“A questão do Estado adquiriu a máxima importância e, poderíamos dizer, transformou-se na questão mais aguda, no foco de todas as questões políticas e todas as controvérsias políticas da atualidade”.
V. I. Lênin

Estas palavras foram proferidas pelo dirigente da revolução russa em sua conferência “Sobre o Estado”, realizada na Universidade Sverdlov, em 11 de julho de 1919. A centralidade da questão do Estado, na época, devia-se ao impacto internacional da vitória da revolução soviética e à perspectiva (ou esperança) de que a onda revolucionária se alastrasse para a Europa em função da destruição causada pela Primeira Guerra Mundial. Hoje, o colapso do antigo campo socialista formado em torno da URSS e a ofensiva política, econômica e ideológica do neoliberalismo em todo o mundo acentuam a importância do debate teórico sobre o Estado (no capitalismo e no socialismo).

O ponto de partida para a nossa análise é a indagação formulada pelo grande pensador político liberal-progressista da Itália contemporânea, Norberto Bobbio – existe uma teoria marxista do Estado? (1). Para as pessoas formadas na tradição do pensamento marxista, certamente parece uma pergunta estranha, para não dizer tola, ou até mesmo ignorante. Mas ela tem sua razão de ser. A verdade é que Marx não chegou a escrever nenhuma grande obra que sistematizasse a sua teoria sobre o Estado. Sabe-se que, no seu projeto de trabalho, após terminar O Capital (onde procurou sistematizar as suas conclusões teóricas no terreno da economia política), ele pretendia escrever uma obra que apresentasse, de forma mais sistemática e abrangente, as suas formulações teóricas sobre o Estado (2). Infelizmente, não chegou nem mesmo a terminar o próprio Capital. Apesar disto, há um processo claro de elaboração de uma teoria coerente e integrada sobre o Estado ao longo dos escritos de Marx (e Engels). Vamos examinar, em seguida, as diferentes fases da evolução do seu pensamento sobre esta questão.

A preocupação com a relação entre Estado e sociedade é um dos temas centrais dos primeiros escritos de Marx, do final dos anos 1830 a meados dos anos 1840 do século passado. Este período marca a gradativa ruptura de Marx com a concepção hegeliana do “Estado ético” como expressão máxima da “liberdade humana”. Seus escritos mais importantes nesta fase são a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel (que contou, ainda, com uma versão mais resumida publicada em separado como Introdução) e A Questão Judaica. O interessante é que, mesmo não tendo rompido por completo com o idealismo da filosofia clássica alemã, Marx já desenvolve, aqui, uma série de críticas fundamentais ao pensamento político liberal, que serão retomadas e redimensionadas mais adiante, quando lançar as bases da sua própria teoria. Assim, um tema recorrente nos escritos deste período é a idéia de que o liberalismo só concebia a emancipação humana do ponto de vista político (nas instituições políticas) e não na vida real, cotidiana, onde o que predominava eram as relações econômicas (esta era a esfera da “sociedade civil” para Marx, que seguia o conceito de Hegel). Tratava-se, portanto, de uma emancipação parcial, limitada e superficial (embora representasse um avanço em relação ao absolutismo).

Marx revela o Estado como entidade para garantir a propriedade

A segunda fase da reflexão marxista sobre o Estado cobre o período de gênese das bases da sua própria teoria – de 1844 a 1850. Os escritos mais importantes deste período são os seus Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Ideologia Alemã, a crítica a Proudhon formulada em Miséria da Filosofia e, finalmente, o já “lendário” Manifesto Comunista. Aqui, Marx opera uma autêntica revolução na teoria política (da mesma forma que, a seu tempo, os primeiros pensadores do liberalismo haviam revolucionado o pensamento político, rompendo com a justificação do poder monárquico pelo dogma do “mandato divino”). A novidade introduzida por Marx foi discutir a questão do Estado a partir da análise da divisão da sociedade em classes antagônicas. Como o Estado tem a função de garantir a propriedade (o que é defendido abertamente pelos autores clássicos do liberalismo, como Hobbes, Locke e, em “extensões mais moderadas”, Rousseau), trata-se de uma entidade de classe que conserva a dominação das classes proprietárias e reproduz a divisão da sociedade em classes.

Marx chega a esta conclusão rompendo com o “individualismo metodológico” que caracteriza as teorias do liberalismo (tanto político quanto econômico). Estas construíam as suas formulações partindo de indivíduos imaginários, abstratos, a-históricos, para discutir, a partir de modelos intelectuais, as consequências da sua associação ou inter-relação na sociedade. Especulando desta forma, eles passavam por cima do fato de que, na história da sua época, os indivíduos concretos, empíricos, reais, viviam em sociedades divididas em classes antagônicas, o que tornava o Estado (mesmo na sua forma mais democrática) não uma “expressão da vontade geral”, mas um órgão de dominação de classe (3).

