Marx já dizia, e nos tempos atuais foi citado indevidamente, que "tudo que é sólido desmancha no ar". Os acontecimentos deste fim de século, que assiste à quebra de antigos equilíbrios, mostram a decadência do capitalismo e a tempestuosa crise no mundo socialista. Nesse quadro a frase do velho filósofo soa com inquietante (para alguns) força e atualidade.

Particularmente a forma torrencial com que sucederam os episódios na URSS ou no Leste europeu (e ainda sucedem, os fatos ainda estão em curso) faz ver que antigas referências conceituais se esvaem no pó da história, valores aparentemente eternos se perdem no vórtice das derrocadas, correntezas que a tudo arrastam.

É importante entender este momento de transição na história (nela tudo é transitório) como reflexo de uma situação objetivamente dada, complexa e cujos desdobramentos é impossível no momento prever. E encarar com naturalidade o fato de, queiramos ou não – independente da manifestação de boa vontade e da proclamação de certezas quanto ao desenvolvimento revolucionário e ao futuro socialista da humanidade – o desnorteamento atingir de cheio as forças revolucionárias e socialistas.

Em toda parte, entre estas forças, a atitude mais em voga é desaprender todo conhecimento acumulado, desfazer realizações, rever a experiência vivida. Não é de admirar ou surpreender, muito menos de condenar. É de compreender. Crises sempre são benéficas, pois constituem o momento supremo do salto, da mudança qualitativa, o prelúdio da negação da negação.

Mas em alguns setores da esquerda revolucionária e socialista manifestam-se, neste ambiente de desnorteamento político e ideológico, algumas tendências que, partindo da crítica necessária à descoberta do novo, retornam à velhice modorrenta de conceitos ultrapassados. É aí que o poeta sente a dor de perceber que "apesar de tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais".

Identifico o fenômeno em três direções, todas a meu ver falsas. A primeira é a tendência em se aferrar ao passado, transformando em mito seus personagens, em ícones sagrados a quem só se deve culto e reverência, suas glórias em epopéias inultrapassáveis pelo espírito humano, seus fracassos em fatos somenos. É a tendência do dogmatismo, do pensamento ossificado, da realidade enquadrada em esquemas mortos, da existência petrificada, inerme. Uma espécie de "fim da história" às avessas.

A segunda é a do fim da história propriamente dito, com a versão que lhe deu o ideológico nipo-norte-americano Francis Fukuyama, um pensamento declaradamente de direita, mas absorvido por áreas da esquerda, segundo o qual a época do neoliberalismo na economia e na política esgota os ciclos de desenvolvimento da humanidade. A terceira é a que reclama para si coerência, pretende-se a um só tempo pura e inovadora, dinâmica e replicante, mas parte da renúncia a todos os princípios da teoria revolucionária, como se não estivéssemos tratando de ciência, de conceitos provados, mas de um jogo de ensaio e erro. É o empirismo transformado em modismos dos tempos da crise.

Os homens não agem na história por volição, nem por "virtu e fortuna", embora na prática revolucionária nunca seja demais uma boa dose de paixão, vontade, virtude e sorte (aqui bem entendido o sábio ou oportuno aproveitamento dos acasos favoráveis). O mesmo ocorre com os grupos organizados sejam eles quais forem, compreendidos aí os partidos políticos. E a partir da sua atitude objetiva diante dos fatos, também objetivos, que serão julgados. A prática é função da consciência quando a realidade é bem compreendida, segundo critérios e princípios científicos que, em última instância, brotaram dela. É aí que a política aparece não como manifestação de fé, mas como um corpo de conceitos formulados e experiências vividas, consoante os condicionamentos da realidade objetiva.

Assim é que, como os indivíduos, os partidos políticos não podem ser julgados pela história a partir do que dizem de si mesmos, mas pelo que são em si, entendido o ser em si não como um dom absoluto, mas como aquela capacidade de aceitar com justeza os desafios da história, de situar-se com precisão diante das circunstâncias concretas.

Nisso reside o mérito ou o demérito dos agentes da história.

O mundo assistiu, na segunda metade do século XIX, a um salto na consciência da humanidade. Com a elaboração do marxismo, o proletariado, a classe símbolo da modernidade, capaz de tirar o mundo da pré-história, tomou, através da teoria e da prática do seu partido de vanguarda, consciência de si mesmo, do seu papel na história. Tornou-se seu agente transformador e consciente. Seus avanços e recuos, neste século e meio, têm a ver com o desenvolvimento e as lacunas do pensamento e da prática socialistas.

