"No mundo de hoje há dois ventos: o vento do leste e o vento do Oeste… Eu penso que a característica da situação atual é que o vento do leste predomina sobre o vento do Oeste. O mesmo é dizer que as forças do socialismo ganharam uma superioridade esmagadora sobre as forças do imperialismo".

Estas palavras proferidas por Mao Tsetung na Conferência de Moscou dos Partidos Comunistas e Operários, em novembro de 1957, traduzem bem o estado de espírito que predominava entre as forças socialistas e de esquerda após a derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra e o triunfo da Revolução Popular na China em 1949. A primeira pátria do socialismo – a URSS – emergia como a grande artífice da derrota nazista. Rompendo com seu isolamento inicial, a União Soviética passava a encabeçar um poderoso campo de países socialistas, abarcando um terço da população e quase um quinto do território do mundo. Na África e na Ásia, os impérios coloniais das antigas potências capitalistas entravam em colapso. A perspectiva socialista tornava-se hegemônica em boa parte dos movimentos de libertação nacional, bem como nos movimentos sindicais e populares de todo o Globo. A influência política e organizativa dos partidos comunistas crescia a olhos vistos. A superioridade do socialismo e da teoria marxista parecia "auto-evidente", e esta galvanizava o que havia de mais progressista no pensamento da intelectualidade pelo mundo afora. Não por acaso o existencialista Paul Sartre era forçado a reconhecer o marxismo como o "pensamento da nossa era".

Quarenta anos depois resta muito pouco deste clima de euforia e confiança. Sobretudo a partir dos eventos no último ano, o "vento do Oeste" parece não só haver predominado como praticamente varrido o "vento do Leste" do mapa. E ao fazer isto provocou uma tempestade na Europa Central e do Leste que está produzindo a mais profunda e abrangente mudança na situação mundial desde o fim da Segunda Guerra.

Como seria de se esperar, a direita recebeu os acontecimentos no Leste com grande júbilo e fanfarra. Os órgãos de comunicação estão repletos de análises e comentários atestando a "morte do comunismo", o "fracasso do socialismo" ou a "falência do marxismo". No fundo, todos esses artigos, matérias e declarações convergem para o mesmo alerta conservador "Estão vendo no que dá? Quem semeia ventos colhe tempestades”.

Mas se na direita a reação é de arrogante auto-suficiência, em muitos setores da esquerda a reação tem sido da mais absoluta perplexidade. Em geral, o grau de perplexidade acompanha o grau de proximidade que diferentes pensadores e correntes mantinham com regimes agora depostos. Em alguns casos essa perplexidade resvalou para "cenas explícitas" da mais absoluta hipocrisia. Basta ver a "fúria" com que alguns passaram a denunciar as lideranças derrubadas no Leste, quando, até pouquinho tempo atrás, rechaçavam qualquer crítica àqueles Estados como "provocação da CIA" ou "obra do anti-sovietismo".

Um exemplo flagrante disso foi o programa de televisão que foi ao ar pelo PCB em janeiro deste ano. De uma hora para outra, passou-se da adulação para a crítica aguda e unilateral dos antigos governantes no Leste europeu. Isto apesar de serem públicas e notórias as íntimas relações que o PCB mantinha com todos os regimes depostos. Apenas dois meses antes, o próprio PCB havia enviado uma delegação a Bucareste saudar a reeleição do Nicolai Ceausescu para a direção do "partido irmão" romeno (que viria a ser varrido do poder por uma explosão de insatisfação popular semanas depois).

Este cinismo todo tem razão de ser.

O fato é que os acontecimentos do Leste europeu levaram a "nocaute" as interpretações que apresentavam a realidade desses países como "modelo de socialismo". Na tempestade que sacudiu a região no último ano, ficou patente o generalizado repúdio dos povos desses países aos regimes que os governavam. Enquanto gigantescas multidões tomavam as ruas e praças para exigir a deposição dos governantes, nenhuma manifestação de massas sequer se realizava em defesa dos antigos regimes. O único que ainda tentou organizar alguma coisa no gênero foi o regime de Ceausescu na Romênia. Mas a manifestação de apoio convocada para a praça central de Bucareste se transformou no estopim da sublevação que depôs o clã governante.

