"Ou capitalismo com democracia ou socialismo sem democracia", em meados dos anos 1970, num ensaio que ficou famoso – "Qual socialismo"? – o pensador italiano Norberto Bobbio formulou este dilema aparentemente insolúvel. As experiências históricas da construção do socialismo pareciam dar-lhe razão. E, hoje, o naufrágio dos regimes burocratizados do Leste europeu e o abandono aparentemente definitivo do caminho da construção do socialismo por aquelas nações parecem confirmar mais uma vez aquele diagnóstico segundo o qual socialismo e democracia seriam incompatíveis.

Gastou-se muito papel e tinta, nos anos seguintes, na discussão das relações entre democracia e socialismo. O "eurocomunismo", uma autoproclamada via européia "democrática" para o socialismo pretendia indicar uma passagem indolor para uma nova forma, superior, de organização da sociedade. Depois de Gorbachev e das mudanças que ele comandou, muitos políticos e intelectuais ligados a partidos progressistas aprofundaram essa opção pela "via pacífica" para o socialismo. Outros chegaram mesmo a abandonar essa perspectiva em troca de um capitalismo "atenuado" que evoluiria gradual e lentamente para socialismo.

Jarbas de Hollanda, líder do grupo ultra-reformista do Partido Comunista Brasileiro, por exemplo, propõe a substituição da noção de luta de classes pela de "parceria conflitiva" entre o capital e o trabalho (Folha de S. Paulo, 04-05-1990). Moema San Tiago, deputada federal do PSDB do Ceará, defende algo semelhante. O "grande problema do ponto de vista democrático não é o de organizar um partido de classe (que classe?), mas um partido representativo dessas grandes massas, interessadas em elevar seus níveis de vida material e cultural e de incrementar sua participação na coisa pública", escreveu ela. "Quanto ao Estado já é tempo de termos, frente a ele, uma atitude madura, de reconhecimento de seu duplo papel de coerção-legitimação, através do qual desistimos do 'golpismo' em favor de um processo de fortalecimento institucional fundado na abertura do Estado à sociedade e de suas políticas aos seus órgãos de representação coletiva. Este é o caminho democrático para a construção do socialismo no Brasil" (Folha de S. Paulo, 01-03-1990). Francisco Corrêa Weffort, da direção nacional do PT, defendeu recentemente que a luta de classes não existe mais nos países adiantados da Europa, sendo um anacronismo nos países pobres. Pregou também uma noção bastante elástica de socialismo: "uma sociedade socialista, no meu entendimento, tem empresário, tem burguesia. A diferença central em relação a uma sociedade capitalista é que aquelas alianças nas quais os trabalhadores joguem o papel principal exercem função hegemônica na sociedade" (Folha de S.Paulo, 27-08-1990). As ditas inovações têm raízes nas surradas teses de Bernstein na II Internacional

As raízes desse pensamento passam pelo debate dos anos 1970 aberto pelos "eurocomunistas" e vão mais longe – sua tradição alinha-se com as teses que, no final do século passado, nasceram entre os setores reformistas da II Internacional e que tiveram expressão nas obras de Eduard Bernstein e Karl Kautsky, defensores da evolução pacífica e legalista para o socialismo.

Modernamente, esse pensamento ressurgiu com força após a Segunda Guerra Mundial e generalizou-se nos anos 1960 e 1970 nos principais partidos comunistas europeus. O abandono da revolução, da luta de classes, da noção de ditadura do proletariado, e a aceitação das instituições parlamentares burguesas difundiram-se entre amplos setores do movimento de massas sob influência dos partidos reformistas em todo o mundo. Enrico Berlinguer, em 1977, dizia: a "democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista".

