Não se trata de ironia nem de pretensão. A verdade é que não dá mais para ignorar a profícua produção teórica que analisa a condição da mulher, seu subjugamento e opressão ao longo da história, sua resistência e luta, sua situação atual e perspectivas. Estes trabalhos, particularmente nos últimos quinze anos (com destaque para a década de 1970), forjaram uma concepção, uma teoria ou doutrina que se afirma como feminismo, com diversas matizes, de acordo com a origem, posição filosófica e política, ou ideologia das mulheres cientistas e grupos feministas que vêm pesquisando a relação mulher/sociedade.

Nos diversos campos em que esta investigação é feita – sociologia, história, economia, antropologia, psicanálise – há um denominador comum: a crítica ao marxismo. Não importa sob que ângulo a investigação feminista é realizada, o marxismo é sempre citado, seja para dar o “ponto de vista feminista” sobre o marxismo, seja para reelaborar um marxismo “sob o ponto de vista feminista”, como quer Schulamith Firestone ao afirmar a necessidade de “ampliar o materialismo histórico para incluir o que é estritamente marxista” (1) (grifo da autora), criando, assim, uma espécie de “materialismo histórico feminista”. Outras correntes, reportando-se a uma visão estritamente biológica sobre o processo de dominação de um sexo pelo outro, defendem um tipo de “feminismo puro”, isento de qualquer contágio teórico com o marxismo, porque, dizem, este reduz a luta de sexos à luta de classes, não levando em conta, portanto, a questão decisiva para a libertação da mulher: a re-apropriação de seu próprio corpo e dos meios de reprodução, pois a essência de sua dominação reside no fator biológico de sua condição de reprodutora.

As críticas à pretensa “insuficiência” do marxismo sobre a questão da mulher se faz presente em quase todas as análises sobre sua situação de dependência e inferioridade na sociedade, bem como sobre as origens de sua opressão. Evidentemente, as diversas teorias feministas não param somente na crítica à interpretação do marxismo sobre o processo de transformação da sociedade, mas, sobretudo, investem contra o caminho revolucionário apontado pelo marxismo para a luta de emancipação da mulher. Não obstante, as diversas contribuições teóricas nos terrenos da história e da sociologia, das pesquisas científicas no terreno da antropologia e até mesmo a tentativa de Juliet Mitchell que “empreende o grande esforço de resgatar a psicanálise como doutrina geral libertadora” (2) porque acredita ser “possível aprofundar o estudo do inconsciente do ponto de vista do materialismo dialético” (3), a verdade é que as teorias feministas têm provocado uma grande confusão teórica a respeito da concepção materialista histórica sobre a condição da mulher.

Isto acaba por negar o marxismo como ciências e o socialismo como etapa de transição da sociedade capitalista para comunista (4). Consequentemente, nega-se também o papel específico da mulher na luta pelo socialismo por considerar que este não “resolve a questão específica” da mulher. Apresentam-se soluções (ou saídas) alternativas, no mínimo, utópicas, no sentido exato do conceito: prenunciam a luta feminista como fator determinante para o “advento de uma nova era” (5), sem indicar os meios concretos para a consecução de tal fim. Quando muito, tais indicadores reduzem-se (aí sim pode-se falar em redução) a fatores estritamente biológicos ou estão vinculados a uma visão existencialista (personalista) de mundo (6).

Não é mais possível permitir, sem contestação, esta visão eclética sobre o marxismo, não apenas quanto ao papel da mulher na sociedade, mas quanto à sua condição de ciência da sociedade. É o caráter científico do marxismo que vem sendo questionado. É preciso enfrentar a pretendida controvérsia entre o feminismo e o marxismo, resgatando, deste último, sua inequívoca (e pioneira) contribuição científica sobre as raízes da opressão da mulher e retomar a perspectiva revolucionária sobre a luta de emancipação da mulher.