O que esta evolução indicou claramente é que os regimes depostos no Leste não contavam com a mínima base de sustentação social interna. Havia um sentimento quase que unânime de oposição nas suas sociedades. Deste ponto de vista, a situação lembra o processo de isolamento político vivido pelos regimes militares do "cone sul" da América Latina no início dos anos 1980, e que se traduziu no Brasil na formidável campanha das "diretas já".

Face a esta evolução, alguns setores da esquerda brasileira se apressaram em identificar as mudanças políticas no Leste europeu com um processo de "renovação do socialismo" ou com uma "revolução política antiburocrática que resgatava a pureza dos ideais socialistas". Mas o desfecho da crise no primeiro semestre deste ano prontamente desfez esta ilusão. Os resultados da rodada de eleições para compor os novos governos na região apontaram em direção oposta. Nos países mais importantes (Polônia, Hungria, Alemanha Oriental e Tchecoslováquia) a vitória foi de forças políticas identificadas com um projeto de feição conservadora, privatista e neoliberal, voltado para a plena integração na Europa (capitalista) Ocidental. O desfecho eleitoral só foi diferente nos dois países mais atrasados do antigo "bloco soviético" a Romênia e a Bulgária – onde a vitória foi dada à Frente de Salvação Nacional e ao Partido Socialista, respectivamente. Mas mesmo neste casos, as forças governantes reformularam a sua definição político-ideológica, e passaram a se identificar com a social-democracia dos vizinhos ocidentais. Assim, em ambos os países, os novos governos já anunciaram projetos de privatização das suas economias em ampla escala, embora pretendam conservar programas sociais mais amplos do que está previsto nos "choques neoliberais" dos outros quatro.

A triste realidade, que temos de encarar de frente, é que a proposta socialista perdeu a hegemonia (ou, quem sabe, nunca a alcançou) no conjunto destas sociedades. E isto tem implicações profundamente negativas para a luta socialista no mundo como um todo. Aqui surge a questão – como foi possível esta involução? Que ensinamentos este processo nos traz? Na ânsia de resgatar a bandeira do socialismo e superar sua própria perplexidade, alguns setores da esquerda brasileira têm tendido para uma explicação simplista e superficial dos acontecimentos. Tudo se resumiria à falência do "modelo stalinista" do socialismo. Haveria, agora, que buscar ou inventar outro(s) modelo(s).

Apesar de ser uma explicação aparentemente "fácil", esta abordagem padece de uma série de limitações. A primeira é manter a discussão do socialismo ainda na base de "modelos". Na verdade, isto é totalmente alheio à abordagem científica e dialética do socialismo em Marx. A novidade introduzida pela abordagem marxista do socialismo, em meados do século XIX, foi justamente a superação do período utópico ou romântico do pensamento socialista que havia predominado até então.

Neste sentido, Marx se negou a construir "modelos" acabados e perfeitos de como se deveria construir a sociedade futura. O que ele indicava era a necessidade histórica do socialismo, para dar resposta a contradições que emanavam da própria essência da sociedade capitalista. Era nesta base que ele discutia os grandes desafios a serem enfrentados pelo socialismo. Mas cada povo teria de enfrentar estes desafios de acordo com as particularidades históricas do seu país, o seu nível de desenvolvimento econômico, as suas tradições políticas e culturais etc. Isto não tem nada a ver com a adoção de "modelos", "esquemas" ou "receitas" de socialismo, prontos para serem aplicados a qualquer realidade. Pelo contrário, cada povo tem de usar e (abusar) da criatividade para encontrar suas soluções para os desafios do socialismo, rechaçando qualquer esquematismo dogmático. Por isto, retomar a discussão sobre os acontecimentos do Leste europeu mais uma vez na base de "modelos" não vai nos levar muito longe.