Santiago Carrillo, do Partido Comunista Espanhol, escreveu, num livro publicado em 1977: "Para as vias que nos propomos – a conquista de um socialismo que mantenha e enriqueça, dando-lhes, além disso, uma nova dimensão econômica e social, as liberdades democráticas políticas e os direitos humanos, que são um ganho histórico irrenunciável do progresso humano –, para a realização deste ideal, não basta nos desembaraçarmos de algumas fórmulas cunhadas por nossos teóricos – como a de ditadura do proletariado – nem afirmarmos nosso respeito pelo jogo democrático". (…) "A via democrática para o socialismo supõe um processo de transformações econômicas diferente do que poderíamos considerar como modelo clássico. Ou seja, supõe a coexistência de formas públicas e privadas de propriedade durante um longo período". Nesse sentido, a defesa das instituições políticas democrático-burguesas é essencial para ele. "No que tange ao sistema político instalado na Europa Ocidental, baseado nas instituições políticas representativas – o Parlamento, o pluralismo político e filosófico, a teoria da separação dos poderes, a descentralização, os direitos humanos etc. – esse sistema, no essencial, é válido e será ainda mais efetivo com uma base econômica socialista e não capitalista". Agnés Heller, uma filósofa húngara da chamada Escola de Praga, discípula de Georg Luckács, pregou idéias semelhantes, com grande repercussão em círculos reformistas e, principalmente, acadêmicos. "Os cânones democráticos, dado seu caráter formal, são passíveis de se converter tanto nos princípios básicos de uma sociedade socialista quanto nos de uma sociedade capitalista". O problema, diz ela, "é saber se é possível resolver contradições inerentes à noção de democracia formal sem abolir o direito à propriedade e sem que a sociedade seja confundida com o Estado".

No Brasil, muitos intelectuais ligados ao movimento democrático aderiram a idéias dessa espécie. Entre eles, destacam-se Carlos Nelson Coutinho (pela repercussão de suas obras) e Francisco Corrêa Weffort (por seu prestígio como professor universitário e, principalmente, pelo papel dirigente no PT desde sua fundação).

Weffort, de sua cátedra de professor e dirigente político, condena a definição classista das democracias modernas. "Chamar as modernas democracias européias atuais de burguesas só é possível à custa de um enorme empobrecimento da análise e, por conseguinte, da perspectiva política. Seria mais correto dizer que são democracias sob hegemonia burguesa, aliás, hegemonia em permanente disputa por parte dos trabalhadores. O problema dos trabalhadores nas democracias modernas é o de conquistar a hegemonia no campo de uma democracia que consideram sua".

Carlos Nelson Coutinho, um escritor tradicionalmente ligado ao PCB, participante hoje do governo paralelo do PT e respeitado intelectual acadêmico, foi talvez o mais completo e consequente difusor (e sistematizador) dessa revisão do marxismo no Brasil, autor de dois livros de grande influência – A democracia como valor universal e A dualidade de poderes.

Para ele, as formulações de Marx e Engels sobre Estado, de 1848 – isto é, do Manifesto Comunista – são anacrônicas e residualmente blanquistas. Inspirado nas idéias de Antonio Gramsci, Coutinho usa as expressões "restrita" e "ampla" para indicar as abordagens marxistas do Estado. "Restritas" seriam aquelas teses que encaram o Estado como instrumento político de domínio de uma classe; "amplas" aquelas que, ao contrário, pensam o Estado como resultado do conflito dos interesses contraditórios presentes na sociedade.

No Manifesto, Marx e Engels caracterizaram o Estado como um "comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia", uma concepção restrita, portanto. Outra tese marxista afirma a tendência à pauperização dos trabalhadores sob o capitalismo. Unidas, elas levariam a uma terceira tese. A necessidade de coerção permanente transforma a luta de classes naquilo que Marx considerou como uma "guerra civil mais ou menos aberta que lavra na sociedade atual". Isso impunha – diz Coutinho – a transição ao socialismo por uma "explosão insurrecional" e uma "ruptura súbita e violenta da ordem burguesa".

Nelson Coutinho repete fraude denunciada por Engels em carta de 1895

As concepções "restrita" do Estado e "explosiva" da revolução, diz Coutinho, teriam sido superadas (pelo menos parcialmente) nas obras posteriores dos fundadores do marxismo. Ele tenta basear suas idéias reformistas na famosa “Introdução” de Engels, de 1895, para o livro de Marx As lutas de classe na França – exatamente como os reformistas da II Internacional. Diz que Engels teria defendido, nesse texto, uma "concepção processual" de transição ao socialismo, indicando a possibilidade de uma tática de luta operária "nos quadros da legalidade democrática".

