Breve crônica de um fracasso anunciado
Desde Hegel a filosofia nos ensina que na natureza e na história humana, regra geral a aparência dos fenômenos pouco tem a ver com a sua essência, sendo muitas vezes o seu oposto, razão pela qual o conhecimento não pode se guiar por impressões ligeiras e superficiais da realidade, sob pena de incorrer em erros e mesmo neles permanecer indefinidamente. A história nos oferece neste momento uma interessante ilustração desta lei do pensamento e de como ela, em interação com as classes e suas ideologias, sujeita a consciência social a ilusões e futilidades.
Com efeito, sob a aparência de análises bem informadas sobre as mudanças em curso no Leste europeu muita bobagem tem sido divulgada pela mídia, nacional e internacional. Apregoa-se, por exemplo, que à débâcle dos regimes dominantes nos países da região corresponde a falência do marxismo, o acaso do sonho comunista, a vitória definitiva do "liberalismo" e, afinal (a conclusão seria lógica), o fim da própria história humana.
É preciso destacar, como Hegel, que a aparência é parte da realidade, não toda a realidade, daí por que não pode ser absolutizada. Ainda mais, é preciso entender que em relação aos fenômenos da história humana ela sofre a mediação de interesses inconfessáveis de classes e camadas sociais – expressos na interpretação de inúmeras organizações e correntes de opinião, de forma que a realidade parece perder seu caráter objetivo para adequar-se às idiossincrasias e interesses de seus intérpretes. É por isto, lembrava Hegel, por ser a forma imediata em que os fenômenos se apresentam à consciência e carregar múltiplas determinações, que os limites da aparência conduzem ao agnosticismo: o conhecimento revela-se impossível.
Esta lei do pensamento, e da dialética, propiciou que se difundissem, e amplamente, muitas noções ilusórias, falsificações e meias verdades sobre os passos mais recentes da história humana. Quando se afirma, por exemplo, que os acontecimentos atuais no Leste europeu expressam o fracasso do socialismo científico e do marxismo, formula-se uma meia verdade. O movimento que ali se verifica, de fato, insere-se num período histórico de derrota do socialismo, derrota que teve dimensões históricas, assim como de inegável crise do marxismo.
Os fenômenos em questão não ocorrem em sociedades socialistas, mas sim em sociedades onde se processava uma transição, de caráter reacionário, para o capitalismo. Isto já foi dito e repetido talvez milhares de vezes pelos marxistas-leninistas desde que a transição ao capitalismo teve início no Leste. Mas, como estamos falando sobre aparência e essência, não custa lembrá-la.
O combate do socialismo científico sob o disfarce de “ socialismo real”
Se observamos a atual etapa do movimento político em curso no Leste europeu não é difícil verificar que ele se apresenta como uma realidade e que nega completamente o socialismo – torna-se, enfim, sua antítese e é isto de fato. Neste sentido, hoje sua própria aparência parece ter-se rendido à essência e ambas coincidem. Mas nem sempre foi assim.
Ao analisarmos com maior rigor a trajetória dos regimes políticos em questão veremos que a raiz deste movimento não é atual, embora busque se apresentar como tal. Não se trata apenas de uma ruptura com o passado, como quer, por exemplo, o presidente soviético Mikhail Gorbachev, mas também e sobretudo da continuidade de uma linha política que vem sendo aplicada há mais de 30 anos.
O marco da mudança, que hoje atinge seu ponto culminante, foi o XX Congresso do PCUS, celebrado em 1956 e encabeçado por Nikita Kruschev, que procedeu a uma radical ruptura com a orientação até então predominante na política da URSS e de todo o Leste europeu. Transformando-se principalmente o caráter de classe do Estado, que deixou de ser proletário, passou à direção da pequena burguesia e ser inspirado por uma ideologia burguesa: o fenômeno que desde então os marxistas-leninistas de todo o mundo denunciaram e classificaram como revisionismo contemporâneo.
O surgimento do fenômeno revisionista na história data pelo menos do início do século e já havia sido identificado e combatido eficientemente pelos marxistas de então, especialmente Lênin, que dedicou boa parte de sua obra política ao combate de tais concepções, que se caracterizam, em primeiro lugar, pela revisão burguesa do marxismo, de forma a "criar" uma doutrina "marxista" liberal, um Marx e um marxismo liberais.