Outra limitação na tentativa de explicar a crise do Leste europeu em função do "stalinismo" é o flagrante idealismo desta análise histórica. Assim, toda a evolução histórica da União Soviética e do campo socialista, durante um longo período, se resumiria à vontade e às "maquinações" de um único homem. Isto sem qualquer referência ao contexto histórico (com suas condicionantes econômicas, política, sociais e culturais) que serviu de "arena" para a ação das diferentes personalidades e vontades humanas no período.

Neste sentido, é interessante lembrar que nos debates do Partido Bolchevique nos anos 1920, o próprio Trotsky (que muitos apresentam hoje como a alternativa histórica ao "modelo burocrático stalinista") se situou em posições mais "mandonistas", "burocráticas" e "autoritárias" do que Stalin. Basta ver a posição trotskista na célebre polêmica sobre o papel dos sindicatos na URSS, onde Trotsky defendia (mesmo após o fim da guerra civil) a militarização das entidades sindicais, com a nomeação dos seus dirigentes pelo Estado em vez da sua eleição pelos próprios trabalhadores!

Por fim, a limitação mais evidente desta explicação é que ela simplesmente não corresponde à cronologia dos fatos na evolução do Leste europeu. O fato concreto é que a "safra" de dirigentes derrubada na sublevações do ano passado foi justamente a que galgou o poder com base no processo de denúncia e crítica de Stalin e do "stalinismo" deflagrado no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética. Na Polônia, por exemplo, Kruschev impôs a nomeação de Gomulka como secretário-geral do PCP em 1956, encaminhando-o quase que diretamente da prisão (onde tinha sido confinado anos antes por "conspiração anti-socialista") para o principal cargo dirigente do país.

Alguns poderão argumentar que mesmo denunciando a Stalin, os governantes do Leste europeu continuaram implementando o seu "modelo burocrático" de socialismo. Mas, na verdade, a "mudança de guarda" na direção dos Estados que compunham o "bloco soviético" também levou a mudanças substanciais e profundas nas políticas desses regimes. Entre estas se destaca o abandono da própria perspectiva de ruptura com o mercado capitalista e de constituição de um mercado socialista mundial alternativo.

Após a Segunda Guerra, os dirigentes do recém-criado "campo socialista" consideravam que a nova situação havia levado à cisão do mercado capitalista mundial único, com a formação de dois mercados mundiais operando com lógicas opostas – um capitalista e outro socialista. Nesta base, os países do "campo socialista" se negaram a entrar nos organismos internacionais que passaram a regular a economia capitalista mundial, agora sob a hegemonia norte-americana (é o caso dos organismos criados nos marcos dos acordos de Bretton Woods – GATT, FMI, Banco Mundial etc.). Em contrapartida, criaram o Conselho de Assistência Econômica Mútua (o COMECOM), com o objetivo de fortalecer o "mercado socialista mundial". Pelo menos do ponto de vista dos seus objetivos formais, a política oficial era de privilegiar o desenvolvimento industrial dos países atrasados para reduzir as desigualdades entre os países membros. Por isto, a fixação de preços nos acordos do COMECOM se dava em acordos bilaterais entre os países envolvidos, à margem da lógica de preços predominante no mercado capitalista, já que esta estaria marcada por relações de "troca desigual" que prejudicavam os países menos desenvolvidos.

O processo de "desestalinização" na URSS marcou a ruptura com esta política. A nova liderança soviética passou a encaminhar o conjunto do seu "bloco" a crescente reintegração no mercado capitalista mundial, procurando, ao mesmo tempo, absorver avanços tecnológicos do Ocidente e se afirmar como pólo alternativo aos Estados Unidos no interior desse mercado. Traduzindo o entusiamo de Kruschev por esta nova política, o economista soviético Konstantin Ostovitianov chegava até mesmo a afirmar, em 1959: o "rublo está penetrando no mercado mundial, onde suplantará progressivamente o dólar".

