada na produção de mercadorias" – diz Engels, em sua célebre obra, o Anti-Duhring – "apresenta a particularidade de que nela os produtores perdem o comando sobre suas próprias relações sociais. Cada qual produz para si, com os meios de produção de que consegue dispor, e para as necessidades do seu intercâmbio privado. Ninguém sabe qual a quantidade de artigos do mesmo tipo que os demais lançam no mercado, nem a quantidade que o mercado necessita; ninguém sabe se o seu produto individual corresponde a uma procura efetiva, nem se poderá cobrir os gastos, nem sequer, em geral, se poderá vendê-lo. A anarquia impera na produção social".
Esta crítica ao mercado foi secundada por outros estudiosos, que mostraram a consequência da ação da "mão invisível" sobre os trabalhadores. O economista austríaco Karl Polanyi, um acadêmico progressista, escreveu em 1944, numa obra notável (A grande transformação: as origens de nossa época) que, "em termos ligeiramente mais técnicos, é uma economia dirigida pelos preços do mercado e nada além dos preços do mercado".
Polanyi faz um retrospecto da introdução da economia de mercado na Europa Ocidental, depois do século XVIII, e mostra a forte resistência que ela encontrou. "A sociedade resistiu, inconscientemente, a qualquer tentativa de transformá-la em mero apêndice do mercado", diz ele. "A transformação implicava uma mudança da motivação da ação por parte dos membros da sociedade: a motivação do lucro passa a substituir a motivação da subsistência. Todas as transações se transformam em transações monetárias e estas, por sua vez, exigem que seja introduzido um meio de intercâmbio em cada articulação da vida industrial. Todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa e, qualquer que seja a verdadeira fonte da renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda".
Polanyi descreve essa economia como um "moinho satânico" que "triturou os homens transformando-os em massa". Longe de ser uma característica "natural" e "eterna" do homem, a economia de mercado, baseada no dinheiro e no louro, foi imposta cruamente aos homens desde suas primeiras manifestações, no final da Idade Média. Marx descreve, em O Capital (cap. XXIV, item 3), a legislação sanguinária adotada desde o século XV em toda a Europa Ocidental, contra os camponeses expulsos de suas terras e transformados "em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos". Durante os 38 anos do reinado de Henrique VIII, na Inglaterra (1509-1547), foram executados 72 mil pequenos e grandes ladrões, carnificina que continuou sob os reinados seguintes.
Nos outros lugares da Europa, não era diferente. A transformação gradual dos pobres em "uma classe de trabalhadores livres" foi o resultado conjunto da feroz perseguição à vagabundagem e do patrocínio da indústria doméstica, poderosamente auxiliados pela contínua expansão do comércio exterior", diz Polanyi.
Como se viu até aqui a economia de mercado não é, portanto, algo "natural" nem "próprio do ser humano". Ao contrário, sua implantação foi uma calamidade para os trabalhadores e outros setores sociais, e encontrou intensa resistência. É por isso que Marx e Engels propuseram não a "humanização" e sim a destruição do capitalismo, da economia de mercado. E é necessário esclarecer pontos fundamentais a respeito do modo de produção e do sistema politico que eles propuserem em seu lugar.
Marx e Engels, ao contrário de Adam Smith, enxergaram já no fim do século passado que o próprio capitalismo criava condições para o surgimento de um novo modo de produção, onde o atendimento das necessidades sociais seria garantido através não mais da "mão invisível do mercado", e sim do planejamento consciente feito pelos próprios homens.
Eles enxergaram que sob o capitalismo "a anarquia da produção social aguça-se cada vez mais". Mas que ao mesmo tempo a burguesia, ao desenvolver como em nenhuma época anterior a produção de mercadorias, não podia fazê-lo sem "transformar os meios de produção em meios sociais, só manejáveis por uma coletividade de homens".
"A roça, o tear manual e o martelo do ferreiro foram substituídos pela máquina de fiar, pelo tear mecânico, pelo martelo movido a vapor; a oficina individual deu lugar à fábrica, que impõe a cooperação de centenas e milhares de operários. (…) O fio, as telas, os artigos de metal que agora saíam da fábrica eram produto do trabalho coletivo de um grande número de operários, por cujas mãos tinham de passar sucessivamente para a sua elaboração. Já ninguém podia dizer: isto foi feito por mim, este produto é meu".
A produção é obra, portanto, de um coletivo de trabalhadores. Porém, ela é apropriada individualmente pelo capitalista. A anarquia ainda impera na produção social – e pela primeira vez desde que o homem se organizou em sociedades –, os produtos são fabricados de forma coletiva e organizada, embora sob a direção de um único capitalista, são estes dois antagonismos que serão responsáveis pelas crises do capitalismo, e que tornarão seu fim não apenas algo realizável, mas também uma necessidade histórica.