Penso que, no nível subjetivo, para superar o desnorteamento que acomete importantes setores da esquerda revolucionária e socialista, o ponto de partida é a tomada de consciência do papel da consciência revolucionária (não é jogo de palavras nem trocadilho). Porque se é justo e necessário criticar as lacunas do pensamento marxista e da prática e da construção do socialismo, é falso proclamá-lo morto e correr sofregamente em busca do esquema de idéias em voga no momento. Em certos setores essa demarche é tão peripatética que se formulam sofismas da seguinte natureza: "somos coerentes porque sempre defendemos o socialismo, nunca nos aliamos à burguesia".
Preciosidade digna dos embolorados manuais de metafísica. Ou: "os comunistas são dogmáticos porque pretensos donos da verdade. Proclamam que o marxismo-leninismo é uma ciência e quem está contra ele está contra a ciência". Donde, segundo a lógica cartesiana que preside seu raciocínio, "para que possuir consciência revolucionária, para que defender os princípios científicos?". Este pânico da consciência, não sei se trágico, se cômico, assemelha-se muito ao do personagem de Chamberlain, que se lamentava premonitoriamente: "Que dirá ela, a terrível consciência, esse espectro que me acompanha em meu caminho?" A pobre criatura também preferia não possuí-la. Assim ocorre com os neófitos em política, que temem as encruzilhadas da luta de classes, como os marinheiros de primeira viagem quando sobem em navio de grande calado em dia de tempestade.

Por paradoxal que pareça, a sociedade atual está prenhe de transformações, muito embora não se viva um momento revolucionário amadurecido. Esta assertiva divide em campos opostos marxistas e revisionistas. Guiando-se pela aparência das coisas, observando a realidade em estado de repouso, várias correntes orientam sua ação no sentido de contornar o momento revolucionário, abortar seu advento. Para isso reproduzem teorias que não passam de reedições dos enunciados de Bernstein e Kautsky. A tendência objetiva seria a assimilação da classe operária nas engrenagens da sociedade de consumo e da "sociedade de massas". Politicamente, o ideal seria resgatar os valores, transformados em absolutos, da revolução revolucionário-burguesa. No plano da consciência chegaríamos também ao fim das ideologias, representado pelo ecletismo.

A revolução surge da atividade consciente e não por geração espontânea
Em face disso, trata-se de saber se a transformação revolucionária da sociedade burguesa e o advento de um regime superior estão na dependência de proclamações desse tipo. Mais uma vez se coloca com força o problema filosófico da relação entre o fator objetivo e o subjetivo. A experiência histórica mostra que, em última instância, a transformação revolucionária da sociedade é determinada pelo amadurecimento de suas condições objetivas. Para sua realização e desfecho vitorioso interfere o fator subjetivo, no caso a capacidade de organização e mobilização das forças revolucionárias.

É evidente que essa capacidade não surge por geração espontânea. É resultado da ação de homens conscientes e organizados, fruto da atividade diuturna de um partido que tenha por objetivo programático a tomada do poder político e a construção da sociedade socialista.

Hoje, em grande medida, o sucesso de uma estratégia revolucionária e socialista está relacionado com o combate às teorias e à prática oportunistas. Sempre esteve. O exemplo do embate de Lênin contra a II Internacional, que tinha abjurado o marxismo, ilustra a dimensão que essa luta assumiu em tempos passados.

Não é casual, portanto, que em meio às digressões sobre o fim da história e o término da era das revoluções, esteja muito presente no revisionismo antimarxista o combate à idéia de partido de vanguarda da classe operária. É que o fracasso dessas correntes está na razão inversa do adensamento do estofo teórico e do agigantamento da prática do partido marxista. Isto é tanto mais verdadeiro agora, quando se constata o que ocorreu com os partidos autodenominados de comunistas, mas que já tinham renunciado ao marxismo desde meados dos anos 1950. Na verdade, desde que neles se arraigou o pensamento revisionista, o partido comunista fora liquidado. E essa liquidação significou o primeiro golpe de morte do socialismo.