Do ponto de vista das mudanças da política econômica interna, além de enfraquecer os organismos de direção econômica centralizada, a tendência foi para a progressiva reintrodução e ampliação de medidas que haviam sido caracterizadas por Lênin como mecanismos de "capitalismo de Estado" nos marcos da Nova Política Econômica (NEP) do início dos anos 1920 que, agora, em vez de um "recuo temporário", elas passaram a ser defendidas como componentes integrados de forma permanente na economia soviética. Estas mudanças tiveram implicações diretas para os países que compunham o "bloco soviético" na Europa Central e do Leste. Como vimos antes, a prática dos países do "campo socialista" até aqui era de fixar os preços do seu comércio com base em acordos bilaterais entre os países envolvidos. Já fruto dos novos ventos, em 1958, essa política de formação dos preços foi alterada. A 93ª reunião do COMECOM decidiu fixar os preços, a partir de então, com base no mercado capitalista mundial. Assim, a referência para a fixação dos preços no comércio do COMECOM, de 1958 a 1965, passou a ser a média dos preços praticados no mercado mundial de 1957.

Por interferência direta dos "novos ventos" soviéticos, os países do Leste europeu (com exceção de Albânia, que se alinhou com a China de Mao Tsetung na crítica à evolução soviética) deflagraram reformas econômicas internas afinadas com o rumo das mudanças na URSS. Na Polônia foram implementadas duas reformas em 1957 e 1965. O processo de coletivização da agricultura, por exemplo, foi revertido, fazendo com que mais de 90% do campo polonês ficassem nas mãos de proprietários privados até os dias de hoje. Culminando sucessivas mudanças ao longo dos anos, 1965 também registrou "reformas econômicas" ao estilo soviético na Alemanha Oriental, Bulgária e Tchecoslováquia. Nesta, os dirigentes "exageraram na dose" ao ensaiar uma política "à iugoslava" que poderia ameaçar a hegemonia soviética na região. Por isso, foram derrubados por tanques e tropas soviéticas na triste invasão de 1968.

Alguns analistas, hoje, pretendem que a ascensão de Brejnev teria revertido, no fundamental, esta política de Kruschev e iniciado um processo de retomada do modelo stalinista". Mas os dados não se coadunam com esta leitura. Na verdade, a retomada dos mecanismos de "capitalismo de Estado" foi aprofundada no período de Brejnev na URSS. Basta ver, por exemplo, a evolução do endividamento soviético junto a bancos capitalistas ocidentais na figura 1 ao lado. Verifica-se uma "explosão" do endividamento da URSS justamente no período de Brejnev, e sobretudo a partir de meados dos anos 1970. Um indicador interessante sobre o grau de reintegração da economia soviética no mercado capitalista mundial, no período e Brejnev, é o peso crescente da dívida da URSS com bancos ocidentais em relação aos investimentos internos realizados na sua economia, como pode ser visto na figura 2.

Em geral, os países aliados à URSS no Leste europeu não só a acompanharam na adoção de medidas de abertura das suas economias para investimentos ocidentais, como permitiram uma penetração maior deste capital em suas economias do que era aceito na própria URSS. O relatório do Banco Mundial de 1986, por exemplo, revela que, vistas em relação ao seu Produto Nacional Bruto, as dívidas externas da Hungria e da Polônia eram consideravelmente maiores até que a brasileira, como pode ser vista na tabela 1. Os países do Leste europeu também se anteciparam à própria "perestroika" de Gorbachev na aceitação de que o grande capital ocidental se tornasse proprietário direto de forças produtivas em suas economias, através das chamadas "empresas mistas" (ou "joint-ventures"). A Romênia foi o primeiro país do COMECOM a aceitar a formação de empesas mistas com capital ocidental em 1971, seguida pela Hungria (1972), Polônia (1976), Bulgária (1980) e Tchecoslováquia (1985). Na Polônia e na Bulgária a legislação foi sendo abrandada progressivamente, até admitir, inclusive, a instalação de empresas com 100% de capital estrangeiro. Não por acaso, Romênia, Polônia e Hungria foram admitidos como membros efetivos do Fundo Monetário Internacional (FMI) neste período.

