O NOVO PODER NO REGIME SOCIALISTA
"A ditadura do proletariado é uma luta áspera, cruenta e incruenta, violenta e pacífica, militar e econômica, pedagógica e administrativa contra as forças e as tradições da velha sociedade". (Lênin)
"Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rostos que encontrares". (T. S. Eliot)
As transformações políticas em curso no mundo e principalmente as dificuldades objetivas do movimento revolucionário suscitaram, entre outras, uma acesa polêmica sobre a democracia no socialismo. A "revolução do Leste" e a perestroika sucedem sob a bandeira da liberdade e do aperfeiçoamento das instituições políticas da sociedade socialista. Galvanizaram apoio pretextando o restabelecimento da democracia em regimes burocratizados. Mas, como se sabe, seus resultados não foram bem esses. Antes, tiveram como corolário a liquidação das bases econômicas do socialismo, o estabelecimento de um novo domínio de classe, a mudança de regime e a montagem, ainda em transição, de uma superestrutura jurídico-política fundada muito mais em motivações democrático-burguesas do que no ideário da revolução popular ou proletária. Isto nos parece demonstrado nas edições anteriores de Princípios (n° 17 e 18) e em alguns artigos da presente edição. É ocioso determos-nos neste aspecto no espaço deste artigo.
A tragédia em que se transformou a derrota do socialismo em escala mundial obriga os comunistas a refletirem cuidadosamente sobre a experiência de direção estatal que viveram. O socialismo, inegavelmente superior ao capitalismo, contraiu, no entanto, uma dívida com a História – a implantação na prática, e não apenas formal, de uma democracia ampla, plena, que assegurasse de jure e de facto o poder à classe operária e demais camadas de trabalhadores. Não se levou na devida conta que a essência da democracia socialista é a participação ampla das massas na direção do Estado e no governo da sociedade, participação sem a qual torna-se inócuo qualquer esforço para a realização das tarefas da edificação socialista.
E, no entanto, a principal diferença entre a "democracia" burguesa e a democracia proletária é que esta última tem por finalidade acabar, pela primeira vez na história, com a separação entre a proclamação formal dos direitos civis e sua realização na prática. Pois é precisamente esta separação que confere à "democracia" burguesa um caráter falso, hipócrita, enganoso.
O programa político da verdadeira democracia socialista consiste em fazer com que "uma simples cozinheira se ocupe das questões do Estado" (Lênin); com que se eleve sempre mais o grau de participação das massas na resolução de todo e qualquer problema político, econômico, social, cultural.
A estrutura de poder deve basear-se unicamente na soberania popular, sobre quem recai a responsabilidade, correspondente a um direito básico, de eleger os órgãos de poder em todas as instâncias, de propor candidaturas, de votar livremente, de dispor dos mandatos, inclusive com direito à revogação, de exercer a crítica, de participar viva e criativamente das discussões para a elaboração dos planos qüinqüenais e das leis, de exigir prestação de contas por parte dos órgãos administrativos e do partido; e de exercer controle direto sobre tudo e sobre todos.
Uma estrutura de poder onde impere de fato a soberania da massa trabalhadora
Para efetivar uma tão extensa e profunda democracia de massas e realizar na plenitude esses direitos políticos, não basta que o Partido Comunista exerça seu papel de vanguarda por efeito de retórica, e que o Estado constituído cumpra a rotina de suas funções e se declare formalmente como Estado proletário. É preciso ainda elaborar e aplicar uma legislação avançada, que respeite precipuamente os direitos individuais, garanta a liberdade dos cidadãos, a livre manifestação do pensamento construtivo.
Muitas vezes, uma divergência no Partido foi considerada "fracionismo" ou "quebra da disciplina", uma oposição a atos do governo foi apressadamente classificada como "complô", uma opinião diferente da oficial confundida com a propaganda anti-socialista, uma obra de arte fora das receitas do código do "realismo socialista" tida como "degeneração pequeno-burguesa". A polêmica e o debate construtivos com as massas são, assim, sufocados, dando lugar à censura e à repressão. E isto, infelizmente, marcou alguns períodos da construção do socialismo e acabou concorrendo para limitar a democracia.
