Signos e ideologia na obra S. Bernardo
A análise da expressão temática e da problemática ideológica em São Bernardo é bastante importante. A narrativa faz-se em perspectiva interna, principalmente, sendo Paulo Honório, narrador-protagonista, o encarregado de introduzir o leitor no microcosmo da fazenda São Bernardo, a qual republica o mundo maior que é o agreste nordestino. Trata, portanto, o romance de um dos aspectos proeminentes da ficção de 1930 no Brasil: a preocupação de criar um discurso que oscilasse entre o literário e o sociológico documental, detendo-se, para isso, em segmentos delimitados da realidade e procurando aproveitar o regional. Realmente, Graciliano Ramos usa esse esquema, mas não fica nele somente, como ocorreu com outros romancistas da época; vai além: o narrador, em São Bernardo, submete o contexto social ao seu drama íntimo. Por esse motivo o discurso narrativo, no romance em questão, não privilegia a visão onisciente, mas recorre a ela para insinuar a subjetividade, parecendo oscilar entre a representação objetiva e subjetiva.
A leitura semiótica de São Bernardo, em termos de temática e ideologia, apóia-se em signos e elementos. Segundo Carlos Reis (1), a temática e a ideologia são projetadas no discurso por meio de recursos específicos e, por não possuírem uma vinculação exclusivamente literária – são códigos para-literários –, apresentam-se por vezes dotados de feição difusa. Desse modo, para análise, vão se considerar os signos temáticos e a expressão ideológica.
A expressão temática em São Bernardo apóia-se nos signos: "reificação", "opressão", "destruição", além de outros, secundários, que emergem na sintagmática narrativa. Esses signos encontram-se estruturados hierarquicamente e a leitura crítica do texto permite divisar de imediato a importância da reificação, pois é a partir deste que decorrem todos os outros signos temáticos (2).
Numa tentativa de sistematizar as relações hierárquicas estabelecidas no sistema temático de São Bernardo, tem-se.
Explicitando-se as relações apresentadas esquematicamente acima e estabelecidas entre as diferentes recorrências temáticas, pode-se dizer que todo o drama de Paulo Honório está radicado na reificação de sua vida e dos valores estabelecidos pelo seu desejo de posse de São Bernardo. Antonio Cândido (3) diz que, a partir do sentido reificador, o narrador-personagem reduz tudo a objeto. É assim que, na recapitulação final, Paulo Honório vê seus empregados como "bichos":
"Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como o Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo. Bois mansos" (p. 182). Relacionado diretamente à reificação e, num mesmo plano, encontra-se o signo temático opressão. Paulo Honório, em São Bernardo é o elemento dominador quer pela supremacia econômica, quer pelo estatuto de "fazendeiro", dono da terra, que o torna superior aos outros. Sua personalidade forte é marcada pelo "sentimento de tirania dominante" (3). É justamente a tirania de Paulo Honório que faz com que a opressão assuma, no romance, diferentes formas: desde a física, verificável no tratamento que ele dispensa aos empregados, até a opressão ao nível das vivências psicológicas (humilhações que faz passar Madalena, Luís Padilha, D. Glória etc.).
É importante considerar, no nível da opressão, a exploração. Latente em toda a história da conquista e desenvolvimento da fazenda São Bernardo, a exploração pode ser explicitada nas relações senhor / empregados. A supremacia econômica de Paulo Honório o faz ver os empregados apenas como fontes de lucro, exigindo deles o máximo trabalho e dando-lhes a menor remuneração possível. Concretizada, nesse nível, a opressão e, consequentemente, o processo de reificação, não se pode dizer que o mesmo aconteça, entretanto, nas relações entre Paulo Honório e Madalena, porque Madalena é a força antagônica que se vai opor à tirania do dominante, procurando atenuá-la através de sua participação na vida da fazenda (propõe melhorias salariais, novos métodos de ensino e alimentação para os empregados).
Nesse momento, quando desperta a força antagônica de Madalena, surge, no texto, a tragédia do ciúme. Paulo Honório, sentindo-se impotente ante a vontade de Madalena, torna-se inseguro referente aos sentimentos e atitudes da mulher. A partir daí, inicia-se o processo de degradação de Madalena e do próprio Paulo Honório, que resulta na destruição total (morte) de Madalena, que não se submete à tirania e ao sentimento de posse do marido, e na auto-destruição (deixa de interessar-se pela fazenda) e alienação social de Paulo Honório (não participa da Revolução de 1930, é alijado do sistema), que o faz viver derrotado e em solidão, conforme o declara no final do livro:
"Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. (…) É horrível! Se aparecesse alguém (…) Estão todos dormindo. (…) E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse alguns minutos” (p. 188).
As relações que se articulam entre as personagens centrais, Paulo Honório e Madalena, revelam o significado ideológico referido ao tipo de relações que eles mantêm entre si e com a respectiva sociedade.
As duas personagens estão inseridas numa classe social dominante, a burguesia rural sertaneja. Ascenderam a essa classe social por caminhos diferentes: um venceu através da força, da crueldade; a outra, pelo esforço intelectual e pelo casamento. Insinua-se, pois, através da caracterização e formação das personagens, a noção de que elas, apesar de unidas, possuem interesses diferentes e, por isso, conflituosos.