Isto nos mostra que a defesa da idéia de construir e consolidar o partido revolucionário da classe operária, que domine a teoria marxista e a aplique criativamente à realidade concreta, é indispensável para enfrentar o período cinzento que o movimento revolucionário atravessa. É uma espécie de marco inicial para percorrer um longo caminho, repleto de perigos e desafios que não são poucos nem imaginários. Quem pretenda uma transformação revolucionária da sociedade há que se dar conta da necessidade de enfrentar as turbulências do vôo, pois não luta contra moinhos de vento.

É necessário insistir que não há partido revolucionário, socialista, comunista, à margem da classe operária, do marxismo-leninismo e dos objetivos programáticos revolucionários. Não pode haver coerência no ecletismo, democratismo popular ou proletário confundido com o democratismo burguês, nem socialismo convivendo com noções e categorias capitalistas. Não se trata de defender truísmos, mas de estabelecer a necessária linha de demarcação com afirmações falsas e adotar critérios indispensáveis ao avanço do movimento revolucionário. Defender a necessidade da revolução e do partido revolucionário de vanguarda e, por conseguinte, sua coerência é, portanto, um ponto de partida irrecusável, por incrível que pareça, pois este é um debate teórico de quase cem anos. É estabelecer a base em que se funda a coerência.

É bem verdade que resgatar os objetivos revolucionários e a existência do partido de vanguarda não esgota o assunto. É apenas a referência mínima, o marco inicial. Evidentemente, a evolução dos acontecimentos no Brasil e no mundo colocou necessidades novas. E isto não é mau. A própria derrota do socialismo e as dificuldades objetivas em meio das quais se desenvolve a luta de classes fazem soar também para os marxistas-leninistas o alarme da consciência científica. Ao reafirmar princípios básicos que plasmam sua coerência, aqueles se dão conta de que o partido da classe operária precisa considerar as aspirações e necessidades das camadas não-proletárias, seja na luta pela tomada do poder, seja na construção do socialismo; deve necessariamente aplicar sua teoria nos marcos de uma realidade historicamente determinada, nunca, em absoluto, desligada dos condicionamentos de cada conjuntura; de que o partido de vanguarda tem de sentir o pulsar das massas para não resvalar no voluntarismo ou na esterilidade; deve, ao lutar pela hegemonia, considerar que a sociedade é em si mesma plural; e saber que, a despeito de ser científico o seu pensamento, não pode pretendê-lo completo e acabado e menosprezar as aquisições do pensamento elaborado pela intelectualidade não marxista.

No Brasil, o debate teórico e a luta política no seio do movimento operário entre os defensores do marxismo-leninismo, de um lado, e os revisionistas antimarxistas, de outro, desenvolve-se há cerca de três décadas. Ao longo desse período, esse debate foi nuançado por vários tons, assumiu em cada conjuntura formas diferenciadas e hoje se apresenta com cores particularmente fortes, dada a premência de responder ao questionamento de se o marxismo morreu ou se é a doutrina capaz de orientar as classes revolucionárias rumo à sua emancipação. Durante essas três décadas vieram à tona (e ainda estão presentes) discussões acaloradas sobre relevantes questões teóricas e políticas. Não somente as que situei acima referentes à necessidade da revolução e do partido de vanguarda, mas também quanto ao caráter da revolução nas condições de um país dependente e de economia monopolizada, quanto ao papel da luta pelas liberdades num país em que o Estado sempre teve um viés oligárquico, reacionário e autoritário, quanto ao papel da luta nacional, nas condições em que a nação se transforma numa colônia de outro tipo (sistema neocolonialista), quanto ao que é tática e estratégia, política de alianças, unidade das massas, formas da luta de classes etc. etc.

Agora com os recentes acontecimentos no Leste europeu e na URSS, volta o debate sobre marxismo, revisionismo, socialismo. Muitos se perguntam: "Qual socialismo a gente quer?" (E eu me permito perguntar entre parêntesis, primeiro, se o socialismo terá algum adjetivo, segundo se ele vai depender do que a gente quer).

Em relação à Europa e à América do Norte, o pensamento marxista teve desenvolvimento tardio no Brasil. O Partido Comunista foi fundado em 1922, ainda sob a influência da Revolução de Outubro, da Internacional Comunista e, sem dúvida, correspondendo a necessidades objetivas do desenvolvimento histórico do país. A fundação do PC representou um marco na luta de idéias porque foi, de uma certa maneira, resultado do enfrentamento entre o pensamento socialista e o anarquista ou sua forma anarco-sindicalista.