Marx retomava, assim, em novas bases, a crítica ao liberalismo que já havia formulado nos seus primeiros escritos. A “liberdade, igualdade, fraternidade” do Estado burguês encobre, na verdade, a opressão, desigualdade e dilaceração de uma sociedade dividida em classes. Ele apontava a contradição teórica e política presente na própria essência do pensamento liberal (e que era insolúvel nos marcos do próprio liberalismo). Na nova abordagem introduzida por Marx, a verdadeira emancipação humana se daria com a conquista de uma nova sociedade sem classes (o comunismo), onde “o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos” (4). Dito de outra forma, a plena afirmação da individualidade humana exige a superação das relações sociais que negam o direito ao desenvolvimento individual para a maioria da sociedade (exige a superação da propriedade privada).

Esta abordagem teórica, introduzida por Marx, representa uma inovação revolucionária de profundo alcance histórico para o pensamento político. Ela revela como são inócuas as tentativas de alguns pensadores contemporâneos de percorrer o caminho inverso – redefinir o socialismo com base nos princípios democráticos do liberalismo (5). Marx e Engels não deixaram de enfatizar esta questão, como pode ser visto no seguinte trecho da carta de Engels a Bebel, comentando o programa que havia servido de base para a unificação do Partido Operário Alemão no Congresso de Gotha:

“A concepção da sociedade socialista como o reino da igualdade é uma idéia unilateral francesa, apoiada no velho lema de ‘liberdade, igualdade, fraternidade’ uma concepção que teve razão de ser como fase de desenvolvimento em seu tempo e em seu lugar, mas que hoje deve ser superada, do mesmo modo que tudo o que há de unilateral nas escolas socialistas anteriores, uma vez que só gera confusões, e porque, ademais, foram descobertas fórmulas mais precisas para expor o problema” (6).

Três passagens do Manifesto Comunista, de 1848, sintetizam o desenvolvimento da teoria política marxista na segunda fase das suas reflexões sobre o Estado:

– “O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra” (7).
– “O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” (8).
– “A primeira fase da revolução operária é o advento da classe operária como classe dominante, o advento da democracia. O proletariado afirmará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante” (9).

O aparelho estatal tem relativa autonomia diante das classes que representa

Cabem, aqui, alguns comentários sobre o significado, para a teoria política marxista, destas formulações do Manifesto. Muitas vezes, elas têm dado margem a leituras limitadas (tanto por autores “críticos” quando por “defensores” da teoria marxista). Estas leituras limitadas consideram que, para Marx, a relação entre a classe dominante na economia e o poder de Estado seria unívoca, direta e mecânica. Na verdade, a formulação citada acima lança os fundamentos da teoria política marxista, indicando, de maneira geral, o Estado como órgão de dominação de classe. Ele não está discutindo neste momento as formas históricas pelas quais a dominação de classe(s) se articulou e se articula com o poder de Estado. Não está, portanto, discutindo as mediações entre dominação econômica e dominação política que permitem uma relativa autonomia do aparelho de Estado em relação à(s) classe(s) dominante(s) (maior ou menor, dependendo das condições concretas de cada contexto histórico). Como veremos mais adiante, isto é feito em outra fase da sua reflexão sobre o Estado.

Outra leitura limitada é a que considera que, para Marx, o Estado capitalista não passava de um “comitê para gerir os negócios comuns da burguesia”, e conceberia, na verdade, a existência de uma burguesia compacta, unificada, sem contradições internas. Pelo contrário. Como bem observa Ralph Miliband (10), o mero fato de precisar de um “comitê comum” pressupõe a existência de profundas contradições e diferenças no seio da burguesia, que o “comitê” vai tentar “enquadrar” em função das necessidades maiores da reprodução do sistema. O êxito do “comitê” (Estado) nesta “empreitada” depende, uma vez mais, da evolução da luta política e econômica no contexto histórico de cada sociedade.

Por fim, cabe observar que, nas formulações do Manifesto, Marx ainda não qualifica que tipo de democracia estava associado ao “advento do proletariado como classe dominante, via revolução”. Ou seja, não entravam ainda na discussão de que espécie de instituições estatais o proletariado deveria adotar ao se “organizar em classe dominante”.