O próprio Engels denunciou e protestou, numa carta a Kautsky (01-04-1895) contra essa falsificação de suas idéias, fraude que, omitindo trechos de sua “Introdução”, o reduziu – reclamou ele – a um "adorador pacífico da legalidade custe o que custar". Coutinho não faz conta disso, porém, e vai adiante. Nessa nova Concepção, diz ele, o Estado não é mais o comitê das classes dominantes, mas sim "fruto de um pacto", Marx e Engels são reduzidos a pensadores liberais – defensores de uma teoria contratual do Estado –, que encaram o Estado como um corpo político situado acima das classes. Mas só um Estado assim – acima das classes – poderia servir aos objetivos reformistas.

Sua transformação pode ser concebida como um processo que ocorre por dentro do Estado. Inspirado na História da Revolução Russa, de Trotsky, Coutinho fala em "infiltração molecular da classe revolucionária no seio dos aparelhos de Estado" capaz de iniciar, embrionariamente, a transformação da máquina estatal e levando a uma situação de "duplo poder" dentro do próprio Estado, onde os interesses dos trabalhadores poderiam, por via parlamentar e legal, sobrepor-se gradualmente aos das classes dominantes. Em consequência, pensa Coutinho, o "Estado não é encarnação direta e imediata dos interesses da classe dominante"; é "também o resultado de um equilíbrio dinâmico e mutável entre classes dominantes e classes subalternas, no qual estas últimas conseguem implantar e expandir posições de poder no seio dos aparelhos de Estado".

Coutinho diz que as concepções "restrita" do Estado e "explosiva" da revolução estão ultrapassadas e são pobres teoricamente. Ao mesmo tempo – está implícito em seu texto – elas levariam a soluções de força que sufocariam a democracia na passagem para o socialismo. Ao contrário, as concepções "ampliada" do Estado e "processual" da revolução, mais adequadas às modernas sociedades capitalistas, seriam mais ricas teoricamente e teriam a vantagem de resguardar as conquistas democráticas obtidas pelos trabalhadores no processo de luta pelo socialismo. O conhecimento materialista dialético resulta – e exige – uma permanente verificação da validade das proposições, seja quanto às análises passadas que fazem parte da herança histórica deixada pelos clássicos, seja em relação às novas concepções que surgem. As teses iniciais do marxismo – a teoria do valor, a luta de classes como motor da história, a mais-valia, a imposição da ruptura revolucionária e de destruição do Estado burguês – precisam, constantemente, ter sua validade reafirmada com base na análise da luta política e da vida dos povos. Essas teses derivam não de um esforço puramente intelectual, mas do exame atento e rigoroso da realidade social, política e econômica.

Elas são a expressão abstrata, o reflexo em nossos cérebros, de determinações concretas, reais, que só perderão a validade quando deixarem de existir na vida real. Essas foram as características que permitiram ao marxismo afirmar-se como o pensamento científico da mudança social. Da mesma forma, as novas concepções devem refletir também as novas determinações que surgiram no mundo, e sua validez é ratificada pela demonstração inequívoca de que a mudança ocorreu, de que os fenômenos são de fato novos, e de que sua tradução conceitual corresponde ao movimento real, à dinâmica de sua existência fora de nossa consciência. O conceito deriva do objeto, de sua análise atenta e cuidadosa, de seu permanente enriquecimento com novas determinações – e é justamente isso que é preciso demonstrar, se se trata de um pensamento verdadeiramente materialista-dialético.

O revisionismo do nosso tempo apresenta como novas uma série de teses – o fim da luta de classes, a transformação evolutiva do Estado, a manutenção do aparato estatal burguês, a convivência do socialismo com a propriedade privada e com uma classe de proprietários, a evolução pacífica e parlamentar para o socialismo, o Estado acima das classes etc.