A rigor, porém, o pensamento marxista-leninista só assumiu contornos mais definidos no Brasil em meados dos anos 1950, no interior da direção do Partido Comunista, cujo núcleo precursor se formara no início dos anos 1940. É uma singularidade da existência dos marxistas-leninistas brasileiros o fato de que, tão logo amadureceram, tiveram de enfrentar a maior de todas as lutas ideológicas até então conhecida pelo movimento comunista – a luta contra o revisionismo soviético. Isto não deixa de ser um atestado da magnitude dessa corrente, representada no Partido Comunista do Brasil, reorganizado em 1962. Caberá ao próprio Partido, ou a historiógrafos isentos de compromissos com o oficialismo e academicismo, escrever em momento oportuno a trajetória dessa organização
revolucionária. Mas cabe, no âmbito deste artigo, destacar alguns aspectos de sua orientação e ação prática, reveladores de coerência ideológica e política.

Parte majoritária do movimento comunista mundial de fato se rendeu

Muitos "marxistas" formados na estufa ou fabricados em proveta, agora que ruiu o castelo de cartas que eram os países revisionistas, parecem ter descoberto a pólvora e se encantam (ou espantam?) com suas descobertas sobre o caráter anti-socialista desses regimes. É muito fácil resolver equações sem incógnitas. Atribuem cavilosamente ligações ideológicas e políticas entre esses regimes e o passado socialista na URSS. E, em atitude de franca desonestidade política e intelectual, forçam a identificação dos comunistas com símbolos ou episódios execráveis, como o muro de Berlim, a nomenklatura, o regime de privilégios para castas, a gerontocracia, a ditadura unipessoal, o culto à personalidade, o partido único burocrático, a existência formal das organizações de massas, a perseguição à intelectualidade artística etc. etc. É preciso dizer alto e em bom som que a vocação socialista é a vocação libertária. A luta do proletariado pelo comunismo se assemelha à saga de Prometeu acorrentado. O socialismo só responderá às aspirações da humanidade se significar para ela a conquista do bem mais supremo, individual e coletivo – a liberdade. A identificação das atuais gerações de comunistas com o período em que se construiu o socialismo na URSS nada tem a ver com a assinatura de procuração em branco para justificar erros e desvios, mas uma necessária tomada de posição a partir de uma experiência vivida, em seu conjunto positiva, sem referência na qual será impossível retomar a construção de um regime revolucionário. Sem esse referencial não se chegaria senão à capitulação, como os revisionistas chegaram, em face da pressão burguesa e se renunciaria a conceitos científicos como a hegemonia do partido revolucionário, a inconciliabilidade de interesses entre proletariado e burguesia (o socialismo é também luta de classes), a ditadura do proletariado (democracia de massas), a luta pelo atendimento das necessidades da população à base do desenvolvimento auto-sustentado etc.

Não há reparos a fazer à atitude assumida pelos marxistas-leninistas ao defenderem o regime socialista soviético que perdurou da Revolução de Outubro até meados dos anos 1950, ainda que aquela experiência mereça mais estudo e revisão crítica no sentido de chegar à verdade que só o domínio sobre a história revela. Mas quando Kruschev atacou, da tribuna do XX Congresso do PCUS os "erros" e "crimes" de Stalin, na verdade, fazia tábula rasa de todo um período histórico, complexo, novo, tumultuado, em que se forjou, num país das dimensões que era a URSS, a primeira experiência de construção do socialismo. Naquelas condições não houvesse domínio da teoria e compreensão política sobre o que acontecia, bastaria o instinto de classe, o apego, ainda que baseado somente no heroísmo, aos princípios, a percepção de que ou se agia assim, ou o proletariado se renderia e o socialismo seria derrotado. Desgraçadamente, o socialismo foi derrotado em quase todo o campo socialista e a parte majoritária do movimento comunista de fato se rendeu. Isto valoriza ainda mais o gesto dos marxistas-leninistas que, com muita razão, anatematizaram Kruschev e seus seguidores como renegados.