O poder revolucionário, a fim de garantir os direitos das massas e viabilizar sua participação no governo do país e na construção da nova sociedade, não pode prescindir da existência das organizações sociais. São elas, por excelência, o instrumento mais eficaz para unir, organizar e mobilizar o povo.
Operam a ligação entre este, o partido e os órgãos administrativos e constituem a melhor tribuna de onde as massas dão sua opinião sobre qualquer assunto. Se estas organizações se transformam em meras extensões do Partido e do aparato estatal, como ocorreu, se sua autonomia não é respeitada e seus dirigentes não passam de "comissários políticos", sua existência será mera formalidade.
Não há como negar: a burocratização do aparato estatal e do Partido Comunista, a criação de uma casta de burocratas privilegiados em seus postos de comando, o distanciamento do poder em relação às massas, as limitações da legislação socialista, a violação de direitos civis restringiram a democracia e contribuíram para a degeneração do Estado socialista e a usurpação do poder pelos revisionistas.
Sendo uma forma de pensar e dirigir completamente avessa aos interesses do povo, o burocratismo, fenômeno que se generalizou nos países socialistas, não faz parte da natureza do socialismo. Mas sua manifestação em tão elevado grau, como ocorreu, impõe uma reflexão objetiva e profunda para que se possa retirar as devidas lições da história. O burocratismo maculou a democracia socialista, castrou a iniciativa das massas, deseducou-as e desarmou-as para enfrentar os inimigos internos e externos do socialismo, retirou pouco a pouco o caráter revolucionário do Estado. Evidentemente, o burocratismo tem sua raiz de classe nos antigos exploradores e constitui a um só tempo uma herança das tradições do passado. Revelou-se particularmente nocivo no gigantismo do aparato estatal, na deformação das práticas eleitorais e nas relações entre os quadros e as massas. Mostrou quanto a sociedade socialista, na época atual, é ainda permeável aos vícios do capitalismo, principalmente a fetichização do poder e a permanência de métodos autoritários.
Transformou-se em senso comum que o socialismo não pode ser democrático
Mas fiquemos com a noção de que as correntes políticas e ideológicas que genericamente podemos denominar de revisionistas, embora matizadas por diferentes nuances, exaltam a democracia como valor universal, ignoram seu caráter relativo, de classe, e rejeitam as experiências até aqui conhecidas de construção do socialismo. Esta opinião dilui conceitos como democracia burguesa e democracia proletária, sonha com a construção de um modelo econômico misto, metade socialista, metade capitalista, e procura operar o milagre da simbiose entre instituições de um e outro regime.
A idéia de que o socialismo é antidemocrático foi transformada em senso comum. Concedem ao socialismo o favor de reconhecer-lhe o mérito de curar as chagas sociais e elevar o nível de vida das massas trabalhadoras, mas imputam-lhe a culpa de carregar, como um mal imanente, uma espécie de pecado original – liquidou os valores "universais" e "eternos" da liberdade, violou os direitos humanos, tiranizou vastas camadas da população, instituiu a ditadura unipartidária e até unipessoal, perpetrou inomináveis crimes… Os defensores do socialismo seriam assim tangidos a uma espécie de limbo, enquanto na superfície da Terra viceja todo tipo de teorias fabricadas por encomenda para enaltecer a "democracia" capitalista.
O debate é antigo e não será surpreendente se perdurar por tempo ainda maior, pois seu eixo – a temática do poder político – é a questão crucial de toda revolução e o ponto de partida de qualquer esforço para a construção de novas relações econômicas e sociais.
