Ernst Snapper, em artigo publicado no Brasil pela revista Humanidades (n. 8, setembro de 1984) e intitulado "As três crises da Matemática: o Logicismo, o Intuicionismo e o Formalismo", trata das tentativas feitas no final do século XIX e início do século XX de fundamentação da ciência matemática pelas tais correntes. O objetivo de Snapper é mostrar que essas “escolas” se baseavam em correntes filosóficas bem definidas, a saber, o realismo, o conceptualismo e nominalismo, respectivamente.

Após uma sucinta retomada das proposições de cada uma das tendências acima mencionadas, pretendemos indicar um elemento que sugere que as "três crises" mencionadas no artigo referido são, na verdade, uma só crise pela qual passa a matemática, articuladamente, como não poderia deixar de ser, com a crise do conjunto da sociedade moderna (instaurada com a revolução burguesa) – este elemento é a contradição.

A matemática é, também ela, construída entranhadamente no processo histórico de vir-a-ser humano e, característico desse processo, constituída de continuidades e rupturas que dão novo caráter à nova continuidade (Tenório, 1987). Ora, a matemática idêntica a si mesma, a matemática dos constructos baseados no princípio de identidade, a matemática com este caráter está transmutando-se numa outra matemática da qual brota a contradição. Se as rupturas na matemática estão imbricadas nas rupturas civilizatórias, então pode-se sugerir que estamos passando por um período de descontinuidade no processo civilizatório. Outro ponto que se destaca, a partir das considerações anteriores, é a interpenetração e inseparabilidade da matemática e da realidade: se a lógica formal e os formalismos matemáticos não podiam dar conta da realidade, constituindo-se num reducionismo ingênuo ou perigoso – como se constata nos positivismos, racionalismos e formalismos que impregnavam e ainda impregnam várias ciências – por outro lado, a descoberta da contradição da matemática, como será visto, aproxima teoricamente o que na prática é uma só totalidade.

Antes, porém, de voltarmos a estas questões, pensamos ser útil esclarecer alguns pontos básicos da lógica tradicional, um intróito formal.

Difícil expressar em termos lógicos todas as proposições da matemática

O princípio lógico fundamental é o princípio da identidade: tudo é idêntico a si mesmo. Em fórmula, A é A. Por exemplo, podemos dizer a árvore é árvore. Este princípio é por demais evidente por sua elementaridade tautológica e assusta que tenha que ter formulado. Contudo, é dele que derivam dois princípios tidos como a base da lógica e, portanto, de "bom raciocínio": o princípio da não-contradição e o princípio do terceiro excluído. O primeiro deles, como o nome indica, afirma que não deve existir contradição no raciocínio: A não é não-A e a árvore não é não-árvore. O princípio da não-contradição é, na verdade, a forma negativa do princípio da identidade, ou seja, afirma que algo não pode ser ele mesmo. O segundo deles, o princípio do terceiro excluído é a forma disjuntiva do princípio da identidade: uma coisa é ou não é. Entre estas duas possibilidades contraditórias não há possibilidade de uma terceira que, assim, fica excluída. Formalmente é assim expresso: A é B ou A não é B; como exemplo podemos, alimentados deste princípio, dizer que ou aquilo é árvore ou não é árvore.

Aristóteles é tido, já há 2.500 anos, como o pai e a mãe que deram à luz a tais princípios.
Muito bem, registrando-se o mérito de Machado (1987) em muitas das considerações seguintes, passemos agora às correntes prometidas.

O Logicismo abraçou-se ao princípio da possibilidade de redução de proposições verdadeiras não óbvias a outras "obviamente" verdadeiras: a matemática é redutível à lógica (normal, ou formal, ou aristotélica).

A obra fundamental deste projeto logicista foi o Principia Mathematica de Russell e Whitehead. Pretendiam os D. Quixotes da lógica mostrar que se podem expressar em termos lógicos todas as proposições matemáticas e que todas as proposições matemáticas verdadeiras são verdades lógicas. Machado (1987) assim se expressa ao mostrar as dificuldades de tal empreendimento:

"A lógica elementar contém regras de quantificação que provêm a matemática de instrumental eficiente quando se trata de frases onde esteja bem-estabelecida a caracterização do indivíduo e do atributo, distinção essa que sabemos de raízes aristotélicas. Entretanto, ela não admite, sem enfrentar dificuldades, regras de quantificação para expressões bem-formadas onde atributos são tratados como indivíduos. Assim, frases como 'todos os indivíduos i têm o atributo A' ou 'existe um indivíduo i que tem o atributo A' não oferecem problemas; mas frases como 'todos os atributos A têm o atributo B' ou 'existe um atributo A que tem o atributo B' conduziriam a dificuldades lógicas. E não adianta pensar em toda a pluralidade determinada por um atributo como um novo indivíduo: aí justamente residem os motivos das contradições".

