Pela milésima vez tentarão colocar a culpa no mordomo. Mas o resultado das eleições merece análise menos simplista. Antes de tudo, situar as circunstâncias do crime, digo, do pleito.

Desde 1974, com uma certa distorção na escolha da Constituinte em 1986, os brasileiros vêm manifestando oposição aos esquemas dominantes. No ano passado, o processo caminhou para uma confrontação entre o povo e as elites. Apesar da chegada de Collor à presidência, com escassa margem de votos – e com o agravante de que o juiz que presidiu a votação e a apuração, ao mesmo tempo em que proclamava o vencedor, assumia um cargo em seu ministério – a campanha assinalou enorme avanço da consciência popular.

Agora, exemplares antediluvianos, da velha e carcomida direita, junto com espécimes da direita moderna – forjada nos laboratórios colloridos – ocupam com destaque o cenário. Coisas como Maluf, ACM, João Castello, Gilberto Mestrinho, Nelson Marchesan desfilam nos noticiários ao lado de Roriz, Martinez, Bulhões, Calheiros, Hélio Costa e assemelhados. Um retrocesso considerável.

Nesta contramaré, ganham mais brilho vitórias expressivas das forças progressistas, como a conquista do governo do Rio de Janeiro no primeiro turno e de posições no segundo turno com boas chances de sucesso em Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Acre, e votações consagradoras de personalidades democráticas como Arraes e Waldir Pires e de candidatos comunistas para a Câmara Federal e Assembléias Estaduais.

A situação conduz a uma reflexão sobre o próprio significado das eleições no sistema burguês, tidas como a única via para promover alterações no País, "porque espelham a vontade da maioria".
Chama logo a atenção a pretensão de amarrar os trabalhadores num jogo em que as regras são feitas pelos adversários, com condições tão absurdamente desiguais que, embora se possa dizer que muitos podem competir, aos ricos é reservado o direito de vencer.

A "democracia" manca logo na distribuição do chamado horário gratuito de rádio e TV, onde os grandes abocanham praticamente todo o tempo. E desmascara-se escandalosamente pela interferência do poder econômico na campanha. Com a maior candura, o próprio presidente do TRE paulista, no programa Roda Viva, da TV Cultura, no dia 10 de outubro, confessou ser "natural que no sistema capitalista o poder econômico se faça presente".

Os de cima dispõem de praticamente monopólio absoluto dos instrumentos de formação da opinião pública, rádio, TV, jornais, revistas. Percorrem o País de jatinhos, enquanto os candidatos mais ligados ao povo vão de carro. A disparidade é tão grande que, nos últimos dias de campanha, uma candidata comunista revelava com certo ar de alegria: "cheguei a percorrer pelo menos os 15 (!) maiores municípios do estado". Neste ano, entretanto, a máquina se excedeu. A justiça eleitoral tomou partido acintosamente. Arbitrária e ilegalmente praticou a censura. Fez de um tal "direito de resposta" – aplicado à simples menção do nome de seus protegidos – uma forma de impedir as denúncias e a polêmica. Ajudou, assim, a camuflar as péssimas lufadas de larápios e coveiros da ditadura que trocavam as malvadezas pela bondade e compreensão durante a campanha. No esmero de servir aos poderosos, deu a quem governou por nomeação, sem ser eleito, o direito de se reeleger, que a Constituição nega mesmo para os governadores eleitos.

As pesquisas tornaram-se instrumento para confundir o eleitor. Em vez de informação científica, imperou a manipulação deslavada. Algumas foram tão viciadas que até na última oportunidade, na boca da urna, não conseguiram se corrigir, e foram vergonhosamente desmentidas pelas urnas.
A propaganda, em vez de esclarecer, baralhava. O desfile de obras tomou o lugar do debate político na TV. As ofensas pessoais substituíram os argumentos. Voltaram os velhos métodos de aliciamento a troco de favores e promessas. Muitas vezes com chantagem: “Se o adversário vencer, padecerá o estado, por falta de verbas federais”. E, para provar que a ameaça tinha fundamento, o imperador subia e descia a rampa do palácio com seus protegidos a tiracolo. Só o amigo do rei merece vencer, dizia seu sorriso artificial, trabalhado nos estúdios do Sr. Roberto Marinho.

Evidenciou-se, mais uma vez, que a eleição é uma peça no sistema de dominação, um mecanismo para os donos do poder acomodarem suas forças. E para arrefecer o desagrado dos despossuídos, oferecendo-lhes a oportunidade de participar na escolha dos seus opressores nos próximos quatro anos.

Não basta, entretanto, constatar que o voto, nos marcos impostos pelos capitalistas, não é capaz de expressar realmente a vontade e os interesses da maioria. A campanha, malgrado as brutais diferenças de condições entre ricos e pobres, oferece oportunidade para as massas discutirem política e os problemas sociais. É possível inclusive explorar as brechas no esquema vigente para conquistar certos espaços para os trabalhadores e demais camadas populares. O pleito é, portanto, importante campo de atuação capaz de levar a voz da revolução a um patamar mais amplo.