Este breve ensaio não pretende analisar exaustivamente (até por limitação de referencial bibliográfico) as diferentes concepções feministas, mas apenas sistematizar as principais críticas feitas ao marxismo e buscar respondê-las, ainda que de forma inicial, sob a ótica do materialismo histórico, da economia política marxista e do socialismo científico.

Fica evidente a preocupação de separar o marxismo do feminismo

Antes de procedermos a esta sistematização é necessário assinalar que o questionamento das correntes feministas modernas ao marxismo não se faz apenas quanto a possíveis omissões em programas de partidos comunistas em diferentes conjunturas históricas e diante de revoluções específicas. Estas também são feitas inclusive quanto às importantes e revolucionárias conquistas obtidas pelas mulheres na Revolução Russa de 1917 (7) que, mesmo quando reconhecidas, são consideradas limitadas e, segundo informação sem fonte de referência, de Andrée Michel “chegaram mesmo a ser suprimidas”, porque teria “o poder” decidido, “depois de terminada a guerra civil, desenvolver a produtividade” (8). O papel das mulheres na Revolução Russa e as transformações reais nas suas condições obtidas sob o socialismo, bem como a situação da mulher e seu processo de emancipação na Albânia socialista (que nenhuma das correntes feministas procura sequer investigar), serão comentados em outro trabalho. Por ora, cabe dizer que a essência do questionamento ao marxismo diz respeito às bases científicas em que se assenta, atingindo-o, portanto, como ciência, negando-lhe o papel revolucionário causado por seu advento no terreno das ciências sociais e, finalmente, obstruindo seu caráter revelador (enquanto ciência) das leis objetivas que regem o desenvolvimento da sociedade e sua aplicação revolucionária (9) até o fim pelo proletariado – classe mais avançada da sociedade – até acabar com todas as formas de exploração e opressão. Ao retirar a essência revolucionária do marxismo (enquanto ciência e guia para a ação – não um dogma), que é exatamente pôr a descoberto a coincidência objetiva do desenrolar objetivo (a redundância é necessária) da sociedade – com os interesses da classe operária, a única que não aspira perpetuar um regime social caduco – retira-lhe também seu instrumental revolucionário de análise da realidade, sua condição de arma teórica (e prática) na luta contra a exploração e opressão que se quer acabar.

Assim, também, subtrai-se do marxismo seu significado na luta de emancipação da mulher. Esta preocupação fica evidenciada na ansiedade das teóricas feministas em “distinguir” o marxismo do feminismo, dando a este uma conotação de ciência que, quando muito, pode utilizar o arcabouço marxista (suas categorias), mas nunca sua essência científica e, muito menos, seu ponto de vista de classe.

Não é necessária uma profunda investigação para demonstrar esta preocupação (ou mágoa). Ela fica transparente na queixa de Claude Alzon:

“Jamais se fez, no plano teórico, para as mulheres, o que foi feito para os operários, isto é, distinguir claramente sua exploração (lucro tirado pelos homens do seu trabalho) e sua dominação (tudo o que constitui o poder masculino)” (10).

No entanto, não pode deixar de acrescentar:
“É verdade que, para o marxismo, um não anda sem o outro, o poder do opressor sendo destinado a permitir a exploração do oprimido”, (11) embora, mais adiante, prossiga criticando a tese de Engels sobre a origem do patriarcado.

O que se quer, então, é uma teoria científica exclusiva para as mulheres? Desligada da dialética do processo de desenvolvimento das leis mais gerais de toda a sociedade? Acima da posição econômico-política ocupada pelas mulheres nas diferentes formações econômico-sociais, independente das relações de exploração e dominação a que são submetidas as classes oprimidas nas diversas etapas históricas? Impermeável à luta de classes e a ela desenvolvendo-se paralelamente sem “contágio”? Isso, ou o que quer Schulamith Firestone, uma espécie de marxismo para as mulheres ao afirmar que “podemos desenvolver uma visão materialista da história, baseada no próprio sexo” (12) pois, “para a revolução feminista, precisamos de uma análise da guerra dos sexos tão completamente quanto para a revolução econômica foi a análise de Marx e Engels sobre o antagonismo de classes” (13) (grifos nossos).