A reorganização do PCdoB em 1962 tinha objetivos de longo alcance

A forma como se deu essa luta no interior do Partido no Brasil e o ambiente que a circundava são ainda mais emblemáticos do significado e do valor da postura dos marxistas-leninistas. Literalmente, estes remaram contra a corrente. Eram minoria no partido e o ambiente social e político em torno falava de "desenvolvimentismo", democratização do Estado e Forças Armadas, distensão no campo internacional, avanço da URSS rumo ao comunismo, decadência do imperialismo norte-americano, que estaria de dentes quebrados. Tudo levava a crer que tinham razão os que pregavam a coexistência pacífica, a conciliação de classe, a transição pacífica etc. Nesse sentido, sem que isso seja motivo para vanglória, os marxistas-leninistas enfrentaram um ambiente mais hostil do que foi dado aos bolcheviques, dirigidos por Lênin, quando do combate aos oportunistas da II Internacional na primeira década deste século. Ainda mais que em meados dos anos 1950, o adversário ideológico era o partido até então considerado guia dos povos, o farol do socialismo, o baluarte da revolução, o construtor da nova sociedade, o vencedor do nazi-fascismo na Segunda Grande Guerra, o herdeiro das tradições revolucionárias, o discípulo de Lênin.

O enfrentamento dos revisionistas pelos comunistas brasileiros foi o seu batismo de fogo. Isto permitiu uma solidificação de sua experiência, o aprofundamento teórico de seus conhecimentos, ensejou maiores estudos e reflexões, impeliu a um esforço independente de interpretação da realidade mundial e nacional, impulsionou a elaboração da linha política.

Aqui é importante notar como se forma o conhecimento. Os partidos políticos evoluem quando postos à prova. Ainda que não dominem tudo, se tiverem apego aos princípios, uma base teórica sobre a qual se apoiar, experiência histórica e se enfrentarem sem regateios os desafios da luta de classes, têm diante de si um largo caminho para se desenvolver.

Isto é válido também para explicar o processo de luta dos comunistas brasileiros contra os revisionistas chineses, o que alguns ainda insistem em não compreender.

Falsamente atribuiu-se ao Partido Comunista do Brasil a caracterização de "maoísta" porque o marxistas-leninistas brasileiros estiveram lado a lado com o Partido Comunista Chinês no combate contra o revisionismo Kruschevista. Mas na luta contra um inimigo tão perigoso os revolucionários não podiam escolher aliados. Ademais, objetivamente, o Partido Comunista Chinês, durante a década de 1960, colocou-se no campo dos revolucionários. Somente mais tarde revelaram-se os objetivos nacionalistas da luta engatada pelos chineses contra os soviéticos, sua aproximação com o imperialismo norte-americano (isto só ficou evidente em 1972 com a visita de Nixon à China e com a posterior formulação da "teoria dos três mundos"). Aos poucos o que pareciam erros pontuais, incorreções táticas, desvios de rumo, mostrou-se como um corpo de conceitos ecléticos, um amálgama de marxismo mal-assimilado com teorias retrógradas.

É evidente que os comunistas só podiam chegar a essa conclusão mais tarde, após estudo criterioso da obra de Mao Tsetung da trajetória do PCCh, o que acabaria ajudando no preenchimento de lacunas em seu próprio pensamento.

Na interpretação e julgamento da postura dos partidos comunistas no combate ao revisionismo é preciso um referencial teórico e histórico baseado na dialética do conhecimento. Não se pode julgar o revisionismo como algo grosseiramente concebido, fácil de captar e desmascarar. Nem como uma política maquinalmente definida, pronta e acabada. Pelas circunstâncias históricas em que surgiu, o revisionismo (mormente o soviético e o chinês), tinha necessariamente de apresentar-se com sutilezas (no caso do revisionismo soviético, principalmente na chamada era Brejnev houve até uma certa dose de sofisticação). É que o revisionismo precisa de um disfarce, especula com herança marxista, não rompe formalmente de uma só vez com o campo revolucionário. Nisso consistiu a singularidade do período histórico de vigência do revisionismo nos anos 1960, diferente de agora quando o desenvolvimento objetivo do processo da retorno ao capitalismo impõe uma renúncia formal ao marxismo. A mesma trajetória foi percorrida outrora pela social-democracia. Mas isto já é outra história, tema de outro artigo desta revista, na página 15.