Como se vê, é um fenômeno político antigo. No entanto, é preciso recorrer à memória da luta de classes do proletariado neste caso, especialmente na atualidade, quando teóricos de várias procedências negam a existência do revisionismo como fenômeno político particular, e seu caráter de classe – burguês –, assim como procuram passar por verdadeira a fé na noção de que não existe propriamente uma teoria marxista, mas várias – fazendo do marxismo marxismos, pluralidade contraditória e sem nexo e, com isto, dissimulando as diferenciações de classes que existem entre as várias tendências políticas que se intitulam marxistas, assim como negando a possibilidade de desvirtuamento do marxismo pelo revisionismo, encobrindo na verdade a essência deste fenômeno.
Entre os traços comuns dos diferentes tipos de revisionismo surgidos na história, conta-se a substituição do princípio da luta de classes pela colaboração de classes. E, por natureza, o revisionismo nasce como um sistema ideológico dissimulado – é o combate ao marxismo sob o disfarce de marxismo, a negação do socialismo científico sob o disfarce de socialismo (adjetivado de "avançado" ou "real"). Sua aparência, portanto, é a própria negação da essência, servindo por isto para confundir e enganar os trabalhadores. A história, porém, tem mostrado que em sua trajetória o fenômeno acaba evidenciando a própria essência, chega o momento em que a aparência e essência coincidem e que a última surge como imediato – é também o instante da completa desmoralização do revisionismo, quando fica mais patente sua falsidade, no fracasso de suas idéias quando em confronto com a realidade e com as promessas de seus teóricos, assim como seu caráter burguês.
Desde o XX Congresso do PCUS a história do Leste europeu tem sido a história da aplicação das idéias revisionistas na região – a trajetória insinuante e contraditória de uma linha política pequeno-burguesa, reacionária. E se a prática deve ser entendida como o critério da verdade, ela demonstrou a justeza da sentença emitida pelos marxistas-leninistas: estava em marcha desde Kruschev um processo de transição ao capitalismo, de restauração capitalista.
No entanto, a dissimulação da realidade pelos ideólogos burgueses e revisionistas prossegue. Ainda que o revisionismo seja um fato histórico incontestável, sua trajetória é apresentada como a trajetória objetiva, real, do socialismo, o fracasso das relações e formas de produção desenvolvidas no período de transição ao capitalismo como fracasso do socialismo, o planejamento revisionista como planejamento socialista, etc.
Não há por que negar que na atualidade essas aparências ganham uma dimensão sufocante sobre a consciência social. Para entender o apelo fácil de tais idéias é preciso estudar um pouco mais detalhadamente algumas particularidades do revisionismo soviético que, embora guarde com as outras formas de revisionismo procedentes traços comuns como a raiz e o caráter de classe, tem, no entanto, muitas e fundamentais diferenças em relação a elas.
O revisionismo no poder nega toda a experiência anterior do socialismo
Em primeiro lugar, ressalta-se o fato de o revisionismo soviético (que, em sua trajetória, influencia todo o Leste europeu e os partidos comunistas do mundo) nascer como revisionismo no poder em um país socialista – que inclusive havia atravessado um período de transição do capitalismo ao socialismo. Seu combate ao marxismo, portanto, dá-se nesta condição, que determina várias de suas particularidades. Sua base específica de classe, de outro lado, é a pequena-burguesia que subsiste no socialismo e nele não perde seu caráter próprio de uma camada intermediária entre o proletariado e a burguesia, portanto, com interesses e idéias oscilantes entre capitalismo e socialismo, altamente influenciável pela pressão ideológica exercida pelo imperialismo e tendente a exercer oposição ao novo sistema.
Desta forma, o revisionismo surge como fenômeno e se desenvolve no interior do sistema socialista, como sua negação, não aberta, nem mesmo necessariamente consciente, mas dissimulada (muito dissimulada) e, em função de sua base social, oscilante, indefinido. Lênin, e antes dele Marx, já observava que a pequena-burguesia não porta um projeto social próprio, distinto dos projetos do proletariado ou da burguesia, que resultasse, por exemplo, numa terceira via entre capitalismo e socialismo, muito embora certos indivíduos possam sonhar com tal coisa – afinal, à imaginação, tudo se permite, nada é impossível, nada é proibido.