Engels mostra, ainda no Anti-Duhring, que o surgimento do novo modo de produção que substituirá o capitalismo é um processo cujo primeiro passo é a expropriação dos meios de produção da burguesia. "O proletariado toma nas mãos o poder do Estado, e converte os meios de produção em propriedade estatal". Não há senão este caminho", diz Engels, para desencadear todas as transformações sociais que caracterizarão o advento de uma nova época.
Mais adiante, ele explica com clareza cristalina que se este período representa um salto histórico de enormes proporções é precisamente por substituir a "mão invisível" do mercado por um mecanismo muito mais poderoso, e por livrar os homens da necessidade animalesca de viverem e de competirem entre si apenas para garantir a própria sobrevivência. "Ao apossar-se a sociedade dos meios de produção, cessa a produção de mercadorias e, com ela, o domínio do produto sobre os produtores. A anarquia reinante no seio da produção social cede lugar a uma organização planejada e consciente. Cessa a luta pela existência individual. Assim, em certo sentido, o homem sai definitivamente do reino animal e sobrepõe-se às condições animais de existência, para se submeter a condições de vida verdadeiramente humanas. (…) A própria existência social do homem, até aqui enfrentada como algo imposto pela natureza e a história, é, de agora em diante, obra livre sua. (…) Só a partir de então, ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. (…) É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade".
Da mesma forma, só os deturpadores mais grosseiros podem alegar que o socialismo científico propõe em seu programa a existência de um Estado todo poderoso, que controla cada passo da vida dos indivíduos. Embora tivessem polemizado incessantemente com os anarquistas, que propõem "abolir" o Estado sem dizer que relações sociais concretas podem substituí-lo, Marx e Engels sempre deixaram claro que o controle estatal dos meios de produção era apenas um passo necessário para criar condições que permitissem a extinção do Estado.
Quando termina de transformar os meios de produção em propriedades coletiva, diz o Anti-Duhring, o proletariado destrói "toda a diferença e todo o antagonismo de classes, e com isso o Estado como tal". Engels lembra que a sociedade sempre precisou do Estado, com todos os seus múltiplos aparelhos, para "manter pela força a classe explorada nas condições de opressão". No entanto, raciocina, "quando o Estado se converter, finalmente, em representante efetivo de toda a sociedade tornar-se-á por si mesmo supérfluo. Quando não existir já nenhuma classe que precise ser submetida, (…) nada mais haverá para reprimir, nem haverá necessidade, portanto, dessa força especial de repressão que é o Estado.
O aparente paradoxo entre a necessidade de reforçar o poder do Estado – para controlar o conjunto dos meios de produção – e a de criar condições para o desaparecimento deste mesmo poder provocou seguidos debates no interior do próprio movimento marxista. Mais de uma vez surgiram teses que procuravam negar a necessidade do definhamento da máquina estatal. A polêmica contra tais teses, no entanto, permitiu ao marxismo definir com clareza ainda maior certas questões.
Um dos debates mais famosos opôs, em 1917, Lênin, o líder do Partido Bolchevique russo, a Karl Kautsky, que havia sido colaborador pessoal de Engels e principal líder dos marxistas alemães, mas que havia assumido posições anti-revolucionárias. Este debate é de enorme atualidade, porque demonstra que já no início deste século surgira e se desenvolvera uma ampla discussão sobre o caráter das instituições políticas capazes de levar ao comunismo.
Entre outros pontos, Kautsky propunha a preservação de instituições políticas e da máquina estatal burguesa, que apenas mudariam de mãos quando os marxistas chegassem ao poder; e dizia que suprimi-las era um objetivo dos anarquistas.
Lênin combateu ambos os pontos de vista. Sustentou que o marxismo jamais poderia abandonar o objetivo de pôr fim ao Estado, e criticou asperamente a forma utilizada por Kautsky para abordar a polêmica com os anarquistas. Procurou mostrar ainda que as instituições políticas a serem estabelecidas a partir da tomada do poder pelo proletariado deveriam servir tanto para esmagar as tentativas da burguesia de retomar o poder quanto para preparar o terreno para o estabelecimento da sociedade sem classes e sem Estado.
“Redução das diferenças salariais: mais uma idéia que a perestroika abandonou”.