Nisso a história é prodigiosa em ensinamentos. A questão do poder político, sua manutenção, consolidação; aperfeiçoamento e transformação progressiva confunde-se com a própria sobrevivência e prolongamento do processo revolucionário e está diretamente relacionada com o alcance de seus objetivos finais. Aliás, com justa razão, já se disse que é muito mais fácil tomar o poder político do que construir uma sociedade nova. Desde a Comuna de Paris, conheceram-se experiências indicativas de que a revolução proletária pode triunfar e em seguida ser esmagada se não encontra ou não emprega os meios necessários à sua consolidação e desenvolvimento ulterior. De outra forma, o retrocesso de caráter burguês-revisionista, ocorrido a partir de meados dos anos 1950 na União Soviética e demais países do Leste, sinalizou que o Estado pode escapar ao controle do proletariado não apenas por via de uma derrocada contra-revolucionária violenta. Também os processos silentes e sutis da degenerescência pacífica e gradual agem no sentido oposto ao da revolução. Isto indica que a vitória ou a derrota de um poder revolucionário não se deve ao acaso ou a um determinismo fatalista. Depende dos meios que encontre para se impor e vingar em circunstâncias históricas dadas.
Para se ter uma idéia minimamente aproximada da realidade sobre o que é a democracia no socialismo, é impositivo compreender o caráter relativo (histórico e de classe) de conceitos e categorias como Estado, democracia, liberdade e outros afins, as singularidades da conjuntura política em que surge o poder popular, que dá origem ao Estado socialista, sua transitoriedade na história e suas funções em curto, médio e longo prazos.
Este poder advém necessariamente de uma revolução vitoriosa. O momento em que se instaura é um ponto de inflexão no desenvolvimento da luta de classes em favor do socialismo e seu caráter passageiro é definido pelo fato de, como dizia Marx, ser "o Estado do período de transição, do capitalismo ao comunismo".
Não se trata de uma simples mudança de governo, da alternância de facções distintas de uma mesma classe no poder, resultado de uma eleição, queda de gabinete ou golpe de Estado, mas de uma substituição de classes no poder, decorrência de uma destruição da ordem constituída pela via revolucionária, do derrube de todo o edifício social, a fim de construir outro, seu antípoda. Em circunstâncias semelhantes, legalidade, democracia, liberdade revelam-se como conceitos relativos. É Lênin quem diz em A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky que "a ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido mediante a violência exercida pelo proletariado sobre a burguesia, um poder não sujeito a nenhuma lei".
Nenhuma revolução se faz sem quebrar o poder da classe até então dominante
Seria no mínimo ingenuidade pretender que não fosse assim. Mesmo revoluções anteriores à proletária ensinaram que nenhuma transformação social radical prescinde de um poder político novo e que este enfrenta – na fase inicial de maneira aguda e nas posteriores de formas multifacetadas – uma encarniçada resistência das classes destronadas. A própria revolução francesa, feita em nome da liberdade, igualdade e fraternidade, precisou atravessar o período que se chamou de "terror" e, não fosse a energia e a determinação dos jacobinos, a história teria andado em compasso diferente.
Em lugar de se perder em estéreis discussões sobre um falso humanismo, decorrente da ignorância quanto às leis do desenvolvimento histórico, é necessário saber por que isto ocorre, ou, mais exatamente, por que tem de ser assim. É que a transformação da sociedade, embora desperte a esperança na festa de pão e rosas, é um processo doloroso. Recorrendo à imagem poética da epígrafe, até que a humanidade se depare com um rosto belo e formoso diante do espelho, defrontará outras faces, que ela não escolheu. Para quem está convicto dessa necessidade gerada pelos condicionamentos históricos, fica a certeza, que somente a concepção dialética-materialista dá, de que para vencer desafio, tempo haverá.
Se a questão é resolvida teoricamente e as condicionalidades são admitidas com objetividade, se torna mais viável enfrentá-las na prática e resolver na exata medida o aparente paradoxo: a ditadura revolucionária é ou não democrática? E no problema que temos em tela de juízo: a ditadura do proletariado é um poder democrático?