Para cada uma das teses originárias do marxismo, os reformistas apresentam reformulações que eliminam o caráter revolucionário e científico do pensamento social da classe operária, e o transformam em mera apologia da democracia burguesa. Longe de ameaçar os limites do sistema capitalista, colocá-los em questão, apontar para a necessidade – e possibilidade – de sua superação. Preocupam-se em aperfeiçoá-lo, "humanizá-lo", domesticá-lo, melhorar as formas de convivência entre exploradores e explorados. Um teórico social-democrata, o professor Adam Przeworski, da Universidade de Chicago, reconhece esse fato sem rodeios. "Os social-democratas", escreveu ele, "não conduzirão as sociedades européias ao socialismo. Mesmo se os trabalhadores preferissem viver sob o regime socialista, o processo de transição levaria necessariamente a uma crise antes que o socialismo pudesse ser organizado. Para atingir os picos mais elevados, é necessário atravessar um vale, e essa descida não pode ser empreendida sob condições democráticas".

Essa é a questão central no debate da via pacífica ou insurrecional para o socialismo: como se dará e quem conduzirá a travessia, a transição? O pensamento social-democrático – e o revisionismo contemporâneo é uma variante dele – tergiversa sobre esta questão. Eles aderiram à tese liberal do Estado neutro, pairando acima das classes. Os reformistas não consideram que o Estado burguês é um produto histórico, moldado para viabilizar o sistema capitalista em seu conjunto. Por isso, o Estado pode ser autônomo em relação à classe dominante – porque ele defende os interesses gerais dessa classe. Desempenha também duas funções essenciais para o bom andamento dos negócios e da produção capitalista: a coerção e a persuasão. Através de seus instrumentos policiais, jurídicos e militares, o Estado promove a coerção – faz aplicar a lei contra os insatisfeitos, inconformados, desajustados ou revoltosos. Simultaneamente, organiza o consenso social, a legitimação do domínio de classe, mobilizando poderosos instrumentos de persuasão (escola, Igreja, imprensa, sindicatos, partidos etc) responsáveis pela soldagem, pela coesão, do conjunto da sociedade. A força física e o convencimento andam juntos, e não separados – como quer o sonho reformista. Quando o convencimento falha, a força física intervém e restabelece o equilíbrio das coisas.

Historicamente o Estado burguês é moldado para servir ao capitalismo

O Estado burguês foi moldado, pouco a pouco, através dos séculos, para servir ao capitalismo – e não poderia ser de outra forma! Suas instituições, métodos, formas de governo, orçamentos, até mesmo a forma como são feitas as estatísticas, demonstram essa verdade palmar.

Em sua luta contra o absolutismo feudal, a burguesia contrapôs o princípio da soberania popular à teoria do direito divino dos reis. Todo poder emana do povo – essa foi a primeira etapa da formulação democrático-burguesa. Logo, contudo, os ricos – a burguesia e os que aliaram-se a ela nas lutas contra as monarquias absolutas – perceberam que o exercício da soberania popular poderia ser perigoso para seus interesses. Uma segunda etapa da formulação democrático-burguesa deu-se então: o exercício da soberania popular passou a ser atribuição de uma Assembléia de representantes eleitos. Estava fundado o princípio da representação, portanto.

Com isso nascia o parlamento moderno – essa vestal "neutra" e "pura" do sonho dos reformistas. O parlamento, porém, não foi uma criação das massas revolucionárias, como a Comuna de Paris e os sovietes que dirigiram a revolução russa em 1917. "Foi moldado gradual e lentamente – diz o historiador norte-americano George Novack – como um instrumento político pelas camadas altas da burguesia, que se viam obrigadas a disputar a supremacia contra a monarquia absoluta pela sua ala direita, e contra os plebeus, pela esquerda". Esse parlamentarismo, continua Novack, com ou sem monarquia complacente, emergiu do laboratório da história européia ocidental como o modelo a seguir para levar a cabo a dominação dos donos da riqueza sobre o resto da Nação através de formas mais ou menos democráticas".

O Parlamento é um instrumento para levar a cabo a dominação dos poderosos

Mas o parlamento, que poderia ser contaminado pelas pressões democráticas – principalmente depois da generalização do sufrágio universal, entre o final do século passado e o começo deste –, não era bastante confiável para proteger os interesses da alta burguesia e defender, em última instância, a propriedade privada. Cromwell, Locke, Benjamin Constant, Kant, uma lista enorme de políticos e teóricos da burguesia, defenderam o sufrágio de proprietários, recusando o reconhecimento de direitos eleitorais aos pobres, aos trabalhadores, aos que não tivessem um nível mínimo de propriedades ou de renda, exigidos corno requisito para a qualificação eleitoral. Em 1821, um político conservador norte-americano dizia, em uma convenção realizada em Nova Iorque: "a tendência ao sufrágio universal é a de pôr em perigo os direitos de propriedade e os princípios da liberdade".