O paradoxo de Russel pode ilustrar melhor a citação acima:

Suponha-se que queiramos organizar um catálogo dos livros de uma biblioteca. Chamaremos de ordinário qualquer catálogo que não se inclua entre os livros indicados por ele mesmo. Caso contrário, ou seja, se nos livros catalogados se incluir o próprio catálogo, então este será chamado extraordinário. Ora, nosso suposto catálogo é simples de se definir, ordinário se não se incluir, extraordinário se se incluir. Mas, e hoje dizem os lógicos, sempre há um mas, se organizarmos o catálogo de todos os catálogos ordinários, este será ordinário ou extraordinário? Observem o paradoxo: se ele for ordinário, não pode se incluir pela definição deste atributo, mas deve se incluir porque é ordinário (e, lembre-se, nós dissemos que queríamos organizar o catálogo de todos os catálogos ordinários); por outro lado, se ele for extraordinário deverá se incluir e, desta forma, incluindo-se, deve ser ordinário porque ele só inclui os ordinários! Eis a paradoxal surpresa.

Tentam erigir a lógica como método para ter todas as conclusões

Não é demais lembrar que os paradoxos lógicos não são apenas truques bobos ou inocentes: se a lógica aristotélica permeia a linguagem natural e reciprocamente (o que é visto nas origens históricas da lógica formal), além de permear, continuando a idéia anterior, o pensamento – este último, dito, não por graça pensamento lógico – então todo raciocínio matemático, científico e filosófico está entremeado por estes gracejos.

Muito bem, estes paradoxos abalaram o projeto logicista que, ad hoc, acrescentou novos axiomas salvadores que, como foi por muitos matemáticos evidenciado, não representavam necessidades lógicas estritas (por exemplo, a distribuição das entidades da Teoria dos Conjuntos em tipos hierarquizados: assim, sentenças que propugnem a pertinência entre entidades hierarquizadas que não sejam uma imediatamente superior à outra são, aqui está a hipótese ad hoc, mal construídas e não fazem sentido, tal como o paradoxo de Russel).

O projeto logicista se configura, portanto, inviável: a matemática (e por extensão, a realidade) não se reduz à lógica formal porque esta postula o princípio da não-contradição.
Falemos agora um pouco sobre o formalismo, enraizado em Kant (1724-1804). Como se sabe, a despeito de muitos “a priori” kantianos, as evidências matemáticas foram buscadas pelo filósofo germânico na percepção.

Nesta concepção, a lógica, tanto na matemática quanto em qualquer outra área do conhecimento, desempenha o mesmo papel de descrição das estruturas dos dados da percepção: assim, os axiomas matemáticos não são, como queriam os logicistas, princípios lógicos. A proposta formalista, como se observa, não é reduzir a matemática à lógica, mas erigir a lógica como o método (a-histórico) de obter todas as conclusões legítimas em qualquer argumentação e sobre qualquer conteúdo. O matemático David Hilbert (1862-1943) propôs um programa formalista a partir das idéias de Kant: (1) a matemática é descritiva dos objetos e elabora construções, sendo extra-lógica; (2) a lógica é o instrumento articulador das teorias formais construídas com os objetos matemáticos; (3) o trabalho matemático deve ser o de elaborar teorias formais consistentes, sempre mais abrangentes, até se conseguir sua formalização completa.

Para a melhor compreensão deste programa formalista, é necessário esclarecer o significado de teoria formal, consistência e completude: uma teoria formal é construída a partir de termos primitivos (que pelas propostas iniciais deveriam ser objetos empíricos) e regras de formação de fórmulas (os axiomas), além das regras de inferência (lógica) necessárias para a formação dos teoremas.

Neste ponto, é relevante ressaltar que com o grande sucesso das geometrias não-euclidianas que aparentemente não tinham suporte no mundo empírico, houve uma supervalorização dos sistemas formais abstratos ou não-interpretados. Desta forma, enfatizou-se muito mais a consistência das teorias formais que um possível isomorfismo entre os mundos matemático e empírico.