Pela posição que ocupa na produção e na sociedade, espremida entre duas classes antagônicas, a pequena-burguesia necessariamente oscila seja do ponto de vista ideológico, político ou econômico entre o proletariado e a burguesia. Toda história recente do Leste europeu confirma cabalmente esta observação. Se os regimes erguidos pelos revisionistas na região podem e devem ser entendidos como regimes pequeno-burgueses é por esta mesma razão que não foram senão regimes de transição, provisórios, uma preparação para o que forçosamente viria em seguida e estamos vendo agora: um capitalismo aberto, sem máscara. Estiveram enganados os que supunham nas sociedades em questão (em transição) um caráter permanente e tomaram formas provisórias por definitivas.
O caráter pequeno-burguês dos regimes revisionistas implantados a partir de Kruschev marcam toda a trajetória daquelas sociedades e daquela ideologia, seus ziguezagues, suas vacilações, suas distintas fases. A configuração ideológica do revisionismo nos distintos momentos de sua trajetória sempre foi um reflexo fiel de sua realidade. Podemos distinguir pelo menos três fases bem distintas, as principais, no desenvolvimento recente da URSS e dos outros países do Leste europeu, marcadas pela ascensão e queda de Nikita Kruschev, o período de Brejnev e, finalmente, a atualidade com Gorbachev. A ideologia e a prática revisionistas sofrem várias adaptações, com elementos de rupturas e continuidade, distintas fases.
O caráter revisionista das idéias esboçadas por Kruschev, assim como de sua conduta, aparece inicialmente de forma mais ou menos clara, nítida, embora ele se apresente como representante de uma corrente que postulava uma revisão crítica do período de construção do socialismo e correção dos erros que teriam sido cometidos no tempo de Stalin. Na ocasião, é bom que se recorde, não foram poucos os que tomaram a coisa pela aparência de uma autocrítica necessária, justa, de sentido progressista e com o objetivo de garantir o desenvolvimento do socialismo num patamar ainda mais elevado. Porém, a crítica virulenta a Stalin servia, na realidade, a outros propósitos e representava a negação de todo o período anterior de construção do socialismo na União Soviética, assim como das leis características do novo sistema, especialmente no campo econômico. Tudo que se opunha a Stalin transformou-se, de uma hora para outra, de bandido em herói, as orientações do XIX Congresso, realizado em outubro de 1952, foram engavetadas e substituídas por outras com princípios opostos.
Aos poucos, como lembra Enver Hoxha, se empreendeu "uma série de reformas que abriram caminho à degeneração gradual do sistema econômico socialista e à ação incontrolada das leis econômicas capitalistas". Em vez de se restringir mais e mais a atuação da lei do valor e da produção mercantil no socialismo, a orientação a partir de Kruschev seguiu o caminho contrário (com a entrega das Estações de Máquinas e Tratores às cooperativas e outras medidas), sujeitando a economia às leis do mercado, à anarquia.
Kruschev procurava encobrir o caráter burguês das reformas que pôs em marcha com bazófias, fraseologia oca e demagógica, como a promessa de que a URSS alcançaria o comunismo em 20 anos, depois de superar economicamente os Estados Unidos e a Europa ocidental, uma projeção completamente fora da realidade, idealista, antimarxista.
Os interesses e poderes da pequena-burguesia foram consideravelmente ampliados desde então, acabando por configurar mais tarde uma espécie de nova burguesia dentro da URSS, que tornar-se-ia (como ainda é hoje) a base para a restauração da burguesia em seu estilo e com suas características e tradições clássicas.
No plano político, a transformação do caráter de classe do Estado e do partido comunista foi consagrada com a substituição do princípio de ditadura do proletariado pela noção vaga e pequeno-burguesa de "Estado de todo o povo", tomada emprestada do "Estado livre" dos lassalianos (que Marx criticou duramente em Crítica ao Programa de Gotha) e do partido proletário por "partido de todo o povo".