O pensamento marxista-leninista no Brasil alcançou um marco em seu desenvolvimento com a reorganização do Partido Comunista em 1962, resultado lógico do combate do revisionismo no seio do antigo partido em meados da década de 1950. Muito mais que uma luta entre grupos ou um desenfoque de interpretação e aplicação da linha política em relação ao pensamento oficial da direção do velho partido, o passo que deu em 1962 tinha objetivos de longo alcance. Tratava-se em primeiro lugar de salvar o partido do proletariado de uma investida liquidacionista e de dotar o movimento operário no Brasil de uma orientação revolucionária em novas bases. Nesse sentido a reorganização do partido dos comunistas no Brasil foi um corte com a linha revisionista, com o centrismo, a vacilação pequeno-burguesa e a tendência a conciliar com as classes dominantes e o imperialismo. Foi a superação de uma etapa na luta pela formação de uma vanguarda marxista-leninista no Brasil, um salto do pensamento e da prática revolucionária.

A rigor, o rompimento com o revisionismo coroou o processo de criação do partido marxista-leninista no país.

A luta contra o revisionismo contemporâneo ensejou a elaboração de um programa baseado na interpretação científica da realidade brasileira situando, ao nível do conhecimento acumulado à época, a estratégia da revolução brasileira.

A propósito, o principal elemento a atestar a coerência revolucionária dos marxistas-leninistas
brasileiros é a evolução do seu pensamento estratégico e tático, resultado da conquista de solidez teórica, da assimilação da experiência histórica (a própria e a de outros povos e partidos) e de uma sintonia, cada vez mais fina, com a realidade concreta em que atua.

Os comunistas brasileiros aprenderam que estratégia e tática não são conceitos estanques, nem sobrepostos ou justapostos, mas entrelaçados em unidade dialética. À base da teoria e de interesse prático, os comunistas compreenderam melhor este nexo. Assimilaram a arte de manejar a direção tática enquanto atuação preparatória, permanente acumulação de forças revolucionárias, a fim de estarem bem situados politicamente nos embates decisivos. E entenderam a estratégia como a realização, quando forem maduras as condições objetivas e subjetivas, dos fins programáticos da luta revolucionária.

Esta evolução no conhecimento dos marxistas-leninistas brasileiros sobre a direção estratégica e tática do processo revolucionário encontra expressão no programa do Partido Comunista do Brasil, aprovado no seu VII Congresso, de maio de 1988. Ali formulou-se o princípio, de resto já consagrado numa prática de duas décadas e meia, de que não se conquistará o socialismo à margem do curso político, sem acumulação revolucionária de forças, obtida através da participação em todos os movimentos democráticos, patrióticos, sociais e culturais.

Nesse sentido, pode-se dizer que o programa de 1988 do Partido Comunista do Brasil é o espelho, ao nível da síntese teórica, da sua coerência revolucionária marxista-leninista. Este programa supera as limitações do de 1962 que vigorava até a sua elaboração. Considera na justa medida os objetivos táticos imediatos e estabelece uma relação dialética entre os objetivos estratégicos e as tarefas políticas conjunturais.

Igualmente, no referido documento, situa-se melhor a ligação entre a realização do programa da primeira etapa da revolução e a conquista do socialismo, que vem a ser o objetivo programático maior. "Contudo, esse progresso (refere-se ao progresso do país, N. do R.) não será obtido nos marcos do regime capitalista, por governos da burguesia". E mais adiante: "O Partido Comunista do Brasil, que se norteia pelos valores universais da ciência social fundada por Marx e por Engels, tem por objetivo maior, programático, a instauração do socialismo em nosso país. Esse novo regime, originário da luta contra a opressão e a exploração, promoverá a liberdade e a justiça, será construído a partir das condições concretas do Brasil, tendo em vista a sua formação histórica, suas tradições de luta, sua estrutura social, os aspectos culturais, nacionais e morais progressistas da vida brasileira". (O Programa do PCdoB, in A Política Revolucionária do PCdoB, Anita Garibaldi, 1989).

O golpe de 1964 demonstrou a falsidade da linha de conciliação do PCB
Mas não só no programa reflete-se a política revolucionária dos marxistas-leninistas brasileiros. Sua prática e as diversas políticas que adotou em cada conjuntura completam o traçado desse perfil. A par do esforço teórico para assimilar o marxismo-leninismo, combater o revisionismo e avançar na formulação das questões cardinais da revolução brasileira, desde 1964 o Partido Comunista do Brasil concentrou sua atenção nos problemas-chave da tática.