No que então essa tal consistência consiste? Uma teoria formal é dita consistente se, dentro dela, é impossível demonstrar-se uma proposição e, ao mesmo tempo, a negação da proposição. Em outras palavras, se numa teoria formal não podemos ter uma proposição verdadeira e falsa ao mesmo tempo, então ela é consistente. Note-se que a consistência refere-se ao princípio da não-contradição.

Os formalistas imbuídos do propósito de verificar a consistência dos sistemas formais, lançavam-mão de dois procedimentos: o primeiro é procurar uma interpretação dos termos primitivos na qual todos os axiomas se revelam evidentemente verdadeiros e, em consequência, também seriam verdadeiros todos os teoremas (logicamente deduzidos dos axiomas); o segundo é a verificação da consistência relativa, ou seja, interpreta-se um sistema formal em outro sistema formal e, se o segundo for verdadeiro, o primeiro também será. A dificuldade do primeiro procedimento é a verificação da veracidade dos axiomas interpretados; a limitação do segundo procedimento é que o mesmo só demonstra a consistência relativa a outro sistema formal: se se quer a consistência absoluta, deve-se provar absolutamente a consistência de algum deles.

Os matemáticos formalistas provaram a consistência, por exemplo, das geometrias não-euclidianas em relação à geometria euclidiana; é possível também mostrar-se a consistência destas em relação à Teoria dos Números, o que importa em especial para os propósitos deste artigo, pois foi justamente essa Teoria que os logicistas tentaram, sem sucesso e com os resultados já discutidos aqui, reduzir às leis da lógica, resultando em contradições.

Resta-nos agora esclarecer a questão da completude: uma teoria formal é completa se toda fórmula construída de acordo com as regras de formação da teoria é decidível, ou seja, verdadeira ou falsa, a partir dos axiomas desta teoria. Compara-se com o princípio do terceiro excluído.

Kurt Gödel fulminou a proposta dos formalistas de excluir as contradições

Como vimos, os formalistas desejavam que os sistemas formais, assim como toda a matemática, fossem consistentes e completos. Mas, em 1931, Kurt Gödel (1906-1978), jovem matemático então com 25 anos de idade, em um pequeno artigo "Über formal unentscheidbare Sätze der Principia Mathematica und verwandter Systeme", estabeleceu dois resultados fulminantes para a proposta hilbertiniana.

O primeiro resultado dos trabalhos de Gödel, relativo à consistência dos sistemas formais, mostra que não é possível provar que qualquer teoria matemática que inclua a aritmética não contenha contradição. Basta que uma teoria matemática faça uso da aritmética, o que acontece em grande parte das teorias “interessantes”, para que não possamos demonstrar sua consistência, ou seja, a ausência de contradições.

Essa impossibilidade é intrínseca – não é um resultado não demonstrado, que em outro momento histórico poderia vir a ser efetivamente demonstrado, mas, pelo contrário, existe a prova de Gödel da impossibilidade de se mostrar a ausência de contradições.

O segundo resultado fundamental dos estudos de Gödel é a demonstração da incompletude dos sistemas formais; pode-se construir, a partir das regras de formação de sentenças bem construídas deste sistema formal, enunciados que não são decidíveis, ou seja, não se pode provar se são enunciados verdadeiros ou enunciados falsos usando-se axioma e teoremas do próprio sistema.

Em síntese, os resultados extraordinários de Gödel são: (1) Uma prova absoluta de consistência para sistemas abrangentes (por exemplo, que contenham a aritmética) é muitíssimo improvável e, seguramente, dentro do próprio sistema impossível. (2) É sempre possível construir enunciados, a partir das regras de uma teoria formal, que não são dedutíveis do conjunto de axiomas da tal teoria e, mais ainda, com qualquer conjunto aumentado finito de axiomas, é ainda sempre possível construir, dentro desta teoria formal, uma nova proposição indecidível.

O segundo resultado, sempre considerado mais importante por matemáticos, joga por terra em última instância o princípio do terceiro excluído; o primeiro deles põe em xeque o princípio da não-contradição. Gödel usa os recursos da lógica para demonstrar a impossibilidade do programa formalista: é das entranhas da lógica formal que nasce a contradição que a nega, filha rebelde que promete novos passos na dança do conhecimento.

Finalmente, tratemos de intuicionismo. Também com raízes kantianas, foi fundado por Brouwer (1881-1966). Para os intuicionistas, a matemática consiste na construção de entidade abstrata, através da intuição dos matemáticos, e que prescinde da redução à lógica (que, todavia, permeia a sua linguagem).