Era preciso controlar o Parlamento, e a divisão dos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário, separados e autônomos entre si – cumpriu esse papel. Locke foi o primeiro a propô-la, ele que era partidário de um compromisso entre a burguesia inglesa e a nobreza aburguesada, compromisso liderado por um monarca cujos poderes seriam limitados por uma Constituição. Montesquieu desenvolveu as idéias de Locke. Ele era um nobre francês que queria a forma da monarquia absoluta como condição para sua sobrevivência numa época – o século XVIII – em que a luta de classes se aprofundava e deixava entrever uma solução radical para os conflitos sociais. Nos EUA, a divisão em três poderes permitiu manter o Legislativo sob controle de um "poderoso Executivo presidencial, que assumiria alguns dos poderes dos monarcas", diz George Novack. Outra forma de controlar o Legislativo foi a criação do Senado, composto por representantes dos Estados. "Fazer emendas à Constituição se fez difícil. Toda revisão devia ser ratificada por três quartos dos Estados, em lugar de por uma maioria de Estados e votantes. A escravidão, junto a outras formas de propriedade, foi garantida" dessa forma.

Na França, a República consolidou-se sobre os túmulos dos heróis que tombaram em defesa da Comuna de Paris. A democracia foi instaurada de modo durável e sob forma republicana pela Constituição de 1875, que fundou a III República. Em 1871, os republicanos conservadores uniram-se aos algozes da Comuna e desmancharam, assim, a pecha de radicalismo que envolvia a República. "A derrota da Comuna de Paris e a participação que nela tiveram os republicanos tiveram uma consequência fundamental que permitiu à República se instaurar solidamente a seguir", dizem os escritores Alain Bergounioux e Gerard Brunberg. Com a República, foi criado também o Senado eleito de forma mista: parte dos senadores era indicada em caráter vitalício pela Assembléia Nacional; os demais eram eleitos nos departamentos, por colégios eleitorais indiretos formados por funcionários públicos. "No conjunto – diz o historiador Arno J. Mayer – esse arranjo eleitoral se destinava a garantir a representação injustificável e excessiva das aldeias e vilas em comparação a Paris e outras grandes cidades".

Com algumas modificações, o sistema parlamentar francês funcionou bem até a Primeira Guerra Mundial, mas emperrou em seguida. "A Constituição, quando das eleições de 1936, de um forte eleitorado comunista e seu reforço em 1945 tornarão cada vez mais difícil seu funcionamento", dizem Bergounioux e Brunberg. A ocupação alemã de 1940-1944 erradicou o "perigo", temporariamente. Após a guerra, a pressão eleitoral popular colocou outra vez o sistema em xeque e, em 1958, a Assembléia se auto-dissolveu e outorgou poderes ditatoriais ao general Charles de Gaulle, cujas reformas fortaleceram o Executivo, diminuíram os poderes do Parlamento e enfraqueceram os partidos.
Em outro país avançado da Europa do começo do século, a Alemanha, o resultado dessa experiência foi trágico. A derrota alemã na guerra, em 1918, foi o estopim para um movimento revolucionário de enormes dimensões – talvez o maior já visto numa nação européia moderna. Mais de 10 mil conselhos de operários e soldados se formaram nas cidades alemãs, criando condições semelhantes às russas para a tomada do poder por um partido revolucionário. A liderança do Partido Social-Democrata alemão, porém, fez de tudo para conter a revolução. Friedrich Ebert, presidente do partido desde 1913, foi nomeado primeiro-ministro após a queda da monarquia e, imediatamente, apelou ao povo para deixar as ruas e assegurar a calma e a ordem. Ele chegou mesmo a pactuar secretamente com os militares para derrotar a revolução, diz o historiador Gilbert Badia.