À medida que se intensificava a reintegração dos países do "bloco soviético" no mercado capitalista mundial, novas modificações foram feitas na política de formação de preços do COMECON. O sentido das mudanças foi o de aproximar cada vez mais a estrutura de preços do COMECON à do mercado capitalista mundial. A partir de 1966 passou-se a adotar a prática de calcular os preços em cada determinado período de planos quinquenais pela média dos preços no mercado capitalista do quinquênio anterior. Assim, para o período de 1966-1970, adotou-se como parâmetro a média de preços no mercado capitalista mundial de 1961-1965. No início do período 1971-1975, o mesmo princípio foi aplicado, usando como parâmetro os preços do mercado mundial de 1966 a 1970.

Enquanto os preços do mercado capitalista mundial permaneciam instáveis, não surgiram muitos problemas com esta prática. Mas com a perturbação da estrutura de preços de mercado mundial com a "crise do petróleo", em meados dos anos 1970, logo surgiram atritos e discordâncias sérias do seio do COMECQN. A União Soviética, em particular, principal fornecedora de petróleo para os países do bloco, pressionava para elevar o preço de suas exportações, acompanhando a alta do preço do seu principal produto no mercado mundial. Depois de muita pressão de sua parte, foram implementadas novas modificações na política de formação de preços do COMECON.

Já em 1975, os preços do COMECON foram alterados para refletir a média dos preços realizados no mercado mundial em 1972, 1973 e 1974. A partir daí, a base dos preços passou a ser calculada todos os anos, tendo como referência a média dos preços mundiais nos cinco anos anteriores. Assim, a referência para a formação de preços em 1976 foi a média dos preços no mercado mundial de 1971 a 1975; em 1971 foi a média de 1972 a 1976, e assim por diante.

Estes dados são absolutamente essenciais para compreender a crise econômica e a crise política que se abateram sobre os países do Leste europeu nos anos 1980. O fato é que estes países entraram na década de 1980 sob um "duplo aperto". Por um lado, a crise financeira gerada pelo alto grau de endividamento junto a bancos capitalistas ocidentais. Por outro, a rápida deteriorização dos termos de intercâmbio no âmbito do COMECON pela progressiva adoção da estrutura de preços do mercado capitalista mundial, com acentuada valorização dos produtos importados na União Soviética.

Infelizmente, estes fatos raramente aparecem nas análises da grande imprensa sobre os acontecimentos do Leste europeu, pois indicam que a origem da crise está muito mais no abandono dos desafios do socialismo do que no socialismo em si!

A transferência do centro da tempestade para o próprio coração da URSS

O caso da Polônia, aqui, é exemplar. Estrangulada pelo "duplo aperto" que vimos acima, ela foi forçada, em 1980, a aplicar um "plano de reestruturação econômica" imposto pelo FMI. Entre as medidas estava o aumento acentuado de preços dos gêneros de primeira necessidade. Contra essas medidas se levantou um poderoso movimento grevista de base operária, no seio do qual se organizou o "Solidariedade". De mera articulação sindical, este se transformou num poderoso movimento político de oposição ao regime, e rapidamente conquistou a hegemonia da sociedade polonesa. O triunfo desta oposição, apoiada também pelos governantes das grandes potências ocidentais, foi abortado pelo golpe militar do general Jaruselski em 1981. Mas a crise econômica e política continuou se agravando até que, em agosto do ano passado, o regime se viu forçado a ceder e entregar a direção do governo ao "Solidariedade", que havia conquistado nada menos do que 99 das 100 vagas em disputa nas eleições para o recém-formado Senado.

A análise que desenvolvemos acima revela não haver uma linha de continuidade ininterrupta no "modelo" de desenvolvimento dos países do Leste, desde o lançamento dos primeiros planos quinquenais na URSS no final dos anos 1920 até a crise do ano passado. Até mesmo a caracterização desta como uma crise do socialismo é altamente questionável, se analisarmos as coisas mais profundamente.