As instituições burguesas são viciadas contra os trabalhadores

Marx e Engels avançam no tratamento destas questões na terceira fase da sua reflexão sobre o Estado, a partir de 1850. O marco para o início deste novo período no pensamento político marxista foi a experiência da onda de revoluções contra o absolutismo que varreu a Europa de 1848 a 1850. Em geral, os processos revolucionários nos diferentes países tiveram o mesmo padrão de desenvolvimento (11). Num primeiro momento, a burguesia revolucionária se apoiava nos trabalhadores e no povo em armas para combater a reação absolutista. À medida que o processo revolucionário se radicalizava, sua direção era assumida por lideranças cada vez mais à esquerda.

Com o enfraquecimento do absolutismo e o surgimento do “proletariado” como força social independente no cenário político, a burguesia tendia a se recompor com o absolutismo (agora colocada sob sua direção) para isolar, desarmar e, em alguns casos, literalmente massacrar os trabalhadores insurretos.

Estudando esta experiência (da qual participaram diretamente), Marx e Engels chegaram à conclusão de que o proletariado, para levar adiante a sua revolução, não podia se valer da máquina de Estado da burguesia, porque as suas instituições estavam viciadas a favor das classes dominantes e contra os trabalhadores. Seria necessário “esmagar” a máquina de Estado da burguesia e erguer uma nova máquina de Estado “do proletariado”. Na análise deste processo, sobretudo na França, Marx produz duas obras magistrais que revelam a complexidade e a riqueza das formas de articulação da dominação de classe com o poder de Estado numa conjuntura histórica concreta – são os livros As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850 e O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Marx argumenta, inclusive, que em algumas situações históricas excepcionais pode se gerar um equilíbrio de forças na luta de classes que permita ao poder de Estado adquirir uma “certa independência” em relação às principais classes em contenda. Este seria o caso do bonapartismo francês que “jogava com os proletários contra a burguesia, e com esta contra aqueles” (embora, em última instância, assegurasse as condições de reprodução do capital) (12).

Com base na sua reflexão sobre as revoluções européias de 1848 a 1850, Marx elabora o conceito de “ditadura do proletariado” para caracterizar o Estado a ser montado pelos trabalhadores na sua revolução. Numa carta célebre escrita a Wedemeyer, em 1852, ele avaliava da seguinte forma a importância desta formulação teórica:

“No que me concerne, não me cabe o mérito de haver descoberto nem a existência das classes, nem a luta entre elas. Muito antes de mim, historiadores burgueses já haviam descrito o desenvolvimento histórico dessa luta entre as classes e economistas burgueses haviam indicado sua anatomia econômica. O que eu trouxe de novo foi: 1) demonstrar que a existência das classes está ligada somente a determinadas fases de desenvolvimento da produção: 2) que a luta de classes conduz, necessariamente, à ditadura do proletariado: 3) que essa própria ditadura nada mais é do que a transição à abolição de todas as classes e a uma sociedade sem classes” (13).

É fundamental distinguir conteúdo e forma da ditadura do proletariado

Vou me deter um pouco sobre este conceito de “ditadura do proletariado” porque até hoje, 140 anos depois da sua formulação, é o ponto mais incompreendido (ou conscientemente adulterado) da teoria marxista. Tomo a liberdade para contar um “caso” da minha história de vida pessoal para ilustrar a confusão que, em geral, é feita sobre este conceito. No período mais “quente” da revolução do 25 de abril em Portugal, em 1974, um dos fatos que mais me marcou ao chegar do Brasil (que vivia então, sob o tacão da ditadura militar) foi um curioso diálogo que testemunhei em plena Praça do Rossio, Lisboa (equivalente político da Cinelândia carioca ou da Praça da Sé paulistana). A Praça estava “tomada” por grupos de agitação e propaganda de um grupo maoísta que brandia a pomposa sigla MRPP (Movimento pela Reorganização do Partido do Proletariado). Aproximando-me de um dos grupos, ouvi um dos jovens agitadores bradar solenemente “Agora, temos de conquistar a ditadura do proletariado!”. Ao que uma senhora de idade, transeunte, prontamente retrucou “Mas, meu filho, acabamos de sair de uma ditadura e você já quer entrar noutra?”.

A confusão feita pela senhora, provavelmente neófita em termos de política, deve-se à confusão do conceito marxista com o sentido corrente que a palavra “ditadura” tem na linguagem do nosso dia-a-dia. Mas muita gente “culta”, muitas vezes até “especializada” ou “profissionalizada” nos meios políticos, acadêmicos e jornalísticos, insiste na mesma confusão. Por isso, sou forçado a frisar um ponto que faz parte do “bê-a-bá” da teoria marxista, mas que tanta gente insiste (de boa ou má fé) em ignorar até hoje.