Os revolucionários alemães, liderados por Rosa Luxemburgo e Karl Liebnecht, não conseguiram quebrar o círculo de ferro com que Ebert e seus asseclas cercaram a revolução, e acabaram assassinados por milícias paramilitares, em março de 1919. Embriões do fascismo que imporia uma noite negra à Alemanha . E menos de duas décadas mais tarde, esses grupos paramilitares – autênticos esquadrões da morte – agiam livremente, acobertados pelas autoridades policiais do governo social-democrata.

Estados Unidos e Alemanha são exemplos da limitação dos direitos do povo

Em nossos dias, duas nações apontadas como exemplo de democracia desenvolvida, a Alemanha e os Estados Unidos, são exemplo da limitação imposta pelo regime burguês aos direitos do povo.
A Alemanha, sob o social-democrata Willy Brandt, conheceu uma "singular concepção de ampliação da democracia", diz Jean Claude Poulain. Em 1972, Brandt criou os famosos Berufsverbote ("proibição profissional") proibindo que comunistas e oposicionistas pudessem trabalhar como professores, magistrados, funcionários públicos (mesmo nos correios ou nas ferrovias). No começo dos anos 1980, eles atingiam mais de 4 mil pessoas na Alemanha, e eram apenas a ponta de um iceberg. Outras formas de legislação de exceção coexistiam com tais proibições; como a que autoriza a repressão policial contra manifestantes, a restrição aos direitos de defesa, a extensão dos direitos policiais de investigação, tornando possível que estas ocorram sem testemunhas e sem ordem judicial escrita.
Nos Estados Unidos, os ataques à democracia não são tão claros, embora existam. O historiador Bertram Gross publicou, em 1980, um estudo significativamente intitulado Friendly Fascism – the new face for power in America ("Fascismo amigável – a nova face do poder na América"), onde descreve a rede informal do poder dos super-ricos, aquilo que o povo norte-americano chama de “governo invisível", formado pela interação entre as estruturas econômicas e políticas – e onde esse aspecto decisivo do exercício do poder, que é a riqueza e sua capacidade de influenciar as decisões, fica fora dos controles institucionais. "Acordos e decisões privadas – e o bem protegido segredo que os envolve – têm um largo papel nas operações desse governo invisível; isto dá o mistério inerente ao Establishment", diz o historiador:

“Fica difícil demonstrar, assim, que o Estado moderno deixou de ser o "comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia". C. Wright Mills já havia descrito a intrincada rede do poder americano, a soldagem indelével dos interesses privados com o governo, em seu livro A elite do poder, de 1956. Recentemente, a revista Forbes (edição de 19-02-1990) publicou uma lista dos 50 mais ricos congressistas norte-americanos. Ela demonstra a massacrante presença dos muito ricos no Parlamento e sua influência nos meios de decisão. Esse grupo é dono, em média, de patrimônios avaliados em 26,6 milhões de dólares cada parlamentar. O mais rico tem 460 milhões de dólares; o menos rico, 1,8 milhão. A lista também revela que, nesse grupo, 19 são senadores – e eles são, decididamente, muito mais ricos que os 31 deputados arrolados. O patrimônio médio de cada um dos senadores é de 58 milhões de dólares, enquanto o dos deputados é de 7,5 milhões. Essa é uma amostra de quase 10% dos 535 parlamentares norte-americanos (100 senadores e 435 deputados). Parlamentares que são, seguramente, muito mais ricos do que a média do povo norte-americano. Como nos primeiros tempos do sistema parlamentar – quando só os ricos votavam e eram votados – mesmo hoje o parlamento burguês pode ser considerado um soviete dos proprietários!

Outra faceta do poder institucionalizado, visível, que permeia a sociedade norte-americana que dá a ela um caráter quase totalitário, é o descrito pelo pesquisador Christopher Lasch. Ele mostra como o crescimento do sistema educacional e do serviço social "socializou" todos os aspectos da vida dos trabalhadores norte-americanos, como alternativa para o conflito de classes. Tais sistemas desenvolveram uma concepção da ação terapêutica do Estado e "as reformas que se apresentaram como o máximo de esclarecimento ético carcomeram os direitos do cidadão comum". Os poderes coercitivos do Estado, disfarçados sob o desejo de agir de forma amigável e ajudar a resolver os problemas, combinam-se aqui com os mecanismos consensuais, persuasivos, infiltraram-se em todos os cantos da sociedade. Atuando em áreas como a saúde pública, a instrução moral, o auxílio psíquico, os novos organismos de assistência social transformaram os cidadãos em tutelados sociais, cujas decisões podem, a critérios fora de qualquer controle, ser modificadas por "autoridades" que agem em "benefício do cidadão". A situação de minoridade política e social decorrente é grave, segundo o autor. Ele mostra que, em 1977, uma em cada oito pessoas com mais de dezessete anos de estudos (universitários, portanto) acredita que o presidente dos Estados Unidos não deve obedecer às leis; além disso, uma em cada duas pessoas pensava que os membros do Congresso são indicados pelo presidente.