Houve épocas em que os reis exerciam seu domínio absolutista invocando o direito divino. Em nome disso se estruturavam as instituições jurídicas e políticas legitimadoras da monarquia. Mas os soberanos sabiam também dispor de um aparato de violência. Hoje, é grande a diversidade de sistemas políticos e regimes de governo dirigidos por grupos capitalistas que administram o Estado conforme os interesses do conjunto da burguesia. Todos se dizem democráticos – até os golpes militares são feitos com nobres justificativas de restauração da ordem democrática "ameaçada" pelo movimento comunista. Mas nem por isso, tal como as antigas monarquias absolutistas inspiradas no direito divino, os atuais Estados burgueses, pretensamente orientados pelos valores universais da democracia, não recorrem a menor grau de violência. Em períodos de descenso do movimento revolucionário, a burguesia conta com toda uma sorte de instituições capazes de intermediar e dissimular seu domínio. Mas ouse o proletariado, mesmo nas repúblicas mais democráticas, ameaçar a ordem constituída, e o mundo correrá o risco de assistir ao hediondo espetáculo da repressão ceifando cabeças, rasgando constituições e declarando guerra aberta ao povo, em nome da "segurança nacional". Os anos 1930 e 1940 não estão assim tão distantes para esquecermos o que foi o fascismo. E os golpes militares ocorridos na América Latina nos anos 1960 e 1970 ilustram nos tempos atuais quanto a burguesia se torna violenta para manter intacto o seu domínio.
E não há nada de estranho e extraordinário nisto. Numa sociedade dividida em classes antagônicas, o Estado outra coisa não é senão um órgão nas mãos da classe detentora do poder para realizar a dominação política, social e econômica sobre as demais, marginalizadas. Por seu conteúdo e forma, é um aparato que esmaga a resistência dos oprimidos e legaliza a opressão exercida pela classe dominante. Seja qual for a aparência com que se revista, a forma que assuma, a maquiagem com que pinte o rosto, é um órgão de coerção e violência. O mimetismo não muda a natureza do camaleão.
Pela primeira vez os que trabalham tomam conta do poder político
Mas retomemos nossa questão. O que definirá se a ditadura revolucionária é ou não essencialmente democrática é seu caráter de classe e seus objetivos. Uma observação, ainda que ligeira, sobre a história, desvendará a elementar verdade de que o Estado revolucionário do proletariado é o primeiro que se conhece até então verdadeiramente democrático, pois é o único que assegura, desde a origem, o poder à classe operária e às demais camadas de trabalhadores, secularmente exploradas e colocadas à margem da vida política e social. Pela primeira vez na história, os trabalhadores se tornam dirigentes do Estado e iniciam conscientemente a construção de uma sociedade livre, baseada no trabalho livre de homens livres. É por isso que, mesmo nos momentos de conflagração política e social mais agudos, em que, por força de circunstâncias objetivas, é enorme o grau de violência entre as partes contentoras, o poder revolucionário do proletariado é muito mais democrático do que a mais democrática das repúblicas burguesas. Desde o seu advento, o Estado popular expressa e defende os interesses de todos os trabalhadores até então explorados e oprimidos. Mesmo porque, o fruto que brotou no momento da revolução germinara bem antes, durante a crise revolucionária. A República dos Sovietes, implantada na Rússia de 1917, foi gerada na revolução derrotada de 1905 e depois na revolução de fevereiro de 1917 e em todo o período de transição e dualidade de poder que vai daí até outubro.
A história da Comuna de Paris é por demais conhecida. Marx atribuiu a sua derrota à falta de "energia" dos revolucionários para esmagar a contra-revolução. A revolução russa não teria sobrevivido se os bolcheviques liderados por Lênin não tivessem dado provas de tenacidade, inclusive para enfrentar uma guerra de agressão de três anos contra exércitos de países imperialistas que acorreram em ajuda à burguesia e aos latifundiários da velha Rússia. Lênin poderia ter sido "mais democrático" e distribuído flores e concessões aos inimigos da revolução. Talvez não ocupasse na história sequer o lugar de um Kerensky.