Se em nível teórico o revisionismo procurou evitar formulações que evidenciassem sua natureza de classe, e seu caráter antimarxista, revelou-se, porém, de forma mais aberta na prática, na conduta política, na direção econômica, no caráter do planejamento, no enriquecimento progressivo da pequena burguesia. O básico, o fundamental, foi a transformação do caráter de classe do Estado soviético, que deixa de representar os interesses do proletariado e passa a ser dirigido conforme os intentos contraditórios da pequena-burguesia, uma mudança que não se evidencia no rosto dos novos dirigentes, embora seja justo considerar que a cara corada de Kruschev já denunciava um caráter composto de bazófia e demagogia.
Já em Kruschev, portanto, que também abandona a linha revolucionária, baseada na compreensão da luta de classes como motor da história, pela colaboração de classes (preconizando o caminho pacífico da revolução, a concorrência pacífica entre capitalismo e socialismo e outras teses do gênero), tornava-se claro para os marxistas-leninistas que a URSS iniciava uma transição reacionária ao capitalismo, a trajetória farsesca do revisionismo contemporâneo, patrocinada pela direção pequeno-burguesa. Esta, de fato, é a essência do processo hoje em fase de coroação: o batismo de realidade das idéias revisionistas revelou-lhe a essência, confirmou a previsão dos marxistas-leninistas, patentear o fracasso do revisionismo contemporâneo.
Mas voltemos a Kruschev. Postas em prática, suas idéias logo se revelaram um desastre completo, seja do ponto de vista econômico, social ou político. No calor da luta de classes (inclusive em nível internacional, onde as forças revolucionárias, à época inclusive o Partido Comunista da China, desencadearam uma ofensiva do desmascaramento do revisionismo), ele acabou entrando em desgraça no interior do próprio partido revisionista, caindo em 1964, sendo substituído por Leonid Brejnev. O revisionismo atravessa, então, uma nova fase, reveladora tanto de seu caráter pequeno-burguês, vacilante, quanto de sua natureza falsa e de suas manobras demagógicas. Com a desmoralização das idéias kruschevistas uma flexão tática tornou-se imperativa para a direção revisionista da União Soviética. Brejnev surge, inicialmente, aparentando ser uma negação de Kruschev, promove uma reabilitação parcial e envergonhada de Stalin, assim como a recuperação de algumas palavras-de-ordem marxistas já então em desuso na URSS. No seu livro de memórias (A terra pequena, renascimento e terras virgens), escrito em 1980, Brejnev, diferentemente do que fazia Kruschev e hoje faz Gorbachev, fala com admiração dos feitos heróicos do povo e do sistema soviético durante a guerra e no período posterior da reconstrução. Mas é já num tom forçado, referência a algo como um paraíso perdido, sem convicção.
Embora buscasse apresentar a si próprio e à fase que representou como uma recuperação dos princípios socialistas, e com muita boa vontade seja possível reconhecer certo interesse nesta direção (o que não é de surpreender, dado o caráter vacilante, pequeno-burguês do revisionismo), a mudança é muito mais formal do que real. O elemento de continuidade é muito mais forte do que o de ruptura, embora também este último exista na relação das fases representada por Brejnev e Kruschev refletindo contradições reais que se manifestavam na sociedade soviética, no partido, nas instituições e entre os trabalhadores.
Com a invasão da Tchecoslováquia, desenvolve-se o social-imperialismo
A semente plantada por Kruschev já germinava e se desenvolvia silenciosamente. Com Brejnev, a continuidade das reformas capitalistas e dos fundamentos ideológicos do revisionismo são coisas bastante claras. No campo econômico, implementam-se as reformas de Kossiguin, que introduz o princípio do lucro como motor da produção e tem importância ímpar no processo de restauração capitalista.
Em relação à política externa, desenvolve-se aí o caráter social-imperialista da União Soviética, com a invasão da Tchecoslováquia, em 1968, e mais tarde, em 1979, do Afeganistão. Também avança a reintegração econômica, sempre crescente, com os países capitalistas do Ocidente – o endividamento externo torna-se particularmente agudo na década de 1970 (que tornou-se famosa pela reciclagem dos petrodólares e excesso de liquidez no mercado financeiro internacional, tornando "fáceis" e "atraentes" os empréstimos a países pouco desenvolvidos e/ou dependentes).