O fato é que o conceito marxista de “ditadura do proletariado” não diz respeito à forma que o Estado dos trabalhadores deve assumir no socialismo. Aqui, é necessário distinguir na teoria política marxista entre a essência, o conteúdo e a forma do Estado. Já vimos acima como a inovação introduzida pelo pensamento político de Marx foi conceber o Estado como um órgão de dominação de classe. Neste sentido (e apenas neste), todo Estado é, na sua essência, uma ditadura. Já o conteúdo social do Estado é definido, na teoria marxista, pela(s) classe(s) que exerce(m) a sua dominação através do aparelho estatal.

Assim, o conceito de “ditadura do proletariado” significa, simplesmente, o poder de Estado (ditadura) da classe operária (do proletariado), que compõe, junto com os demais trabalhadores, a maioria da sociedade. Como o objetivo maior da revolução proletária é justamente superar a divisão da sociedade em classes, o Estado (como órgão de dominação) também deve ser superado. O reconhecimento de que mesmo o poder político dos trabalhadores (como qualquer poder político) é uma ditadura, mantém a perspectiva de que se trata de um Estado transitório a ser superado, e não perpetuado. Assim, embora o abandono do conceito marxista da “ditadura do proletariado” possa “soar” mais democrático, representa, na verdade, uma perspectiva mais conservadora e “autoritária”, pois implica adotar a ótica da perpetuação do Estado (e não a da sua “extinção”). Desta abordagem surge uma questão teórica e prática crucial para a teoria marxista – como organizar um poder político que tem como meta a sua própria dissolução? Isto nos remete à discussão sobre a forma do Estado. Historicamente, o poder político de uma determinada classe pode assumir as mais diferentes formas. Ou seja, a dominação de classe pode se concretizar através de diferentes tipos de instituições estatais. Referenciando-se na tipologia clássica das formas de governo feita por Aristóteles, Lênin desenvolve (no mesmo discurso do qual extrai a citação de abertura deste artigo) o seguinte raciocínio sobre esta questão, com base na teoria política marxista:

“No Estado escravista temos a monarquia, a república aristocrática, ou mesmo a república democrática. Na realidade, as formas de governo eram extraordinariamente variadas, mas a essência continuava a ser sempre a mesma: os escravos não tinham quaisquer direitos e continuavam a ser uma classe oprimida, não eram reconhecidos como pessoas. Vemos a mesma coisa também no Estado feudal (que era republicano ou monárquico)” (14).

Em nome de 5% da população, o Estado escravocrata tinha uma forma democrática
Na democracia ateniense da Antiguidade (referência maior de todos os autores defensores de “princípios democráticos” de governo), por exemplo, eram excluídos do poder deliberativo os escravos, as mulheres, as crianças, os inválidos etc. O que significa que menos de 5% da população podiam participar das deliberações. As decisões eram tomadas em assembléias gerais dos “homens-livres” da cidade-Estado. Por isso, embora a forma do Estado fosse democrática, continuava sendo um Estado escravocrata.

Por esta razão, não me parece válido, com base na teoria política marxista, conceber a democracia como um “’valor universal” (15). Na verdade, o próprio conceito de democracia assume dimensões essencialmente diferentes, dependendo do contexto histórico de cada sociedade e dos interesses de classe a que o conceito se vincula. Isto tanto do ponto de vista do significado do conceito, quanto das instituições estatais e das práticas sociais a ele associadas. O título deste artigo foi escolhido justamente para resgatar esta dimensão histórica da abordagem da democracia na teoria marxista, em contraposição a uma leitura que a concebe como um valor que transcende as diferenças de classe, de contexto histórico, de sistema social, de orientação teórica, de ideologia, etc.

Para Marx e Engels, esta questão tem profundas implicações para a discussão de como montar um poder de Estado dos trabalhadores orientado para a superação das classes e das diferenças de classe e, com isso, para a sua própria extinção. Como vimos antes, sua principal conclusão teórica, nesta terceira fase do seu pensamento político, é a de que o poder oriundo de uma revolução proletária não pode se apoiar nas instituições características do Estado burguês (mesmo na sua forma mais democrática), pois elas estariam “minadas” por um “viés estrutural” favorável ao capital. Era necessário erguer um novo poder proletário, com instituições e práticas políticas alternativas que lhe dessem um conteúdo democrático mais amplo e mais profundo. Isto não quer dizer que determinadas instituições da antiga máquina de Estado não pudessem ser preservadas. Mas estas teriam de ser “revolucionadas”, isto é, dotadas de um novo conteúdo correspondente ao novo poder de Estado erguido pelos trabalhadores. Desta forma, a democracia se “extinguiria” através da sua ampliação e do seu aprofundamento (e haja dialética…). Só que, até então, nem Marx nem Engels se aventuravam, ainda, a adiantar que tipo de instituições e práticas associariam a esta concepção revolucionária de democracia socialista”.