Marx havia dito que entre a sociedade capitalista e a sociedade sem classes (comunista) é necessário um período de transformação revolucionária da sociedade. E acrescentara: "A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro a não ser a ditadura revolucionária do proletariado". Lênin deixa claro inclusive ser impossível "fixar prazos para a duração deste período". O advento desta nova fase, lembra ele, "pressupõe uma produtividade do trabalho que não é a atual e homens que não são os atuais".
Ao lado disso, no entanto, ele vai demonstrar que o poder socialista, ao mesmo tempo em que se reforça para sufocar as tentativas de retrocesso, precisa gradativamente ir criando as condições para seu próprio desaparecimento. Entre estas condições, demonstra Lênin, está não a conservação, e sim a indispensável substituição das instituições políticas e da máquina de Estado burguesa por instrumentos inteiramente distintos – os sovietes, ou conselhos populares. Exatamente o contrário das reformas introduzidas por Gorbachev.
A democracia burguesa, como se viu, permite ao povo participar das decisões políticas apenas nas eleições. Sob o socialismo, diz Lênin, é preciso preparar todo o povo para discutir e decidir sobre as questões do Estado. "Pela primeira vez na história das sociedades civilizadas a massa da população se levanta para intervir por conta própria não só em votações e eleições, mas também no trabalho diário da administração. Sob o socialismo todos interferirão na direção e se habituarão rapidamente a que ninguém diria.
Ainda em O Estado e a revolução o líder dos comunistas russos mostra que para chegar à sociedade sem classes é necessário reduzir a jornada de trabalho, outro conselho desprezado por Gorbachev e seus seguidores. Esta já é uma medida plenamente possível e necessária, dizia Lênin. Possível porque com os meios de produção sob propriedade coletiva o avanço da técnica, das máquinas, da automatização resulta não em desemprego, mas na melhora geral das condições de trabalho. E necessária porque só assim os trabalhadores terão mais tempo para se ocuparem da administração do Estado.
Por fim, Lênin mostra ser necessário caminhar no sentido da redução progressiva das diferenças salariais, uma idéia que a perestroika também tenta destruir. Mesmo os salários dos funcionários do Estado, diz ele, devem ser paulatinamente equiparados ao salário de um operário, para evitar o surgimento de uma casta burocrática privilegiada.
Mais tarde, já com a experiência das dificuldades dos primeiros anos do governo soviético, Lênin enfatizou mais um aspecto fundamental para o avanço do socialismo que não é levado em conta pelo atual governo soviético. Ele já dissera anteriormente que o comunismo surgirá com "homens que não são os atuais", vorazes por bens e recompensas materiais. Agora, no poder, acrescenta que o homem novo necessário para a construção do comunismo seria resultado de uma "revolução cultural", um método que implica não só o desenvolvimento material da sociedade, mas também a mobilização política constante e em profunda revisão dos valores burgueses.
Os interesses individuais, e a luta por sua satisfação invocados por Gorbachev resultam das condições impostas pelo mecanismo do mercado à sociedade. A concorrência é o combustível que move o "moinho satânico", a guerra aberta de todos contra todos. A concorrência feroz entre todos não é apanágio apenas das grandes empresas, mas instala-se entre os próprios trabalhadores, dando sólido fundamento ao individualismo e minando as bases da cooperação. Gorbachev ataca da mesma forma a igualdade entre os homens, que procura tratar de modo pejorativo. "O socialismo não tem nada a ver com igualitarismo", garante no livro Perestroika. Engels já havia destruído este argumento. Mas é importante notar que no próprio bloco dos países ligados à URSS vozes importantes se levantam contra idéias como esta. O dirigente cubano Fidel Castro, por exemplo, num discurso em 8 de janeiro de 1989, disse: "Parece-me insultuoso ao ideal revolucionário, às idéias revolucionárias, a pretensão de que o homem só age por interesses de tipo material. (…) Não pode existir socialismo, nem pode desenvolver-se uma sociedade comunista, sem educação, sem que certas idéias se tornem princípios éticos irrenunciáveis de cada cidadão, de cada ser humano".
A reforma dos preços é outro aspecto fundamental para a implantação do sistema de mercado. "Sem a reforma dos preços não poderemos criar relações econômicas normais na economia nacional", dizem as resoluções da 19ª Conferência. Esta fase, em sua candidez, trai o segredo das mudanças em curso. Em vez de relações econômicas "normais" , dependentes dos preços estabelecidos pelo mecanismo de mercado, seria melhor dizer a palavra correta para designar o que se pretende: capitalismo.
“Acabar com os preços administrados, aumentar aluguéis, alimentos, transportes e telefones”.