Negar esta evidência é admitir a luta de classes apenas até o meio do caminho. Mais uma vez, é ilustrativo citar A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, em que Lênin, refutando o ponto de vista do dirigente da II Internacional, segundo o qual os sovietes não deviam se transformar em organizações estatais, afirmava:
"Uma pessoa que compartilhe com seriedade a idéia de Marx de que o Estado não é mais que uma máquina para a opressão de uma classe por outra, que tivesse parado para meditar sobre esta verdade, nunca teria podido chegar ao absurdo de dizer que as organizações proletárias, capazes de vencer o capital financeiro, não devem transformar-se em organizações de Estado. Isto é o que revela ao pequeno-burguês, para o qual o Estado é, 'apesar de tudo', uma entidade à margem das classes, ou situada acima das classes. Com efeito, por que pode o proletariado, 'uma só classe', fazer uma guerra decisiva ao capital, que não só domina sobre o proletariado, mas sobre todo o povo, sobre toda a pequena burguesia, sobre todos os camponeses, e não pode, sendo 'uma só classe', transformar sua organização em organização de Estado? Porque o pequeno-burguês teme a luta de classes e não a leva a termo, ao mais importante".
Assim, é necessário situar o poder revolucionário no contexto da luta de classes. A perda desse referencial leva muitos críticos do socialismo a resvalarem para posições liberais, democrático-burguesas, malgrado sua profissão de fé "marxista".
A existência do poder proletário não se justifica apenas no momento da vitória da revolução e de liquidação da resistência da burguesia derrotada. Ele tem por missão desmontar, peça por peça, toda uma engrenagem do antigo aparato estatal e construir uma organização política inteiramente nova, de acordo com as exigências da sociedade que está por construir; exercer funções sociais, ideológicas e econômicas, entre as quais avultam a expropriação do capital da burguesia e a coordenação do processo de construção das novas relações de produção.
Este poder assume um conjunto de tarefas que preparam a transição para a sociedade sem classes, quando – aí sim – a própria existência de partidos e do Estado será um contra-senso. Em suma, o exercício do poder político pelo proletariado abre caminho para o exercício do autogoverno pela sociedade, objetivo que constitui a essência mesma de sua missão histórica.
Se não se adapta às demandas da história, o Estado socialista fatalmente degenera
É com essa perspectiva que os defensores do socialismo precisam situar-se no embate com os que desnaturam o marxismo a partir de posições liberais e social-democratas, sem correrem o risco de permanecer no limbo. Se a ditadura revolucionária é uma necessidade histórica, por outro lado, o Estado socialista não assume uma feição definitiva e única desde o momento de sua aparição. Se ele não se aperfeiçoa e democratiza continuamente, se não adapta seus métodos de governo e suas instituições às novas demandas criadas pelo desenvolvimento do socialismo, inevitavelmente se esclerosará. Por isso, é equivocado rejeitar aprioristicamente a simples menção aos termos democratizar e reformar o socialismo, recusa que parte da presunção de que o socialismo é em si mesmo democrático e nada tem a fazer senão manter o Estado da ditadura do proletariado tal e qual surgiu. Esquece-se de que a ditadura do proletariado não é um fim, mas um meio, e que se não se tomam medidas para preparar o advento do autogoverno, ela corre o risco de se transformar no seu oposto. Provavelmente, este desvio de compreensão terá sido o responsável por erros cometidos na construção e funcionamento do Estado socialista. Em seguida, abordaremos este aspecto. Antes, é necessário frisar que o poder proletário é mais democrático não apenas por ter nascido da revolução, por sua inspiração, motivação e missão histórica, mas também pelas formas institucionais que criou – sempre ressalvando que estas não são fabricadas, nem definitivas, nem universais.