Marx indica o rumo das formas democráticas do poder com base na Comuna

A oportunidade histórica para isto foi dada pela Comuna de Paris primeira experiência de revolução proletária, que durou apenas dois meses em 1871. Marx sabia que a insurreição dos communards estava fadada à derrota. Chegou a descrevê-la como um “assalto aos céus”, caracterização carregada tanto de simpatia quanto de senso crítico. Mas imediatamente passou a estudar a experiência da Comuna com a maior atenção e carinho, pois pretendia extrair dela ensinamentos sobre o tipo de Estado a ser gerado pela revolução proletária. Sua reflexão a este respeito marca a quarta fase do desenvolvimento da sua teoria política, que cobre o período de 1871 até sua morte em 1883.

No exame da experiência da Comuna de Paris, Marx destacava justamente as medidas de cunho democrático mais profundo, como a substituição da polícia e do exército permanente pelo armamento geral do povo; a drástica redução da burocracia e repasse de responsabilidades para coletivos de trabalhadores e moradores; a redução dos vencimentos mais elevados da burocracia estatal ao nível do salário médio dos operários; o fim da figura do político profissional – dos representantes eleitos continuavam trabalhando nas suas profissões, de modo a impedir que fossem passadas leis que eles mesmos não sentissem na pele as consequências; a eleição de representantes com base no princípio do “mandato imperativo”, onde o mandato poderia ser imediatamente revogado caso o eleito não deliberasse de acordo com a vontade do povo que o elegeu; descentralização da justiça a partir da eleição de tribunais populares; a eliminação da falsa separação entre poder executivo e legislativo, compondo um único órgão representativo para dirigir a sociedade; etc. Ou seja, a Comuna instituiu um tipo de democracia qualitativamente diferente da democracia teoricamente preconizada pelo liberalismo ou “realmente existente” nos Estados capitalistas (tanto por seus valores, quanto por suas práticas e instituições).

Pode-se discutir se este conjunto de medidas é “realizável” nos Estados mais complexos de hoje. Não me parece que elas possam ser encaradas, nos marcos da teoria marxista, como uma “receita” pronta e acabada, a ser aplicada dogmaticamente em toda e qualquer experiência socialista futura. Isso significaria abstrair (no mau sentido – no sentido de ignorar) das particularidades que marcaram a tomada do poder pelos trabalhadores de uma única cidade no século passado, sem falar na própria efemeridade da experiência. Apesar disto, as análises de Marx e Engels sobre a Comuna indicam o rumo geral do tipo de solução que os trabalhadores devem encontrar para os desafios da criação de um Estado socialista. E, certamente, o rumo indicado pelo pensamento político marxista aponta para a necessidade de consolidar e ampliar formas democráticas (e não ditatoriais) de poder político.

Os trabalhos mais importantes de Marx sobre a questão do Estado, neste período, foram os manifestos da Internacional sobre a guerra franco-prussiana e a Comuna de Paris (escritos no calor dos acontecimentos e reunidos, posteriormente, no livro A Guerra Civil na França) e as suas observações críticas sobre o programa de unificação do Partido Operário Alemão que foram publicadas, postumamente, no texto Críticas ao Programa de Gotha. Engels, nestes anos, escreveu o livro Anti-Dühring (algumas partes do qual foram separadas e publicadas com o título Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico) que contém importantes formulações teóricas sobre o Estado capitalista, indicando, inclusive, a sua tendência a uma intervenção crescente na economia e as implicações econômicas, sociais e políticas disto para o movimento operário e para a luta socialista.

A quinta e última fase de elaboração da teoria política original marxista cobre o período da morte de Marx, em 1883, à morte de Engels, em 1895. O trabalho mais importante desta fase é o livro de Engels A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, escrito um ano após o falecimento do seu grande amigo e camarada. Vimos, anteriormente, como Marx havia pretendido produzir uma obra de maior fôlego sobre o Estado, sistematizando o conjunto das suas formulações teóricas sobre o assunto. Baseado nas quatro décadas de reflexão teórica conjunta sobre a questão, e nas extensas notas feitas por Marx sobre o livro Ancient Society do antropólogo norte-americano Lewis H. Morgan (que havia chegado às conclusões básicas do materialismo histórico por um caminho inteiramente próprio e independente, sem nunca ter tido contato com Marx e Engels ou suas obras), Engels escreveu este livro, que ele mesmo chama de “execução de um testamento”. A grande contribuição da obra é traçar o processo de gêneses histórica do Estado, a partir da dissolução das comunidades primitivas e do surgimento da sociedade de classes. Engels ainda introduziria importantes reflexões teóricas sobre o Estado e a luta revolucionária na sua introdução de 1891 ao livro A Guerra Civil na França e na sua introdução de 1895 ao livro As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850.