Para os intuicionistas, os entes matemáticos não têm preexistência ideal (no sentido platônico) e nem surgem do empírico: são construídos intuitivamente passo a passo, em um mundo à parte, matemático.

Os matemáticos aparecem assim como seres mágicos, dotados de poderosos anéis da intuição que os tornam os únicos homens ou mulheres capazes de criar um mundo diferente, matemático, apartado da realidade concreta, que não se relaciona com o (reles) mundo exterior. Pensamos que esta constatação é a crítica fundamental ao intuicionismo.

Contudo, há de se destacar uma contribuição positiva desta corrente, entre outras que possivelmente existam, para o entendimento do dialético processo de produção da ciência matemática – o princípio intuitivista de construtibilidade dos objetos matemáticos leva, nas palavras do próprio Brouwer, à rejeição da lei do terceiro excluído: “A justificação lógica da matemática formalista, mediante uma prova de sua coerência, contém um circulos vitiosus porque esta própria justificação pressupõe já a correção lógica do enunciado de que a correção de uma proposição segue de sua coerência, isto é, pressupõe a correção lógica da lei do terceiro excluído”. (apud Machado, 1987: 40).

Para os intuicionistas, é possível a construção de proposições com sentido mas… nem verdadeiras… nem falsas. Brouwer, antes de Gödel, intuitivamente mostrou a inviabilidade de formalização da matemática apontando exatamente o que é considerado nevrálgico na prova do segundo: a lei do terceiro excluído, a nosso ver inextrincavelmente ligada à lei da não-contradição, gatos do mesmo saco da identidade.

As três crises da matemática são na verdade a crise da lógica formal

Nas tentativas de fundamentar a matemática, os logicistas tropeçaram nos paradoxos, os formalistas demonstraram que é possível não tropeçar neles e os intuicionistas excluíram o terceiro excluído, apesar de, infelizmente, terem se distanciado da realidade.

Portanto, estas três crises da matemática, evidenciadas no logicismo e intuicionismo, são na verdade uma e só uma crise – a da lógica formal.

O grande significado dos teoremas de Gödel, queremos arriscar, é de caráter epistemológico: não podemos identificar os raciocínios rigorosos, matemáticos, com o raciocínio formal. A natureza, que inclui o homem, tem a contradição como qualidade, a contradição que origina seu movimento e produz a história. Portanto, os apropriados recursos do pensamento do homem, que é natureza e história, não se limitam aos recursos formais.

Aprisionada, mutilada e morta em cárceres formais, qual Fênix, ressurge, em meio às cinzas da lógica, a própria contradição. Renasce afirmando seu caráter negado, afirmando o movimento que está no ventre da natureza e do homem e, indissociável destes, da matemática.

Podemos finalizar dizendo que os resultados de Gödel constituem mais um indicador da intimidade entre matemática e realidade: é porque a matemática não se reduz à lógica formal, que ela se aproxima mais da realidade. É a realidade da contradição da matemática que permite perceber a natureza matemática da realidade contraditória. As relações na natureza são matemáticas, e vice-versa, porque ambas constituem uma só totalidade na qual está mergulhada a contradição.

Junto com outros, este elemento aqui destacado, a contradição, vai pintando na matemática como na vida, parecendo desenhar (e colorir) os contornos de mais uma inflexão nas curvas do processo de civilização da humanidade.

Robinson Moreira Tenório é graduado em matemática na USP e mestre em Educação (UFBA), professor assistente do departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, pesquisador do Instituto de Estudos e Pesquisas em Educação Anísio Teixeira (IAT).
Publicado originalmente em Revista Estudos IAT (Instituto Anísio Teixeira), Salvador, 2 (4): 269-274, dezembro de 1989. Esta versão foi revisada e ampliada pelo autor especialmente para a Revista Princípios.

Bibliografia
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pensadores).
MACHADO, Nilson José. Matemática e Realidade. São Paulo, Cortez, 1981.
NAGEL, Ernest & NEWMAN, James. Prova de Gödel. São Paulo, Perspectiva. 1973.
SNAPPER, Ernst. “As três crises da matemática. O logicismo, o intuicionismo e o formalismo”. Humanidades. Brasília, UnB, n. 8, julho/setembro-1989.
TENÓRIO. Robinson Moreira. “As matemáticas ou as revoluções da matemática”. Boletim, UFBA-FACEO Salvador, 3 (3). 111-118. Abril/julho de 1988.

EDIÇÃO 19, NOVEMBRO, 1990, PÁGINAS 70, 71, 72, 73