Outros defensores da perestroika esclarecem o significado, dessa frase. Seweryn Bialer, especialista em URSS da Universidade de Colúmbia, Nova Iorque, diz que o sistema previdenciário soviético, que o secretário do PCUS quer liquidar, "controla preços ridiculamente baixos de aluguéis .de apartamentos, gêneros de primeira necessidade, transportes e telefones".
Os ingredientes para a construção do "moinho satânico" estão ameaçadoramente presentes nestas propostas: liberdade de preços e com ela a inflação e o crescimento do custo de vida; desemprego e com ele o arrocho salarial; e, finalmente, a institucionalização da desigualdade, isto é, a repartição desigual da riqueza produzida pelos trabalhadores soviéticos, do fruto do esforço comum, como em qualquer país capitalista.
Os trabalhadores soviéticos estão à frente de um inimigo que, há pelo menos cinco séculos, é enfrentado pelos trabalhadores dos países capitalistas – o mercado. Ele já faz estragos visíveis. E. Gambeeva, responsável por uma fazenda leiteira num kolkhoz na região de Orel, diz: o "trabalho em brigadas autogeridas levou a um forte aumento dos salários. Chegamos a receber 400 rublos, mas estou preocupada pelo fato de o dinheiro começar a interessar mais que tudo". Um operário denunciou, na 19ª Conferência, que a perestroika não trouxe nenhum benefício aos trabalhadores. A presidente do Comitê das Mulheres Soviéticas, por sua vez, denunciou que as reformas econômicas atingiram "o setor mais vulnerável da força de trabalho: as mulheres e as crianças. As empresas que precisam demitir para cortar os seus custos estão dispensando primeiro as mulheres. Mulheres com filhos estão se tornando uma força de trabalho indesejável".
O sociólogo Gennady Batygin, sub-editor da revista Estudos Sociológicos, diz que constata uma falta de entusiasmo nas pessoas; elas "não querem fazer força", diz ele. "Só as camadas superiores, os intelectuais, têm entusiasmo". Entre os camponeses, há também sinais de resistência. O húngaro Andras Nagi referiu-se, no Seminário Internacional sobre a Perestroika realizado em São Paulo e Rio de Janeiro, em 1988, a muitas famílias de camponeses que chegam a destruir equipamentos agrícolas daquelas que optaram pelo sistema de autogestão.
Gorbachev tem descrito com cores fortes a crise da URSS. Queda de crescimento econômico; ineficiência produtiva; planificação mal feita e consequente uso desequilibrado de recursos econômicos; corrupção generalizada. Alguns analistas vão mais longe, e mostram que nos últimos 30 anos, na URSS, os ricos se tornaram mais ricos e os pobres mais pobres, acumulando no país uma "nova pobreza" que atinge 20% da população (isto é, mais de 50 milhões de pessoas), cujos rendimentos atingem apenas 50 rublos mensais por família – metade do mínimo vital.
A situação encontrada quando o líder soviético subiu ao poder exigia, portanto, soluções imediatas para evitar o agravamento da crise, que se aproximava com rapidez. Homem do aparato burocrático que, crescentemente, governa a URSS como uma casta privilegiada cujos interesses chocam-se com os dos trabalhadores, Gorbachev conseguiu até agora esconder do povo soviético, e de amplas parcelas do povo progressista em todo o mundo, um retrocesso organizado no qual os últimos traços socialistas que persistiam na URSS são rapidamente apagados e substituídos por incentivos e motivações claramente capitalistas.
Mas a apologia do mercado – em todas as fórmulas em que a palavra aparece – mal consegue esconder o destino final do retrocesso comandado por Gorbachev – a criação de mecanismos que viabilizem uma via capitalista clássica para aquele país. Vadim Medvedev reconhece esse fato ao declarar: "as vias de desenvolvimento do capitalismo e do socialismo se cruzam inevitavelmente numa única civilização humana".
Ao contrário do que pensa Medvedev, ao prever uma combinação de capitalismo e socialismo, sempre que a humanidade encontrou-se numa encruzilhada, que impunha a implantação de novas formas de vida, ela se viu obrigada a um enorme esforço intelectual para distinguir com clareza o velho do novo, e impedir que o passado entrave a marcha do progresso. A mudança do modo de produção implica uma mudança radical de todas as relações entre os homens, mesmos daquelas vistas ilusoriamente como "naturais" e "eternas".
* José Carlos Ruy é jornalista, cientista político e colaborador de Princípios.
** Antonio Martins é redator de A Classe Operária e colaborador de Princípios.
EDIÇÃO 17, JUNHO, 1989, PÁGINAS 56, 57, 58, 59, 60, 61