Aqui, cabe resgatar que o próprio Marx concebia o socialismo como uma etapa de transição (a primeira fase do processo de "construção" do comunismo completo). Por isto mesmo, é uma fase onde convivem necessariamente elementos do comunismo (como a eliminação da propriedade privada) e elementos sobreviventes do capitalismo (como o "direito burguês" nas relações de distribuição do produto social, as diferenças entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre campo e cidade etc.). A sociedade avança na transição para a fase superior na medida em que cria as condições para a superação destas heranças do capitalismo. Enquanto isto não for alcançado, inclusive em escala mundial, o perigo do retrocesso em direção ao capitalismo estará sempre presente. Por isso, a questão da direção política dada à transição socialista é uma questão crucial. Não reconhecer esta natureza contraditória que impulsiona o próprio desenvolvimento socialista implica resvalar para uma política evolutiva, pragmática e não dialética, que acaba reforçando e consolidando os elementos capitalistas presentes na transição.

Já vimos acima como, sobretudo a partir dos anos 1950, a URSS e os países do "bloco soviético" no Leste europeu optaram por retomar e ampliar medidas que haviam sido classificadas por Lênin como mecanismos de "capitalismo de Estado" durante a vigência da NEP. Só que agora, estas medidas não eram mais encaradas como "recuos temporários" e sim como elementos permanentemente integrados à etapa do "socialismo desenvolvido". Assim, o sentido da transição foi invertido, encaminhando-se para a crescente reintegração interna e externa na economia capitalista, mesmo com a preservação de formas de governo e gestão econômica no período anterior. Como já tive oportunidade de observar num artigo anterior, o resultado desse processo foi a montagem de um sistema híbrido, com mecanismos que se tornavam cada vez mais contraditórios e conflitantes, e empurrava os Estados do Leste para a estagnação e paralisia. Estes, por sua vez, enfrentavam essas condições de maneira "pragmática" e "imediatista", fazendo cada vez maiores concessões ao próprio capitalismo.

Os acontecimentos do Leste no último ano culminam esta "involução", marcando uma reintegração plena desses países no capitalismo ocidental, e o abandono dos vestígios da transição socialista anterior. Isto marca o lado propriamente "trágico" dos acontecimentos. Pois embora já não se tratassem propriamente de "Estados socialistas", era assim que eles mesmos se classificavam, e era assim que eram vistos pelas amplas massas dos seus países. O "socialismo", assim, passou a ser identificado com corrupção, clientelismo, nepotismo, mandonismo, burocratismo, falta de liberdade etc. E "capitalismo" passou a ser identificado com empreendimento, progresso e democracia. É inegável o fascínio popular pela perspectiva de integração na Europa capitalista do Ocidente. Resta saber se esta "euforia pró-capitalista" sobreviverá ao advento mais acirrado de problemas sociais que acompanham o desenvolvimento capitalista (e que nós conhecemos tão de perto), como aumento do desemprego, pressões inflacionárias, polarização social, cultura da concorrência individual mais doentia, entre tantos e tantos outros. Disputas recentes na Polônia, Alemanha Oriental e na própria União Soviética já indicam o início de um certo "desencanto".

As mudanças do Leste no último ano precisam ser situadas também no marco do profundo realinhamento de forças que está em curso no cenário mundial. Aqui se destacam o debilitamento relativo das posições dos Estados Unidos e da União Soviética, e a ascensão fulgurosa de potências emergentes como o Japão na Ásia e a Alemanha na Europa (encabeçando a unificação da CEE). Neste contexto a nova política de Gorbachev procurou estabelecer acordos com os Estados Unidos para reduzir a tensão entre os dois países e viabilizar acertos parciais de desarmamento que permitissem a ambos reverter parte de seus gastos bélicos para a modernização de outros setores das suas economias que vêm perdendo competitividade internacional. No momento atual isto é do interesse, também, da própria liderança norte-americana, às voltas com uma séria crise financeira em função do seu gigantesco déficit público, e enfrentando uma guerra comercial cada vez mais aguda com o Japão e a CEE.