São muito frágeis as defesas das virtudes da democracia no sistema burguês
As ilusões social-democratas a respeito das virtudes democrático-burguesas são frágeis, portanto. Ao longo da história, elas resultaram sempre de um equilíbrio precário. Seus limites são estabelecidos pelo consentimento dos trabalhadores. Quando abrem-se períodos de crise em que o domínio da burguesia é ameaçado, a legalidade rompe-se e a coerção – que era oculta pelo consentimento – torna-se crua. Na Alemanha, na França, na Itália, nos Estados Unidos, no Brasil, no Chile, em todas as partes, a legalidade constitucional dificilmente conseguiu sobreviver a ameaças – e, significativamente, a iniciativa de rompê-la partiu sempre dos poderosos, da burguesia e seus aliados, sob governos complacentes ante flagrantes violações de direitos constitucionais conquistados pelo povo depois de muita luta.

A tese social-democrata da democracia como valor universal mal esconde seu caráter apologético do sistema capitalista. Em primeiro lugar, ela confunde uma situação histórica precisa – a democracia burguesa – com conquistas definitivas da humanidade. Lênin, em seu tempo, enfrentou debate semelhante. Estas teses falam, escreveu ele, "em conceitos 'democracia em geral' e 'ditadura em geral', sem colocar a questão de classe que se tem no presente. Essa forma de colocar a questão à margem das classes ou por cima delas, desde o ponto de vista – como dizem falsamente – de todo o povo, é uma descarada mofa da teoria principal do socialismo, isto é, a teoria da luta de classes, reconhecida pelos socialistas que passaram para o lado da burguesia de palavra e esquecida na prática. Porque em nenhum país capitalista civilizado existe a 'democracia em geral', pois o que existe neles é unicamente a democracia burguesa". E, no socialismo, acrescenta Lênin, "do que se trata não é da 'ditadura em geral', mas sim da ditadura da classe oprimida, isto é, do proletariado, sobre os opressores e os exploradores, isto é, sobre a burguesia, a fim de vencer a resistência que os exploradores opõem em sua luta pela dominação".

Com a única exceção de que, hoje, mesmo em palavras, muitos reformistas não reconhecem a luta de classe, o texto de Lênin permanece atual. Ao falar em "democracia como valor universal", os social-democratas dão um caráter definitivo à atual forma de organização das sociedades ocidentais e da institucionalização do poder político nelas existente. Deixam de reconhecer, em contrapartida, que o Estado democrático-burguês – e os direitos que o povo arrancou das classes dominantes – compõe um equilíbrio instável entre classes antagônicas, uma situação provisória e mutável que a menor mudança na conjuntura econômica e social pode alterar radicalmente.

Outro aspecto que as teses reformistas não consideram é o fato de as democracias ocidentais serem, na verdade, ditaduras da burguesia. Na acepção científica clássica, ditadura refere-se à forma de governo e aos limites institucionais colocados para as mudanças políticas, econômicas e sociais. Só modernamente a expressão ditadura foi encarada como sinônimo de tirania, de governo arbitrário. A ditadura é, numa concepção não vulgar, o conjunto de regras e instituições que definem, num dado contexto histórico, os limites que a luta política não pode ultrapassar. Ela é, assim, o governo de uma classe, cujos regimes podem ser mais ou menos abertos, variando do terrorismo de Estado (como no fascismo) às várias formas de democracia parlamentar. O limite da ditadura da burguesia é, em última instância, a defesa da propriedade privada, das relações de produção capitalistas e da estrutura de distribuição, entre os membros da sociedade, dos bens produzidos pelos trabalhadores.