Por que as funções do Estado revolucionário e as justificativas para sua existência não se esgotam com o esmagamento da reação das antigas classes dominantes? A experiência de construção do socialismo mostra que a pequena burguesia tem longa sobrevida. Isto, conjugado com a pressão externa exercida sobre o socialismo pelos países imperialistas, forma uma base objetiva para a existência de uma oposição de classe ao socialismo, que se manifesta de maneira ora sutil e camuflada – é o caso do período em que os revisionistas prepararam a usurpação do poder antes do XX Congresso do PCUS – ora por meio da eclosão de movimentos contra-revolucionários – caso dos levantes de 1956 na Polônia e na Hungria. Todo o período de transição que vai da tomada do poder pelo proletariado até o surgimento da sociedade sem classes é constituído por uma luta de classes entre dois caminhos – o burguês e o proletário. E a ditadura do proletariado, com suas instituições, é tão somente o regime político que viabiliza essa passagem.
A luta social no período de transição para o comunismo se dá em múltiplas frentes – política, econômica, ideológica. Constitui a força-motriz do desenvolvimento da sociedade e impregna o conjunto da vida social. Ela tem a ver com o esforço para eliminar os antagonismos entre camadas da população, os desníveis de renda e entre cidade e campo; para superar o atraso e transformar os valores ideológicos do socialismo em valores universais.
Mas por muito tempo é, e será, uma luta fundamentalmente política. E na luta política, encabeçada pelo Partido Comunista no poder, o caráter de massas é imprescindível. Daí por que é desastroso, como a amarga experiência demonstra, subestimar o aspecto democrático do regime socialista.
Segundo a concepção marxista-leninista, o Estado socialista é uma ditadura de maneira nova porque reprime a minoria, as antigas classes exploradoras; e uma democracia de maneira nova porque expressa e defende os interesses e a vontade da esmagadora maioria da população. Nesse sentido, o Estado socialista é também uma expressão organizada, em nível superior, da aliança entre a classe operária e as demais camadas trabalhadoras e intermediárias, interessadas na superação do capitalismo e na construção de uma sociedade livre da exploração do homem pelo homem. Assim, a luta de classes no socialismo não pode se voltar politicamente contra os trabalhadores e seus aliados.
Seu aspecto principal, vencida a etapa inicial da revolução, não pode ser o coercitivo e/ou repressivo. Seu método não pode ser administrativo, militarista, tecnocrático ou comandista, o que inexoravelmente conduz à violação dos direitos coletivos e individuais dos trabalhadores em nome de quem o Estado se ergue e funciona.
Assim como a revolução não é obra de um pequeno pugilo de intelectuais, conspiradores ou revolucionários profissionais, também a construção do socialismo não é obra de funcionários de aparatos, de dirigentes do partido, administradores de órgãos estatais, hierarcas das forças armadas ou tecnocratas. É obra de milhões de pessoas. Mais do que em qualquer outro período histórico, é na época da construção do socialismo que a lei do materialismo histórico de que as massas são o sujeito da história encontra a mais ampla realização. A desconsideração desse princípio semeia o indiferentismo, a passividade e provoca o divórcio entre as massas e o poder.
Quiçá, os erros cometidos na condução do Estado socialista e o grau incipiente de democracia que este propiciou (bem entendido, em relação ao comunismo, porque em relação à falsa democracia burguesa a ditadura do proletariado é infinitas vezes mais democrática), possam ser atribuídos à falta de experiência, aos condicionamentos da época e mesmo à falta de tempo histórico para resolver a contento os problemas herdados do passado, como os novos problemas que a própria construção do socialismo engendra. Seja como for, é preciso retirar as lições que a experiência histórica deixa, pois somente assim será possível resgatar o socialismo e re-aglutinar forças para extrair resultados positivos do esforço revolucionário das massas e dos combatentes de vanguarda.
José Reinaldo Carvalho é editor do jornal A Classe Operária.
EDIÇÃO 19, NOVEMBRO, 1990, PÁGINAS 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47