Carlos Nelson Coutinho argumenta que nesta última fase, Engels teria reavaliado algumas formulações iniciais da teoria política marxista, chegando à conclusão de que:
“Se a luta da classe operária pelo poder (e o exercício do seu próprio poder) ocorre nos quadros de uma república democrática, modifica-se de modo mais ou menos substancial a idéia de que a transição para o socialismo implica a criação de um contrapoder armado dos proletários e a destruição violenta de toda a velha máquina do Estado” (16).

Seu argumento parece indicar que Engels, ao fim da sua vida, estaria evoluindo para formular teoricamente a possibilidade de o proletariado conquistar e construir o socialismo através das instituições democráticas geradas no âmbito do Estado capitalista a partir da própria luta operária (o sufrágio universal, os partidos políticos de massa, etc). Após ler e reler os trabalhos de Engels do período, me parece, sinceramente, que essa é uma leitura “forçada”. Um dos problemas é que o texto de Carlos Nelson pula das formulações de Marx e Engels direto para os últimos escritos de Engels, passando ao largo de quatro décadas do desenvolvimento do pensamento político marxista que, como vimos acima, registraram importantes avanços e conclusões. Pinçando, assim, trechos dos últimos escritos de Engels, fora do contexto mais geral de evolução das suas reflexões políticas, pode-se ficar com uma noção inexata das posições que ele efetivamente sustentava nesse período.

De fato, inúmeras passagens destes escritos não autorizam a leitura feita por Carlos Nelson. Na conclusão de Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, por exemplo, Engels afirma:
“(Na República democrática) a riqueza exerce o seu poder de modo indireto, embora mais seguro (…)

Por último, é diretamente através do sufrágio universal que a classe possuidora domina. Enquanto a classe oprimida, em nosso caso, o proletariado – não está madura para promover ela mesma a sua emancipação, a maioria de seus membros considera a ordem social existente como a única possível e, politicamente, forma a cauda da classe capitalista, sua ala de extrema esquerda… O sufrágio universal é, assim, o índice de amadurecimento da classe operária. No Estado atual não pode, nem poderá ir além disso; mas é suficiente. No dia em que o termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão – tanto quanto os capitalistas – eles saberão o que fazer” (17).

Já na sua introdução de 1891, a que me referi acima, Engels conclui com o seguinte (e inequívoco) recado: “Em realidade, o Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra, tanto na República democrática como sob monarquia; e no melhor dos casos, um mal que se transmite hereditariamente ao proletariado triunfante em sua luta pela dominação de classe. Como fez a Comuna, o proletariado vitorioso não pode deixar de amputar imediatamente, na medida do possível, os aspectos mais nocivos desse mal (…) Ultimamente, as palavras “ditadura do proletariado” voltaram a despertar sagrado terror ao filisteu social-democrata. Pois bem, senhores: quereis saber que face tem essa ditadura? Olhai para a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado” (18).

Saber quem governa é a base para compreender como se organiza o governo

Fica claro nestas passagens que Engels continuava concebendo a formação de um “contrapoder” do proletariado, em confronto revolucionário com o Estado burguês, como questão decisiva para a transição ao socialismo. Carlos Nelson cita, ainda, outra passagem de Engels no mesmo ano de 1891 (da sua Crítica ao Programa de Erfurt) onde ele afirma que a República democrática é a “forma específica da ditadura do proletariado”. A contradição entre esta passagem e a citação que fizemos acima é apenas aparente. Pois o que Engels esta argumentando é que o poder proletário não pode prescindir de órgãos democráticos de representação (embora a institucionalidade, as práticas e o próprio conteúdo desta representação devam ser qualitativamente diferentes no Estado socialista em relação ao Estado capitalista).