E isto porque, acrescenta,
“a doutrina do materialismo histórico, por mais que tenha representado um avanço significativo em relação à análise histórica anterior, não foi a resposta completa, como os fatos posteriores confirmaram” (14).

Que fatos? A autora de A dialética dos sexos não indica. E, baseada em sua avaliação do marxismo enquanto ciência, permite-se parafraseá-lo, “completando-o sob a ótica da dialética dos sexos”. A esta formulação tem-se chamado de feminismo radical, uma das vertentes do feminismo moderno.
Também Juliet Mitchell, em outro tom, lamenta o que considera a “debilidade original existente na discussão tradicional da questão (a da subordinação da mulher, esclarecimento nosso) nos clássicos. Pois embora os grandes estudos do século passado sublinhassem, todos, a importância do problema, não o “resolveram” teoricamente. As limitações de sua abordagem jamais foram transcendidas posteriormente” (15). Padeceria, assim, o marxismo de um tipo de “estigma de origem”, na análise das raízes da opressão da mulher: o de não resolver o problema fora (ou independente) da análise do processo de desenvolvimento e transformação da sociedade, reduzindo-o a soluções “exclusivamente econômicas” e não elaborando uma teoria própria, permanecendo “a libertação das mulheres (…) como um ideal normativo, um acessório da teoria socialista, sem estar estruturalmente integrado nela” (16).

Síntese da concepção emancipacionista

O feminismo emancipacionista – que vem formulando o ponto de vista materialista histórico sobre a questão da opressão à mulher – entende e analisa a especificidade da mulher como fruto da perda da liberdade de produzir e confinamento à esfera privada, com consequentes derrotas no plano político-jurídico (derrota do direito materno, por exemplo), afirmando, portanto, a opressão específica em íntima relação com o processo de surgimento de propriedade privada, transformando a própria mulher em propriedade do homem (Marx, in A Ideologia Alemã). Consequentemente, a opressão específica da mulher, sua gênese, seu processo de formação, coincide no tempo (Engels, in A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado) com o aparecimento das classes, com elas se entrelaçando e refletindo seu antagonismo e sua luta ao longo da história, nas diversas etapas e em diferentes formações econômico-sociais. A opressão específica da mulher caminha e se desenvolve “pari passu” com a opressão social, de classes, caracterizando, assim, a mulher como oprimida enquanto ser sexual e ser social (Bebel, in A Mulher e o Socialismo), com seus correspondentes reflexos e formas na superestrutura. E assim como na relação base/superestrutura esta incide sobre aquela com relativa independência, também a especificidade da opressão da mulher assume formas próprias no terreno cultural, político, ideológico, sexual, que atuam conjuntamente e se entrelaçam à opressão (exploração) social. Em decorrência deste ponto de vista materialista histórico, livrar-se da opressão especifica – emancipar-se – exige a via revolucionária que aponta o caminho do socialismo, único regime que resolve a contradição básica da sociedade de classes capitalista – produção coletiva x apropriação individual transformando esta última em social, ao eliminar a propriedade privada sobre os meios de produção. Deste modo, o socialismo abre as portas à completa emancipação da mulher. Nesta perspectiva, o grande desafio, posto para o feminismo emancipacionista (que também o diferencia de outros feminismos) é a mobilização das massas de milhões de mulheres – principalmente operárias, camponesas, trabalhadoras em geral, estudantes, intelectuais progressistas para abraçar a causa da emancipação da mulher em sua especificidade, mas interligada com a luta revolucionária rumo ao socialismo, único caminho capaz de acabar com toda a exploração e opressão; o que advir com a passagem para a sociedade comunista (“Do reino da necessidade para o reino da liberdade”, Engels). Por fim, Simone de Beauvoir, na obra mais densa e sistematizada sobre a mulher, após uma breve análise sobre “o ponto de vista do materialismo histórico” (17), mesmo considerando que a visão de Engels “assinale um progresso (…) ela nos decepciona: os problemas mais importantes são escamoteados”. E, mais adiante: “a exposição de Engels permanece, portanto, superficial, e as verdades que descobre parece-nos contingentes. É que é impossível aprofundá-las sem sair fora do materialismo histórico”. (18).