Por outro lado, com a perestroika de Gorbachev, a URSS reviu sua posição anterior de tentar se constituir em pólo alternativo aos três grandes centros do mercado capitalista mundial (Estados Unidos, Japão e Europa Ocidental) simultaneamente. Esta postura anterior, sobretudo no período de Brejnev, a levava a procurar explorar todos os movimentos (revolucionários ou não) que debilitassem a hegemonia das potências ocidentais em qualquer parte do mundo. Mas, além de manter sempre viva a ameaça de uma guerra mundial eminente, a União Soviética encontrava dificuldades em consolidar suas posições em mercados “conquistados" desta forma, dado o seu relativo atraso econômico e tecnológico em relação às principais potências ocidentais. Por isso, Gorbachev elaborou uma nova estratégia de aproximação e associação crescentes com a Europa Ocidental, tentando pegar carona no seu processo de unificação, para facilitar sua penetração em áreas econômica e estrategicamente mais importantes do mercado mundial. O próprio Gorbachev deixa isto mais do que claro em seu livro Perestroika:

"A construção do 'lar comum europeu' exige um alicerce material – a cooperação construtiva em muitas áreas diferentes. Nós, da URSS, estamos preparados para isso, inclusive para procurarmos novas formas de cooperação, como o lançamento de joint ventures, implementação de projetos conjuntos no Terceiro Mundo etc.".

Cisão do movimento comunista e a polêmica sobre os rumos do socialismo
O risco a ser enfrentado por esta nova política da URSS era o perigo de perder a sua liderança na Europa Central e do Leste, já que esta podia ser tragada pela força de atração do processo de unificação da Europa Ocidental. Foi exatamente o que aconteceu. Gorbachev movimentou seus peões para afastar as lideranças na região que discordavam da política da perestroika (sobretudo Alemanha Oriental, Tchecoslováquia e Romênia). Mas sua "jogada" foi atropelada pelas gigantescas mobilizações populares que não vacilam em derrubar, logo em seguida, as próprias lideranças que se alinhavaram mais com Gorbachev. O resultado foi a virtual implosão do antigo "bloco soviético" na Europa (que parecia compacto e monolítico até há pouco tempo) e a transferência do centro da tempestade para o próprio coração da URSS, que começa ela mesma a desabar diante da explosão de movimentos nacionalistas internos e da insatisfação crescente com a aguda crise econômica.

Toda a análise desenvolvida neste artigo não é uma tentativa de última hora de "salvar a cara" mediante o fiasco dos regimes do Leste. Desde o lançamento de Princípios, há quase dez anos, a revista vem trazendo artigos críticos da evolução destes países. E a discussão sobre a natureza das sociedades existentes na URSS e no Leste europeu foi sempre tema de aguda controvérsia entre os pensadores e correntes da tradição marxista. É importante resgatar que a divergência em relação ao caminho de desenvolvimento dos países do "bloco soviético" no Leste, foi um dos temas centrais da "grande cisão" que se verificou no movimento comunista mundial na década de 1960, e que teve como maiores protagonistas, na época, o PC soviético, de um lado, e o PC chinês, de outro. A maioria dos partidos comunistas no mundo, na ocasião, se alinhou com o PCUS e defendeu as mudanças políticas, econômicas e ideológicas por ele encaminhadas como uma "inovação do socialismo" que enterrava os erros e desvios do passado. Já as correntes que se alinharam em torno dos partidos da China e da Albânia denunciaram o revisionismo soviético como uma capitulação diante do capitalismo internacional, que se traduzia no abandono das tarefas da transição socialista e culminaria no próprio retorno ao capitalismo. A própria separação do PCdoB e do PCB no Brasil se inseriu nesta grande polêmica mundial.

Os acontecimentos do último ano no Leste europeu, ao lado de sua dimensão trágica, servem também como um teste empírico, promovido pela história, para ver qual das duas hipóteses acima conseguiu "dar conta" melhor do processo real. Que o leitor reflita e chegue às suas próprias conclusões.