A ditadura do proletariado, tão vilipendiada hoje, resulta da necessidade de superar, na luta por uma sociedade nova e mais avançada, os limites impostos pela ditadura da burguesia. A mesma dialética consenso-coerção que domina sob a ditadura da burguesia manifesta-se aqui. A diferença fundamental é que, sob a ditadura do proletariado, o Estado burguês e suas instituições são destruídos, dando lugar a uma nova forma de organização do poder político. "O proletariado deve derrubar primeiro a burguesia e conquistar o poder estatal, utilizando depois esse poder, isto é, a ditadura do proletariado, como instrumento de sua classe a fim de conquistar a simpatia da maioria dos trabalhadores", escreveu Lênin em 1919. Em seguida à tomada do poder do Estado, deve implantar seu próprio aparato estatal, quebrando "definitivamente a dominação, o prestígio e a influência da burguesia e dos conciliadores pequeno-burgueses entre as massas não-proletárias". Finalmente, precisa derrotar a influência desses elementos entre o povo, "dando satisfação revolucionária às necessidades econômicas destas massas, às expensas dos exploradores". A luta não termina aqui, porém, Lênin enfatiza também que o "proletariado, ao conquistar o poder estatal, não interrompe sua luta de classes, mas a continua em outra forma e com outros procedimentos".

A propriedade é a chave para ter direitos no mundo onde domina o capital

A questão fundamental aqui não é, como Bobbio diz, capitalismo com democracia ou socialismo com ditadura. A questão fundamental, na verdade, é ditadura da burguesia ou ditadura do proletariado. O que os reformistas chamam de "democracia" é a ditadura da burguesia, e são apenas suas instituições que definem, para eles, o sistema democrático. Eles não conseguem conceber outras formas de democracia. Os reformistas pregam – mas não demonstram – que o Estado moderno deixou de ser um Estado de classe e transformou-se na arena onde ocorrem os conflitos sociais. Ele estaria, assim, acima das classes e a organização do poder político seria resultado da correlação de forças existente na sociedade. Formalmente – e só aparentemente – os reformistas têm razão. Mas, dizia Marx, como a aparência e a essência não são a mesma coisa, a ciência deve desvendar aquilo que a aparência oculta. O Estado burguês – que se apresenta como instância politicamente neutra – esconde em suas entranhas o segredo do domínio de classe e, sob ele, a democracia só existe, de forma efetiva e completa, para a minoria de proprietários e seus aliados. Sob a ditadura da burguesia, mesmo a democracia mais completa tem esse limite. A propriedade – e o acesso a ela – é a chave para o pleno exercício de todos os outros direitos humanos das democracias burguesas: o direito de ir e vir, o direito de reunião, a livre manifestação do pensamento, o livre e pleno desenvolvimento da personalidade, o respeito à vida e à saúde, o direito ao trabalho e ao acesso aos meios de vida etc. A própria igualdade que o direito burguês sanciona não passa de mera figura jurídica; ela desaparece quando se considera a situação social dos homens sob o Estado burguês. Uma ínfima minoria concentra propriedades, bens e riquezas, enquanto a maioria imensa – cujo trabalho cria os meios de vida para toda a sociedade – mal consegue obter o indispensável à sua sobrevivência imediata. Essa realidade, cotidiana em países pobres como o Brasil, parecia eliminada nos países capitalistas centrais – mas que a crise do capitalismo de nossos dias insiste em ressuscitar, contrariamente à tese reformista, que havia proclamado a superação dessa verdade elementar.

O desafio colocado para os reformistas é encontrar na realidade diária do capitalismo contemporâneo, as determinações que dêem concretude aos seus conceitos. Eles precisam demonstrar que os conceitos correspondem à realidade, exprimem aspectos que estão presentes nas relações entre os homens. Precisam demonstrar que a ditadura da burguesia é um valor universal, que ela permite uma democracia mais ampla do que aquela que a ditadura do proletariado, apesar de todos os trágicos desencontros de sua curta história, ainda promete.

José Carlos Ruy é jornalista.

Bibliografia
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EDIÇÃO 19, NOVEMBRO, 1990, PÁGINAS 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21