Em todos esses arrazoados há uma base comum: a negação do marxismo enquanto ciência por sua “incapacidade” de, fora dele (de seus “limites”, como querem), resolver o problema da subordinação das mulheres e de sua emancipação. Daí a necessidade de buscar outros “fundamentos científicos” que seriam aportados pelo feminismo, enquanto “ultrapassagem” teórica sobre a questão da mulher. Eis aí estabelecida a polêmica. Resta saber se ela é verdadeira. O que se quer é que o marxismo se negue a si mesmo e passe a ter outra base filosófica e outra visão (não materialista) da história. O que estas formulações reivindicam é que o materialismo deixe de ser histórico e passe a ser mecânico (como era o velho materialismo dos séculos XVII e XVIII e da primeira metade do século XIX). O que se pretende é que o socialismo volte a ser eclético, saia do terreno da realidade e deixe de ser ciência!! (19).

É falsa a polêmica feminismo X marxismo. Parte de premissas incorretas no terreno das ciências sociais (base teórica quase sempre idealista e método de análise em geral metafísico) e de uma incompreensão básica do materialismo histórico enquanto ciência, portanto, do objeto de sua investigação. Qual é esse objeto? O materialismo histórico é a ciência que estuda as leis mais gerais do desenvolvimento da sociedade em seu conjunto, em suas inter-relações. Diz respeito às relações mútuas entre todos os aspectos da vida social e não somente de relações e modificações em separado, de aspectos específicos, que são objetos de outras ciências especiais, como antropologia, história, ciência política etc. É claro que existem zonas de encontro entre as diversas ciências sociais, mas há especificidade em seus objetos. O materialismo histórico tem por objeto exatamente as leis gerais do processo histórico. Investiga as questões, por exemplo, sobre o caráter do regime social, sobre como se realiza o processo de desenvolvimento da sociedade, se é sujeito a leis ou se transcorre de forma anárquica, sobre como se efetua a passagem de um regime social a outro: enfim, sobre os nexos e inter-relações do complexo e contraditório curso do desenvolvimento histórico-social.

Neste sentido, o materialismo histórico entrelaça-se necessariamente com as questões específicas, fornecendo elementos (indicadores) científicos para seu estudo e investigação.

Em que o materialismo histórico se opõe ao feminismo entendido como concepção sobre a especificidade da opressão da mulher na sociedade? Em nada, exceto que elabora a sua concepção – que pode se chamar de feminismo emancipacionista – investigando a especificidade da opressão da mulher em suas complexas inter-relações com os demais aspectos e leis da dialética do desenvolvimento da sociedade. São as correntes feministas que se têm colocado em oposição ao materialismo histórico e à sua visão científica e metodológica das questões mais gerais da ciência social, sem cujo esclarecimento se torna impossível a explicação do desenvolvimento da vida social em seu conjunto.

Consequentemente, fica-lhes difícil – se não impossível, dentro de sua visão estreita do problema específico – admitir o ponto de vista do materialismo histórica sobre a opressão da mulher e os caminhos de luta para sua emancipação; isto porque buscam a explicação sobre as origens e as formas de opressão da mulher fora das leis objetivas do desenvolvimento social e independente das causas últimas que originam as relações de dominação das sociedades antagônicas. Assim o fazem, com efeito, ao recorrerem exclusivamente à fundamentação biológica ou psicanalítica (ou à junção das duas) para explicar as desigualdades sexuais e definir os caminhos de sua solução. Mesmo as correntes que aliam à biologia e à psicanálise certos aspectos do materialismo histórico, assim o fazem tomando emprestado suas categorias e insistindo em suas “limitações” porque é fora dele, dizem, que se resolvem os problemas teóricos e práticos postos pela opressão dos sexos nas sociedades de classes. Na verdade, são estas correntes que encerram o feminismo em uma redoma (“traçam um círculo à sua volta”, como pretende Schulamith Firestone fazer com o marxismo), isolando-o em sua especificidade (que é inegável), e apontando soluções, unilaterais. “Não enxergam o bosque” como diria Engels (20). O resultado é que embora as diversas correntes feministas tenham contribuído em aspectos teóricos sobre a especificidade da opressão da mulher e, enquanto movimento, na tomada de consciência da opressão específica, surge uma formulação teórica eclética que não ultrapassa o horizonte da luta de sexos ou se envolve com o véu do existencialismo. Fatalismo biológico ou idealismo existencialista.