A participação eleitoral facilita demonstrar ao povo a falácia do caráter democrático do regime burguês e o equívoco de restringir a luta do povo à conquista do voto. Lênin, crítico ferrenho de toda ilusão parlamentarista, é, por outro lado, categórico ao defender a presença dos revolucionários nas disputas eleitorais: "Torna-se particularmente claro que os bolcheviques não teriam podido conservar (já não digo consolidar, desenvolver e fortalecer) o núcleo sólido do partido revolucionário do proletariado em 1908-1914, se não tivessem defendido na mais dura luta a obrigatoriedade de unir as formas ilegais de luta com as forma legais, com a participação obrigatória num parlamento reacionaríssimo e numa série de outras instituições regidas por leis reacionárias".

Pretensos radicais, que ainda hoje relegam para o segundo plano a atividade nas campanhas, não fariam mal em ver que milhões votam em ACM, Maluf e outros, indicando que não só depositam esperanças no pleito como não se libertaram sequer da influência política dos seus piores patrões.
Alguns desanimam com esta realidade. Mas os combatentes pela liberdade não se conformam com o senso comum forjado pelos poderosos. Fazem propaganda revolucionária apoiada na vida real. Trabalham pelo esclarecimento dos trabalhadores e pela elevação de seu nível de consciência apoiados em análises históricas e não em acontecimentos fortuitos. Raciocinam e agem com visão de classe e com espírito de massas. Sabem, como mostrou Engels há mais de um século, que "o sufrágio universal é o barômetro da maturidade da classe operária".

O estudo das eleições precisa ser feito não com os olhos de quem só enxerga o que está diante do nariz. Se é claro que o voto não é a única, e nem provavelmente a principal esperança, é igualmente óbvio que não se pode encarar um fraco desempenho das esquerdas neste pleito como fracasso do caminho revolucionário e do socialismo, como apressam-se a concluir os ideólogos do poder.
Não cabe aqui, e ao fechar esta edição os números totais ainda não estavam divulgados, uma conclusão sobre os resultados eleitorais. Mas vale assinalar que os acontecimentos do Leste europeu, a fabulosa campanha antiprogressista – não só anticomunista – em plano mundial, a orquestradíssima propaganda de desmoralização do Congresso e dos "políticos" contribuíram enormemente para confundir os eleitores. Some-se a isto a frustração com as eleições do ano passado e o desabar do sonho collorido, para imaginar a perplexidade com que os descamisados chegaram à cabine eleitoral no dia três de outubro. Com este quadro é fácil compreender por que foi possível o reerguimento de múmias que se pensava definitivamente abandonadas em seus sarcófagos desde o fim do regime militar.

Mesmo aqui, entretanto, não é suficiente medir as coisas pela primeira impressão. O descontentamento popular manifestou-se inequivocamente no elevado percentual de abstenções, votos nulos e brancos. Uma revolta latente que se escoou num protesto sem alvo definido. Um desespero que não capacitou os eleitores, em boa parte, a dirigir seu voto de forma positiva.
Onde certos candidatos progressistas foram identificados com nitidez como representantes do povo, receberam votações maciças. Em outros lugares, revelando a dificuldade da situação, os votos foram despejados em radialistas, artistas e outras pessoas sem propostas, mas muito conhecidas.

A falta de clareza do eleitor favoreceu, momentaneamente, a direita. O que não pode ser confundido com conformismo. As contradições sociais estão aguçadas. Acontecimentos, aparentemente, de menor importância, podem detonar alterações bruscas na conjuntura. A história não acabou, como parece pensar o ocupante da Casa da Dinda. E nem pode ser reinventada, de uma hora para outra, pela Rede Globo. Os verdadeiros culpados têm impressões digitais por todo lado, mais cedo ou mais tarde serão localizados.

As correntes progressistas, entretanto, não esperarão passivamente que as coisas mudem por si mesmas. Os que recusaram, no último pleito, uma política de unidade – e que arcam com significativa responsabilidade pelas dificuldades atiradas agora sobre o movimento democrático – devem rapidamente rever suas concepções. Todas as forças interessadas na liberdade e no desenvolvimento independente do País precisam reencontrar o caminho da união. E começar, de imediato, com uma conduta corajosa no segundo turno. Todos os que têm compromissos com o povo têm pela frente o desafio de retomar o contato com as grandes massas, reorganizar a resistência popular e encontrar meios e formas para retomar a ofensiva.

No fundo, até os mordomos têm interesse em somar seus esforços para acabar com as mordomias – e com a fama injusta que sobre eles foi atirada.

EDIÇÃO 19, NOVEMBRO, 1990, PÁGINAS 3, 4, 5