Internamente, a fase Brejnev caracteriza-se por uma desmoralização sem paralelo das direções partidárias, o estilo de vida perdulário e nababesco da direção (o próprio Leonid tornou-se famoso como colecionador dos luxuosos automóveis Rolls Royces), o afastamento crescente entre partido e povo, a burocratização desmesurada da vida política e econômica, a corrupção hoje fartamente documentada. Acompanhando tudo isto, um grande enriquecimento da pequena-burguesia e clara orientação da economia para o mercado.
Por isto, embora o movimento do revisionismo em Brejnev revelasse contradições reais no seio da direção revisionista, assim como a vacilação de propósitos característicos da pequena-burguesia, a direção principal da mudança dá razão a Enver Hoxha que nela via, fundamentalmente, uma mudança de tática.
No artigo "A demagogia dos revisionistas soviéticos não pode encobrir o semblante dos traidores", escrito em janeiro de 1969, Hoxha observa: "o suposto retorno à correta política de Stalin é a mais vil hipocrisia e a mais desesperada manobra dos revisionistas soviéticos".
"Os sucessores de N. Kruschev se viram obrigados a mudar de tática", comentou. Porém, acrescentou, "se a Nikita Kruschev corresponde o mérito de haver formulado a linha geral do revisionismo contemporâneo, a seus sucessores, à camarilha de Brejnev/Kossiguin, corresponde o 'mérito' de haver aplicado inteiramente esta linha contra-revolucionária".
Também neste caso, mais uma vez nos deparamos com a oposição entre aparência e essência. Na nova, e certamente a última, fase do revisionismo Soviético, representada por Gorbachev e sua "perestroika", a semente plantada por Kruschev já apresentava frutos maduros e provavelmente até mesmo podres. Faz-se necessário ao novo líder, tanto do ponto de vista da tática como da ideologia e como reflexo das contradições reais em curso na sociedade soviética, mostrar-se como uma nova negação, a negação de Brejnev (do período da "estagnação") e uma espécie de síntese de Nikita Kruschev – conforme ele mesmo reivindicou em várias ocasiões e inclusive no seu livro Perestroika.
Há algo a ver entre a pretensão do líder soviético e a realidade. Esta nova fase do revisionismo exige de fato certa ruptura com as vacilações que até certo ponto marcaram a política anterior – sendo, de fato, uma espécie de síntese das reformas iniciadas por Kruschev, um coroamento do processo de transição ao capitalismo.
É bom refletir um pouco sobre outra característica marcante do revisionismo e, em especial, do soviético, que não só jamais apresentou uma plataforma clara ou mesmo geral, conscientemente elaborada, como também seus propósitos objetivos são marcados pela vacilação e movimentos contraditórios, característicos de um fenômeno social pequeno-burguês.
À mudança no curso político e no caráter de classes do Estado, implementada a partir de Kruschev, não se seguiu imediatamente a instalação de uma economia abertamente capitalista, mas inicia-se, isto sim, e tendo por fundamento a mudança política, um movimento de transição, não postulado, não necessariamente consciente, com reformas mais ou menos ousadas que rumavam objetivamente no sentido da restauração capitalista. Desta forma, enquanto evolui o regime preserva certas formas e relações sociais herdadas do período socialista, assim como uma fraseologia pretensamente marxista, que vai se alterando e se adaptando às mudanças em curso na sociedade. As reformas econômicas assumem a forma de mudanças quantitativas, graduais, que freiam o avanço do socialismo, conduzem à estagnação econômica, alteram o conteúdo de classe do sistema, mas não propiciam a transformação completa da economia em um capitalismo aberto, sem máscara.
Do ponto de vista econômico, o período de transição ao capitalismo – cuja base foi uma contra-revolução pacífica levada a efeito pelos revisionistas – é híbrido, a sociedade não é ainda capitalista quando já deixou de ser socialista. Isto é o que caracteriza a transição e o processo não poderia ser diferente, sob pena de desmoralização completa da ideologia revisionista logo de cara, o que inviabilizaria seus propósitos.