O materialismo histórico, na realidade, é a teoria científica capaz de desvendar a especificidade da opressão da mulher relacionando-a com o processo de exploração e dominação desenvolvido na sociedade de classes, especialmente hoje, na sociedade capitalista. É evidente que são necessárias respostas teóricas e práticas sobre a questão específica. A sociedade moderna, a agudização da luta de classes da sociedade capitalista na era do imperialismo, tanto no campo das ciências sociais como naturais, o avanço tecnológico etc. colocam a necessidade, hoje, de se desenvolver teoricamente a especificidade da opressão da mulher. Por outro lado, também é necessário avançar no terreno da luta, transformando o movimento feminista em poderoso instrumento que envolva milhões de mulheres na luta contra a opressão de sexos e a exploração e dominação de classes. O feminismo emancipacionista pode vir a fazer isto.

Sabemos que a sociedade de classes, patriarcal, impõe a condição de subalternidade à mulher e a opressão de sexos. Andrée Michel fala na “ocultação” (21) feitas pelas ciências sociais quanto à condição da mulher, no que concordamos. A história da mulher, seu papel na sociedade, sua participação no processo de transformação social, seu alijamento do poder político, tudo isso precisa ser desvendado pela ciência social. O materialismo histórico é a teoria científica que fornece os elementos para esse desenvolvimento teórico (e prático) porque é a única que vê como originalidade da questão específica exatamente seu entrelaçamento – e não absorção – à questão da emancipação social.

À luz do que foi dito, quais são, então, as principais críticas (divergências) em relação ao marxismo? A primeira, e mais geral, que permeia todas as correntes feministas, é a de que o marxismo “reduz tudo ao econômico”. Assim pensa Simone de Beauvoir quando, ao referir-se à analise de Engels (que ela apresenta de forma esquemática) em A Origem da Família, afirma: “Este (o materialismo histórico) não pode fornecer soluções para os problemas que indicamos, porque tais problemas interessam o homem em sua totalidade e não essa abstração que se denomina homo aeconomicus” (22). De igual modo, Juliet Michell, também analisando a mesma obra de Engels, diz: a “solução” apresentada por ele e por Marx “mantém este tom excessivamente econômico ou entra no domínio da especulação deslocada” (23). Schulamith Firestone, vai mais além: quer “reelaborar” o materialismo histórico porque, no seu entender, “existe um nível da realidade que não deriva diretamente da economia” (24). Porque diz, “apesar de Marx e Engels fundamentarem sua teoria na realidade, era ela apenas uma realidade parcial”. E prossegue criticando “a definição estritamente econômica: (grifo nosso) do materialismo histórico, tirado do livro Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. de Engels (25), quando este designa o materialismo histórico como aquela concepção da história universal que vê no desenvolvimento econômico a causa última de todos os acontecimentos históricos (26).
Eis a crítica das teóricas do feminismo. As afirmações são contundentes: o marxismo reduz tudo ao econômico. Lamentável incompreensão da essência do materialismo histórico, seja por uma visão limitada da sociedade, enquanto objeto de investigação científica, seja por mecanicismo teórico e metodológico. Daí resulta uma interpretação do materialismo histórico (até mesmo da definição de Engels) como uma teoria rígida, aplicável a “qualquer época histórica como uma simples equação de primeiro grau”, como o próprio Engels ironiza (27). Na verdade, são as teóricas do feminismo que reduzem à economia o complexo processo de desenvolvimento da sociedade cujas leis são analisadas pelo materialismo histórico. São as demais correntes feministas que entendem o marxismo de forma reduzida, atribuindo-lhe, até, esta ridícula formulação de que a economia é o único fator que rege o desenvolvimento da sociedade. Parece que a metafísica embaraça-lhes a visão científica, o que as leva concluir que as categorias “causa última” e “causa única” sejam idênticas!
A problemática tampouco é nova. Ao contrário, é tão antiga quanto o surgimento do marxismo. E nada melhor do que Engels mesmo para responder à questão, o que fez em 1890, em carta a Bloch, em longo e preciso esclarecimento:

“(…) segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Marx, nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as Constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige etc., as formas jurídicas e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos quais nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante” (grifos de Engels) (28).

E prossegue dizendo: “sem cair no ridículo, será muito difícil explicar, com apoio na economia, a existência de todos os pequenos Estados alemães do passado e do presente” (29), para exemplificar.
Ao final, diz: “Se os mais jovens insistem, às vezes, mais do que devem, sobre o aspecto econômico, a culpa em parte temos Marx e eu mesmo. Face aos adversários, éramos forçados a sublinhar este princípio primordial que eles negavam e nem sempre dispúnhamos de tempo, de espaço e oportunidade para dar a importância devida aos demais fatores que intervêm no jogo das ações e reações”.

E lamenta que, “com muita frequência se pense ter compreendido totalmente uma nova teoria e se possa manejá-la, sem mais nem menos, pelo simples fato de haver-se assimilado – e nem sempre de maneira exata – suas teses fundamentais”.

Engels já disse tudo. Quem quer que pense que o marxismo afirma que a opressão de sexos deriva diretamente da economia (e que, portanto, explicada a economia, tudo está explicado e não há necessidade de desenvolvimento teórico em aspectos específicos – a questão da mulher, por exemplo) ou não entendeu o marxismo, ou deliberadamente o rejeita (no que tem todo direito: o que não se pode fazer é atribuir-lhe o que não diz, expondo suas teses parcialmente e assumindo uma atitude científica pedante, previamente “imune” à critica do marxismo, às possíveis incongruências de suas formulações).

Aí está. O marxismo não ignora a opressão de sexos por “embuti-la” em meio a fatores econômicos que seriam os únicos a determiná-la diretamente. Entende-a, isto sim, entrelaçada com o processo de desenvolvimento da história que, em última instância, é determinado pela produção e a reprodução da vida real. Ao analisar o processo de produção e reprodução da vida real, desde as primeiras obras, Marx e Engels dedicaram explícita atenção às raízes da opressão da mulher e sua relação com a própria origem da exploração e opressão social. Nem uma só vez disseram que a opressão da mulher era coisa secundária, que não necessitava ser analisada e indicadas as formas de luta para a sua superação.

* Loreta Valadares é professora assistente de ciências políticas da UFBA.