A superação da crise vai contra toda tentativa de petrificar o marxismo

As correntes marxistas-leninistas que há três décadas vêm criticando o revisionismo no Leste europeu poderiam chegar agora e dizer "estão vendo como eu tinha razão?", e simplesmente continuar na luta política e ideológica nos mesmos termos de antes. Mas este seria um procedimento enganoso, limitado e equivocado. Se não é o socialismo que está em crise hoje no Leste europeu, isto é porque ele já entrou em crise há algum tempo na União Soviética, arrastando atrás de si a maior parte do antigo campo socialista e dos antigos partidos comunistas. A China, que inicialmente alimentou esperanças de que pudesse vir a ocupar o papel histórico abandonado pela URSS, logo entrou pelo desvio do maoísmo e saiu pela contramão de Deng Xiaoping desembocando no massacre da "praça da Paz Celestial". Sem contar com um poderoso pólo de atração socialista no mundo, as revoluções antiimperialistas abortam ou "truncam" no meio do caminho. O reformismo e o peleguismo recuperaram a hegemonia dos movimentos populares e sindicais. Na intelectualidade, o marxismo perde seu fascínio enquanto "teoria da modernidade" e cede espaço para o chamado pensamento "pós-moderno", que nada mais faz do que resgatar ultrapassadas formulações agnósticas e liberais, quando não absolutamente obscurantistas.

É verdade que este é um processo contraditório. O retrocesso nas condições subjetivas do movimento revolucionário no mundo coincide com um período em que se agravam as contradições objetivas das sociedades capitalistas, que exigem soluções revolucionárias, socialistas. Mas isso só torna mais urgentes e complexas as tarefas de defesa do marxismo, e mais graves as nossas limitações neste terreno. Não podemos simplesmente ignorar a derrota histórica que o socialismo sofreu nas últimas décadas.

Os acontecimentos do Leste, nesta perspectiva, colocam na ordem-do-dia uma série de problemas teóricos fundamentais que exigem desenvolvimento criador da própria teoria marxista. Uma tarefa teórica primordial é a sistematização e generalização das trajetórias vividas pelas primeiras experiências socialistas, sobretudo a URSS. Que novas contradições surgiram nessas sociedades que impediram a continuidade da transição para uma sociedade sem classes? Que erros foram cometidos pelos Estados socialistas? Qual foi a base interna para o abandono da perspectiva socialista? Que lições isso traz para o movimento revolucionário no mundo? Como evitar desfechos semelhantes em futuras experiências socialistas?

A gravidade desta problemática exige um enfrentamento amplo, corajoso e profundo na luta teórica. Algo que, guardadas as devidas proporções, pudesse desempenhar para o movimento revolucionário hoje o mesmo papel que as análises de Marx sobre a Comuna de Paris desempenharam no final do século passado. O enfrentamento teórico da atual crise do marxismo exige também a superação de toda e qualquer tendência a petrificar a teoria marxista, em nome de um suposto "combate ao revisionismo". Com base neste desvio, qualquer desenvolvimento do marxismo seria visto com desconfiança, como "potencialmente revisionista". Desta forma, a rica ciência marxista se transformaria num punhado de dogmas congelados e estéreis, incapazes de se desenvolver para dar conta dos novos fenômenos colocados pela vida.

No final do século XX, o conjunto de problemas teóricos que a vida coloca em questões tão fundamentais da teoria marxista, que nos deparamos com a reedição do enigma da esfinge da mitologia homérica – ou a deciframos, ou ela nos devora. Por se apoiar numa teoria científica e dialética avessa ao dogmatismo, e por ter sabido manter uma postura crítica e independente diante da evolução dos Estados do Leste, os marxistas revolucionários estão em condições de "peitar" este desafio e decifrar o enigma, sem cair na armadilha da desorientação.

* Luís Fernandes é mestre em ciências políticas da UFF.

EDIÇÃO 18, JUN/JUL/AGO, 1990, PÁGINAS 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14