O golpe militar de 1964 criou uma situação política inteiramente nova no país. Não tendo alimentado ilusões no período imediatamente anterior quanto ao caráter do governo reformista de João Goulart – temperados no embate, que estava no auge, contra o revisionismo prestista e armados com um programa revolucionário no fundamental justo –, os comunistas brasileiros não se desarvoraram com a situação. Com serenidade fizeram o diagnóstico do golpe de Estado e asseveraram que os militares assaltaram o poder para levar a cabo um plano de longo prazo das classes dominantes brasileiras associadas ao imperialismo, à época principalmente norte-americano. A análise dos marxistas-leninistas sobre o golpe de 1964 demonstrou a falsidade do caminho propugnado pelo chamado PCB, sua estratégia de conciliação com um Estado intrinsecamente autoritário e as ilusões que semeou quanto ao "caráter democrático" das Forças Armadas.

Em 1966, na VI Conferência Nacional, os comunistas evoluíram para a elaboração de sua tática no documento União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista. Ao nível tático, situa-se a partir daí, na linha política do PCdoB, a luta pelas liberdades democráticas e pela independência nacional, objetivos que só seriam alcançados com a mobilização das massas, através de todas as formas de luta e organização e da unidade de todo o povo, inclusive setores dissidentes das classes dominantes.

Muitos marinheiros de primeira viagem, como aqueles que temem "o que dirá o espectro da consciência", proclamaram sua "coerência" fugindo do curso político, secundarizando a luta contra a ditadura, cuja derrubada foi rigorosamente o principal objetivo das correntes democráticas e populares de 1964 a 1985, quando o regime militar foi retirado da cena política. Esta "coerência" aparece também no economicismo, tendência que menoscaba a capacidade política da classe operária e reduz o alcance dos seus objetivos. Surge, ainda, na tendência a ignorar a ameaça neocolonialista que pairou durante várias décadas sobre o país e se concretiza de maneira particularmente trágica agora. No limite, chega-se ao absurdo de defender, no âmbito do movimento popular, a internacionalização da economia como sinônimo de modernidade. Mas a "coerência" dessas correntes mostrou-se particularmente perniciosa para o desenvolvimento da luta do povo brasileiro quando se manifestou (e nos períodos de desorientação com que força se manifesta!) sob a forma de um exclusivismo vesgo, irresponsável, sob o pretexto de "não se aliar a partidos burgueses", pela quebra e inviabilização da unidade democrática e popular.

Mas aí reside, nas condições atuais, o principal problema prático da revolução brasileira. As enorme tarefas que se colocam nesse âmbito jamais serão cumpridas se as forças de vanguarda não promoverem ampla união do povo brasileiro, à base de um programa de caráter nacional, democrático e popular, apontando o rumo do socialismo. Nesse sentido, coerência significa envidar o máximo de esforços para superar preconceitos, deixar à margem exclusivismos partidistas, o que absolutamente não implica renúncia à identidade político-ideológica de cada corrente.

A atuação política dos comunistas tem-se norteado por esse objetivo. Visando a abrir um rumo progressista para o país, participaram das lutas contra a ditadura militar, sob todas as formas – da resistência armada ao comparecimento com o voto no Colégio Eleitoral que pôs fim à ditadura – contribuíram com proposições concretas para elaborar uma carta constitucional democrática. No período de transição posterior à queda do regime militar fizeram flexões para neutralizar e isolar a direita. E ultimamente foram força destacada para promover a unidade das correntes de esquerda, o que tomou forma na Frente Brasil Popular e na campanha de Luís Inácio Lula da Silva em 1989.

O período atual que atravessa o movimento revolucionário no Brasil e no mundo é, sem sombra de dúvidas, difícil. A perspectiva socialista não se descortina com nitidez, a não ser no plano teórico. As condições concretas são em grande medida hostis, dada a ofensiva brutal das forças da reação contra a revolução e o socialismo. Mas o momento não comporta perplexidade nem desnorteamento. Carece da afirmação da experiência revolucionária para que, baseado no rico patrimônio acumulado, se possa avançar num plano superior. É nesse sentido que o resgate da coerência é um elemento útil, penoso enfrentamento com a realidade, jamais motivo para bravata.

* José Reinaldo Carvalho é editor do jornal A Classe Operária.

EDIÇÃO 18, JUN/JUL/AGO, 1990, PÁGINAS 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34