NOTAS
(1) FIRESTONE, Schulamith, A Dialética dos Sexos. Rio, Labor do Brasil, 1976, p. 16. Com isto, Firestone quer colocar o marxismo dentro de um “círculo” (ou seja, “dentro de seus limites”) e, “para além das fronteiras”, dar ao materialismo histórico seu “real” alcance: (fora dos limites do marxismo) a dialética dos sexos como a lei objetiva da transformação da sociedade, da qual derivam o modo de produção e a superestrutura!!!
(2) GUTIÉRREZ, Raquel. O Feminismo é um Humanismo. Rio, Antares, SP, Nobel, 1985, p. 36.
(3) Ibid, p. 73. A propósito, Mitchell parece ter alguma dúvida. Em sua coletânea Psicanalise da Sexualidade Feminina, Rio, Campus, 1988, p. 1, ao apresentar o trabalho sobre Freud e a distinção sobre os sexos, escrito em 1974, ela diz: “este pequeno trabalho demonstra um aspecto de meu interesse na Psicanálise àquela época – um interesse que não se manteve. Então eu ainda esperava ser possível provar a utilização da Psicanálise como uma ciência incipiente da ideologia do patriarcado – de como vivemos de uma forma masculina ou feminina, em sociedades patriarcais”.
(4) LÊNIN, El Estado y la Revolucion. Buenos Aires, Polêmica, 1973, p. 106, capitulo 2 “La Transicion del Capitalismo al Comunismo”.
(5) GUTIÉRREZ, Raquel. op. cit., p. 129.
(6) MICHEL, Andrée. O feminismo, uma abordagem histórica. Rio, Zahar, 1982.
(7) Infelizmente hoje, sim, abandonadas pelo retrocesso capitalista provocado pela traição revisionista e a implantação da “Perestroika”.
Nas palavras de seu próprio criador, Gorbachev, deu-se “um resultado paradoxal de nosso desejo sincero e politicamente justificado de tornarmos as mulheres iguais aos homens em tudo” (…) “por isso é que estamos promovendo acirrados debates na imprensa, nas organizações públicas, no trabalho e no lar sobre o que deve ser feito para que as mulheres possam retomar suas missões puramente femininos” (grifo nosso). GORBACHEV, Mikhail. Perestroika, SP, Best Seller, 1987, p. 133 e 134.
(8) MICHEL, Andrée, op. cit. p. 74.
(9) Característica fundamental do marxismo é a indissolubilidade entre a teoria e a prática, fonte permanente do seu desenvolvimento e de seu caráter profundamente crítico e criador.
(10) ALZON, Claude. La femme potiche et la femme bonniche. Paris, Maspero.
(11) Ibid.
(12) FIRESTONE, Schulamith, op. cit., p. 16.
(13) Ibid, p. 12.
(14) Ibid, p. 14.
(15) MITCHELL, Juliet. “Mulheres: a Revolução mais Longa”, artigo publicado na Revista Civilização Brasileira, nº 14, Rio, 1967, p. 7.
(16) MITCHELL, Juliet, op. cit., p. 11.
(17) BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio, Nova Fronteira, 1980, p. 73.
(18) Ibid, p. 75 e 76.
(19) Engels, em sua obra Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, diz que ”para transformar o socialismo em ciência, fazia-se mister, antes de mais nada, situá-lo no terreno da realidade”. E, mais adiante, acrescenta: “dois grandes feitos – a concepção materialista da história e a revelação do segredo da produção capitalista através da mais-valia – são devidos a Marx”. E é graças a eles que o socialismo se transforma numa ciência, que só precisa ser desenvolvida em seus pormenores e inter-relações. Engels, op. cit. SB, Fulgor, 1962, p. 54, 63.
(20) ENGELS. op. cit., p. 57, ao referir-se ao método metafísico de investigação assim o caracteriza: “(…) esbarra sempre, cedo ou tarde, num obstáculo, vencido o qual se transforma em método unilateral, limitado, abstrato, perdendo-se em contradições insolúveis; absorvido pelos objetos concretos, não chega a alcançar sua concatenação; preocupado com sua existência, não se detém em pensar em sua gênese nem em sua transitoriedade; concentrado em sua imobilidade estática, não observa sua dinâmica; obcecado pelas árvores, nem consegue ver o bosque”.
(21) MICHEL, Andrée. Op. cit., p. 9.
(22) BEAUVOIR, Simone de. Op. cit., p. 76.
(23) MITCHELL, Juliet, op. cit., p. 10.
(24) FIRESTONE, Schulamith, op. cit. P 16-
(25) Ibid, p. 14.
(26) ENGELS, op. cit., p. 24.
(27) ENGELS, “Carta a Bloch”, Obras Escolhidas, SP, Alfa-Ômega, vol. 3, p. 285.
(28) ENGELS, “Carta a Bloch”, op. cit., p. 284.
(29) Ibid, p. 286.

EDIÇÃO 18, JUN/JUL/AGO, 1990, PÁGINAS 44, 45, 46, 47, 48, 49