Esta característica do período de transição tem seus reflexos sobre a consciência dos trabalhadores em todo o mundo, evidentemente causou e causa enorme confusão nas fileiras do movimento operário e favorece a aparência e impressão de que o regime em questão era o socialismo e a evolução lógica, objetiva, do socialismo, idéia largamente difundida pela burguesia atualmente.
Este reflexo sobre a consciência operária na história atual é o efeito mais pernicioso do revisionismo. Explica o desnorteamento das massas, o entorpecimento das idéias, o desvirtuamento da revolução em todo o planeta, a confusão generalizada e proliferação de todo tipo de grupos e tendências pequeno-burguesas, antiproletárias (no Brasil, o PT é uma fiel expressão deste fenômeno, parece um resumo e uma condensação de quase todas as perplexidades e confusões geradas pelo revisionismo).
O coroamento do processo de transição ao capitalismo surge também como uma mudança quantitativa requerida objetivamente pelo acúmulo de reformas implementadas anteriormente, provindo daí a aparência de uma ruptura necessária que, em certo sentido, de fato representa. Chega o momento em que o processo que completa a transição ao capitalismo não mais comporta reformas graduais, exige reestruturações radicais (seja na reforma dos preços, seja na privatização e falência em massa das estatais) e ganha uma qualidade nova.
Tudo isto vem acompanhado de transformações igualmente expressivas na ideologia revisionista, que já não é adequada aos novos tempos do regime e começa a deixar o cenário histórico como ideologia dominante. Tanto do ponto de vista das idéias mais gerais como no varejo, a rapidez com que muda a ideologia revisionista e torna-se uma negação de vários dos postulados que esposava meses antes é gritante. Compare-se Gorbachev a seus antecessores e, no próprio Gorbachev, a visão que tinha sobre o direito ao trabalho quando escreveu o livro Perestroika (e defendia a segurança no emprego como uma conquista social inegociável, quando, na verdade, ela já deixara de ser uma realidade e tornara-se um princípio constitucional formal em contradição com o conteúdo capitalista adquirido pelas relações de produção) com a que expressou quando anunciou seu plano econômico – e, com ele, defendeu também o desemprego em massa.
A marcha do regime soviético, com a restauração completa das leis e categorias econômicas próprias do capitalismo, teve a virtude de transformar o invólucro marxista que encobria a ideologia revisionista num incômodo cada dia maior às elites dirigentes. Para coroar o processo de transição a própria ideologia revisionista tem de ser ultrapassada e o revisionismo contemporâneo percorre no plano das idéias um caminho análogo ao da social-democracia que, em 1959, já plenamente desmoralizada como antimarxista, optou por romper formalmente com o marxismo.
Badalados teóricos pequeno-burgueses e trotskistas permanecem atônitos
Este processo ficou evidenciado nos demais países do Leste europeu, especialmente Polônia, Hungria e Alemanha Oriental, onde os revisionistas, terrivelmente desmoralizados, foram substituídos na direção política por organizações políticas abertamente burguesas. Completou-se a transição política e praticamente também foi liquidada a transição para uma economia de mercado. O fundamental no processo que conduziu à restauração capitalista, não custa repetir – mais, inclusive, que o acúmulo de reformas quantitativas no campo econômico de sentido capitalista –, foi a transformação do caráter de classe do Estado soviético. Os teóricos pequeno-burgueses, e em particular os trotskistas, nunca souberam compreender tal fenômeno. Ernest Mandel, por exemplo, num recente livro sobre o Leste europeu (Além da perestroika) continuava sustentando que não havia ocorrido mudança no caráter de classe do Estado soviético: "Para os marxistas-revolucionários (sic), os aspectos progressivos, incontestáveis do papel interno e externo do Estado soviético, decorrem precisamente do fato de que se trata ainda de um Estado operário, mesmo se é um Estado operário burocratizado". O badalado teórico se embaralha todo para explicar que "a burocracia não se tornou uma classe dominante. Ela não pode fazê-lo evoluindo para uma 'nova' classe dominante, mas somente se transformando em uma classe capitalista 'clássica'. Para que possa emergir um 'novo' modo de produção 'burocrático' não capitalista, a burocracia soviética deveria libertar-se definitivamente da influência da lei do valor".