Da mesma forma, as formulações de Engels na sua introdução de 1895 tampouco indicam que seja através das instituições democráticas do Estado capitalista que o proletariado conquistará e construirá o socialismo. O que ele indica é que o “sufrágio universal” oferece novos campos de luta contra a dominação burguesa, dando ao proletariado possibilidades mais amplas de agitação e uma tribuna para falar às amplas massas com mais autoridade e liberdade. Estas brechas deveriam ser aproveitadas ao máximo na luta contra o Estado burguês:

“Viu-se que as instituições estatais, nas quais se organiza o domínio da burguesia, ainda oferecem possibilidades novas de utilização que permitem à classe operária combatê-las” (19).
A vantagem deste desenvolvimento para o proletariado era que ele podia lançar aos ombros da burguesia o ônus de romper a sua própria legalidade para conter avanço do movimento operário. Essa possibilidade tornava-se ainda mais importante para a classe operária pelo fato de a nova disposição física das cidades, aliada ao maior poder de fogo dos exércitos, inviabilizar o triunfo de uma insurreição rápida e fulminante, baseada na luta de barricadas (no estilo das que haviam ocorrido nas revoluções de 1848 e 1850). Por isso, enfrentar um momento de ruptura revolucionária empunhando a bandeira da legalidade poderia ser decisivo para configurar uma correlação de forças favorável ao proletariado. Nesta base, Engels ousava até mesmo lançar um repto à burguesia, em nome do movimento operário:
“Se violais a Constituição do Reich, a social-democracia ficará livre para fazer o que lhe parecer melhor a vosso respeito. Mas o que fará então não há de vos dizer hoje.” (20).

Não me parece que seja o alerta de alguém que, afinal concluiu comungar do mesmo “valor democrático” das classes dominantes… Se eu me preocupei tanto em resgatar o pensamento real de Engels nesta última fase do pensamento político marxista, não é para me prender a uma postura dogmática, que considera que o que Marx e Engels falaram “tá falado”, uma espécie de “escritura sagrada”, válida para o restante da existência humana. Ainda mais que o próprio Engels foi o primeiro a indicar que “a teoria marxista não é um dogma, é um guia para a ação”. E eu diria, também, para estudo. Só que me parece que qualquer apreciação crítica deve, em primeiro lugar, partir de uma análise precisa – criteriosa – de quais eram efetivamente as suas formulações nos diferentes períodos, e como elas se articulavam com a evolução geral da sua teoria.

Podemos, agora, fazer um balanço (ainda que sucinto) da evolução do pensamento político de Marx e Engels. Começo por resgatar a questão levantada por Norberto Bobbio que serviu de ponto de partida para este artigo. Existe uma teoria marxista do Estado? Parece-me que a exposição feita ao longo deste artigo permite responder, convincentemente, que sim. Bobbio certamente não concorda com isso, pois a resposta que ele mesmo dá para a sua pergunta é que:

“(A teoria marxista) do Estado é incompleta, faltando justamente aquela parte mais importante, o que leva muitos a concluir, com razão, que não existe uma verdadeira e própria teoria socialista do Estado” (21).

Aderir ao marxismo não pode ser pretexto para não pensar e repetir fórmulas

É fácil entender por que, apesar de todas as evidências em contrário que vimos até aqui, o grande pensador liberal italiano insista em chegar a essa conclusão. No seu enfoque, entre as duas questões fundamentais de teoria política – o de “quem” governa e o de “como” se governa – a última é muito mais importante do que a primeira. Ora, trata-se de uma perspectiva teórica diametralmente oposta à do marxismo. Para este, desvendar “quem” governa (em termos classistas) é o ponto de partida para poder compreender “como” se governa (em termos de instituições e práticas políticas). O que Marx e Engels fizeram foi lançar as bases fundamentais da sua teoria do Estado, respondendo à primeira questão. E ao introduzir uma análise de classe dessa questão, efetuaram uma autêntica revolução no pensamento político.

Sua análise sobre a segunda questão foi mais limitada. Se limitou à análise das formas que o Estado assumiu na sua gênese na Antiguidade, ao estudo de situações históricas concretas na França (da revolução de 1789 às diferentes experiências bonapartistas), a comentários pontuais sobre uma infinidade de situações políticas espalhadas ao longo da sua obra, e ao exame meticuloso e exaustivo da experiência efêmera da Comuna de Paris. Na sua projetada grande obra sobre o Estado, Marx pretendia traçar um panorama histórico geral de como o desenvolvimento das diferentes formas de poder político se articulavam com as transformações econômico-sociais (e, associado a isto, discutir as formas concretas de articulação das classes economicamente predominantes com o Estado). Infelizmente, ficou nos devendo…

Já a crítica formulada por Bobbio em relação à falta de uma teoria marxista (das instituições políticas) do Estado socialista não me parece procedente. A única oportunidade de estudar uma experiência nesse sentido (a Comuna) foi aproveitada com uma atividade febril e uma atenção que beirava à fixação (acho que Marx extraiu o máximo de conclusões teóricas sobre o episódio que era humanamente possível no período histórico). A contraposição aos avanços teóricos do liberalismo antes da revolução burguesa também é improcedente, já que a burguesia vinha compondo o poder de Estado absolutista, e tinha imensos recursos à sua disposição em função da sua posição de crescente predominância econômica, o que não ocorre com o proletariado antes da revolução socialista.