Participantes de um contexto em que as relações sociais apoiavam-se no par antitético dominador / dominado, vê-se que o conflito se instala na classe dominante (Paulo Honório X Madalena), sendo que Paulo Honório reduplica a ideologia vigente e Madalena representa a contra-ideologia. Explica-se: Paulo Honório, de maneira contraditória, é, simultaneamente, o representante da burguesia rural com todo o seu envolvimento econômico e político, e também o "emblema do capitalismo nascente no Brasil" (4), porque moderniza a fazenda São Bernardo, implementa novos tipos de cultura e pecuária, valoriza o capital. É o dominador. O sentimento de posse, o desejo de apropriação de todos os bens, leva-o a sua reificação, condicionando seu modo de ver o mundo e estruturando sua personalidade. Agente reificador, Paulo Honório, "coisifica" tudo e todos que o cercam, e constrói seu mundo sob um sistema de valores estereotipados, que definem, através de uma falsa consciência pragmática, o sentido da ação. Entretanto, Paulo Honório não consegue reificar Madalena. Essa que deveria fazer parte do paradigma "dominado", insubmete-se. A insubordinação na mulher instala a insegurança no sistema machista que regulava a sociedade (semifeudal) burguesa de Alagoas. A insegurança do sistema é revelada pelo personagem Paulo Honório. Surge, assim, a crise não só no casamento, como também no "status quo" da fazenda, reduplicando a crise social que envolve o país.
Destruição total de Madalena, que não se submete à tirania do marido
Madalena pretende ser a consciência dos trabalhadores e do próprio marido. Revolta-se por isso contra a submissão dos operários, contra a prepotência do marido, contra a ordem estabelecida na fazenda São Bernardo, intervindo para a construção de um mundo melhor. Consequentemente, é contraideológica, pois não aceita as regras que conformam o mundo rural do sertão nordestino. E, entretanto, é esmagada pelo processo reificador, pois não aderindo ao projeto de opressão e sem condições de resgatar os oprimidos, suicida-se. Desse modo, a esperança de reestruturação do sistema instalado na fazenda é frustrada de modo violento, ocasionando a dissolução desse organismo e o afastamento de outras personagens: D. Glória, Seu Ribeiro, Luís Padilha que, conscientizados da opressão, rompem com o elemento dominador (Paulo Honório).
Outro signo que apresenta explícitas implicações ideológicas é o discurso do narrador. A narrativa é conduzida por um narrador que se encontra no interior do universo narrado. Ele, dada a sua posição retrospectiva, confere às personagens um sentido definido e acabado. Importa salientar, entretanto, que, mesmo empenhado em definir os elementos que constituem o universo narrativo, o narrador intervém, interrompe a narrativa. Tais intervenções assumem feição de comentário ou questionam o leitor, permeando a ideologia, como acontece no capítulo 19:
"(…) para que me serve essa narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever” (p. 154).
A narrativa serve, principalmente, para mostrar que, após a crise (ciúme, morte de Madalena, alijamento), Paulo Honório tem consciência do processo reificador do qual era o agente maior e que o deixou na solidão. Assim, as intervenções que rompem com a linearidade narrativa denunciam as motivações profundas do comportamento das personagens. É através delas que o narrador deixa irromper a subjetividade e desnuda o caráter persuasivo de seu discurso.
Juízos de valor, expressos pelo narrador, vão, pouco a pouco, esclarecendo suas opções ideológicas. Mas o momento em que elas surgem com maior clareza corresponde ao capítulo 36, quando o narrador faz uma revisão de sua vida, refletindo sobre o processo de reificação. Formulada pela ótica de Paulo Honório escritor, esta reflexão resume a posição de auto-análise e auto-crítica do narrador, que se hoje (presente da narrativa) tem uma atitude de recusa ao sentimento de posse e ao processo de reificação que governou toda a sua vida, não apresenta mais condições para a transformação da personagem e, por isso, ao final da narrativa, quando o narrador diz:
"(…) vou ficar aqui, às escuras, até não sei que horas, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos" (p. 188),
fica o esvaziamento interior, o aniquilamento em vida, não a morte; a apatia. Paulo Honório escritor acabou a sua função: narra os fatos, escreve o livro, e encontra-se agora apático numa sociedade que se desagrega.
* Maria Luiza Ritzel Remédios é doutora em Letras. Professora do Programa em Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Notas Bibliográficas
(l) REIS, Carlos. O discurso ideológico do neo-realismo português. Coimbra, Almedina, 1983.
(2) Sobre o tema unificador de São Bernardo, João Luiz Lafetá, no ensaio "Mundo à revelia", diz: "partindo da relação indissolúvel entre ação e personagem encontramos algumas características que, subordinadas ao tema unificador (sentimento de propriedade), constroem o universo reificado do romance e levam à destruição final". In: RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 3-4ª ed., Rio de Janeiro, Record, 1979.
(3) CÂNDIDO, Antonio. Ficção e Confissão. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956, p. 26.
(4) LAFETÁ, João Luís. Op. cit., p. 202.
(5) Idem. Ibidem.
EDIÇÃO 18, JUN/JUL/AGO, 1990, PÁGINAS 62, 63, 64, 65, 66