Com tal confusão mental e a criação de categorias fantasmagóricas, era mesmo impossível ao autor entender o caráter transitório da sociedade revisionista e, mais que isto, sua direção: a restauração capitalista que, evidentemente, não veio pronta, acabada, de um momento para outro.
A glória do revisionismo coincide com sua desmoralização e derrota
Assim, não admira que, no próprio livro, ele conclua: "Podemos então apostar que a 'privatização legal' ficará rigorosamente circunscrita a um setor artesanal/pequeno comércio da população. Só atingirá uma ínfima parte dos assalariados, só produzirá alguma porcentagem da renda nacional, terá menos amplitude do que a NEP sob Lênin, e não conduzirá à restauração do capitalismo, apesar de todos os temores dos críticos 'esquerdistas'”.
Mais recentemente, o mesmo Mandel, em artigo para a revista Teoria e debate, do PT paulista, mostrou até que ponto está prisioneiro de seus próprios dogmas e não consegue ver um palmo além de suas confusas idéias. A revista, nº 9, válida para o trimestre janeiro-fevereiro-março de 1990, contém um artigo em que ele mais uma vez aposta que o que estava ocorrendo na Polônia e na Alemanha Oriental (hoje anexada pela Ocidental) era uma revolução política do povo e não o coroamento da restauração capitalista. Diz-se que contra fatos não há argumentos, mas ninguém pode nos garantir de argumentos contra fatos.
A história encerra neste período a trajetória fracassada do revisionismo contemporâneo, mas tal fracasso carrega um paradoxo: o coroamento da transição capitalista é o sentido objetivo da trajetória revisionista, portanto, a realização objetiva de seus propósitos, sendo ao mesmo tempo o momento de seu desmascaramento e saída da cena histórica como ator principal (seja transmutando-se desavergonhadamente numa ideologia abertamente social-democrata, como ocorreu em quase todos os países do Leste europeu, seja simplesmente sendo varrido por poderosos movimentos de massas dirigidos pela burguesia). Sua gloriosa realização coincide com a morte sem pompas, embora continue e continuará por tempo indefinido a ser um cadáver insepulto.
Ao mesmo tempo, para deleite da ideologia burguesa, consegue a façanha de fazer passar seu próprio fracasso por fracasso do socialismo – de que foi e sempre será um feroz inimigo. As misérias que lhes são características, entretanto, não são misérias socialistas e é preciso limpar a consciência operária desta falsa aparência impingida pela burguesia.
O revisionismo surge como uma autocrítica necessária do próprio socialismo, e de fato aponta falhas e erros ocorridos no processo de construção do socialismo na URSS, que não podem ser compreendidos senão à luz das condicionalidades históricas da época. Os marxistas-leninistas não se recusam a estudar e entender as lacunas e deficiências do período, e procuram mesmo ser seus críticos mais impiedosos e conscientes.
Conforme já previa Marx em seu livro 18 Brumário, as revoluções proletárias, ao contrário das burguesas, "criticam constantemente a si próprias; interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seus adversários apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que torna impossível qualquer retrocesso”.
A direção seguida pelos revisionistas não foi esta, marxista, revolucionária, proletária. Pelo contrário. A história comprova a verdade contida na opinião dos marxistas-leninistas quanto à orientação burguesa imprimida desde a segunda metade dos anos 1950 na URSS e no Leste europeu, que expressou também uma derrota do socialismo. O socialismo, porém, do ponto de vista histórico só pode ser comparado a uma criança, que ainda engatinha, cai, retrocede e às vezes tem dificuldade para se levantar. Mas renascerá mais forte e em estágio muito mais avançado do que a história deu até hoje exemplo.
Os que apostam no fim da história não perdem por esperar, e fariam bem em meditar sobre a frase de Cazuza e Lobão: "O tempo não pára". Quanto aos revolucionários, na luta é preciso mostrar a convicção com que se nutria o escritor Emile Zola durante o famoso "caso Dreyfus": "a verdade está em marcha na história", dizia.
* Umberto Martins é jornalista.
EDIÇÃO 18, JUN/JUL/AGO, 1990, PÁGINAS 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21