Mas isto revela também quão limitada, insuficiente e, diria, até ridícula, é a atitude dos marxistas que se limitam a reproduzir as análises teóricas desenvolvidas por Marx e Engels, sem procurar desenvolvê-las para responder aos desafios do mundo contemporâneo. Esse tipo de adesão ao marxismo é uma boa desculpa para não pensar. Aceitá-la, ou adotá-la, só afundaria ainda mais o marxismo na crise multilateral em que ele se encontra. Nosso grande “trunfo” neste desafio, em relação às demais correntes teóricas e filosóficas, é que o pensamento marxista original nos fornece os fundamentos teóricos necessários para desenvolver criadoramente a teoria e desvendar os novos e graves problemas que se apresentam para a luta socialista.

Tratamos aqui das reflexões de Marx e Engels sobre Estado no século passado. Na próxima edição de Princípios analisaremos as idéias de Lênin, Gramsci, a social-democracia e diversas correntes teóricas revisionistas, o austromarxismo, a Escola de Frankfurt e o eurocomunismo.

Luís Fernandes, doutorando em Ciência Política pelo IUPERJ; professor da Universidade Federal Fluminense.

Notas
(1) Esta Indagação é formulada no seu livro Qual Socialismo?, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.
(2) Este plano de trabalho foi explicitado por Marx nas suas cartas a Lassalle, em 22 de fevereiro de 1858, e a Engels, em 2 de abril do mesmo ano.
(3) Já tive oportunidade de comentar as diferenças nos pressupostos básicos das teorias políticas do liberalismo e do marxismo (bem como algumas das suas consequências) no artigo “O Marxismo e o Impasse entre a Igualdade e a Liberdade no Pensamento Liberal”: Princípios, n° 13, dezembro de 1986.
(4) MARX, K. & ENGELS, F. ”Manifesto do Partido Comunista”, in Obras Escolhidas de Marx e Engels, Volume 1, São Paulo, Alfa-Omega, p. 38.
(5) Uma manifestação recente dessa pretensão no Brasil é dada pelas reflexões da corrente “Nova Esquerda” do PT (ex-PRC). Ver, por exemplo, o artigo assinado por José Genuíno e Tarso Genro na sessão “Tendências e Debates” do jornal Folha de São Paulo.
(6) “Carta de Engels a Augusto Bebel” incluída no texto de K. Marx, “Crítica ao Programa de Gotha”: publicado nas Obras Escolhidas de Marx e Engels, Volume 2, op cit., p. 230.
(7) MARX, K. & ENGELS, F. ”Manifesto do Partido Comunista” op. cit., p. 38.
(8) Idem, p. 23
(9) Idem, p. 37
(10) MILIBAND, R. “Marx and the State “: in G. Duncan (ed), Democracy and the Capitalist Stale, Cambridge Universlty Press, 1989.
(11) A primeira parte do livro de E. Hobsbawn, A Era do Capital, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, contém uma discussão interessante e rica sobre esta experiência revolucionária européia, batizada, na época, com o nome de “Primavera dos Povos”.
(12) ENGELS, F. “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, em Obras Escolhidas de Marx e Engels, Volume 3, op. cit., p. 131.
(13) MARX, K. “Carta a Weydemeyer”, in Obras Escolhidas de Marx e Engels, Volume 3, op. cit., p. 253-54.
(14) LÊNIN, V. I. “Sobre o Estado”, Em Obras Escolhidas, Volume 3, Lisboa, Edições AVANTE, 1979, p. 183.
(15) Como se sabe, essa tese é sustentada no Brasil por autores que se referenciam na teoria marxista, como Carlos Nelson Coutinho, A Democracia como Valor Universal, Rio de Janeiro, Salamandra Editorial, 1984; e Francisco Weffort, Por que Democracia?, São Paulo, Brasiliense, 1984.
(16) COUTINHO, C. N. A Dualidade de Poderes – introdução à teoria marxista de Estado e revolução, São Paulo, Brasilense.
(17) ENGELS, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, op. cit., p. 138.
(18) ENGELS, F. “Introdução à Guerra Civil na França”, in Obras Escolhidas de Marx e Engels, Volume 2, op. cit., p. 51.
(19) ENGELS, F. “Introdução à Luta de Classes na França de 1848 a 1850”, in Obras Escolhidas de Marx e Engels, Volume 1, op. cit., p. 103.
(20) Idem, p. 109.
(21) BOBBIO, N. Qual Socialismo?, op. cit., p. 51.

EDIÇÃO 19, NOVEMBRO, 1990, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13