Aprender de novo o que aprendeu-se errado
Já vem de alguns anos um longo processo de revisão da história brasileira, realizado por intelectuais progressistas. Busca-se recuperar, para a historiografia, um personagem no geral esquecido nos compêndios escolares e obras de autores "oficiais": o povo.
O professor Clóvis Moura é um dos que mais tem se destacado nesse processo de repensar a formação do Brasil. Seu empenho se dá, em particular, no estudo sobre a participação do negro no desenvolvimento nacional, tendo inclusive produzido uma obra já considerada clássica, pela sua densidade e cunho científico: Rebeliões na Senzala.
Agora o professor fez um outro tipo de trabalho. A análise de "como o negro é descrito ou simbolizado na nossa historiografia e os diversos níveis de deformação ou incompreensão etnocêntrica, os preconceitos e os julgamentos de valor negativos embutidos e registrados nessa produção historiográfica do passado, durante todo o tempo em que ela foi elaborada". A primeira parte de um projeto, patrocinado pelo Ministério da Cultura, é coordenado por Clóvis Moura, Décio Freitas e Joel Rufino dos Santos e intitulado História geral do negro no Brasil.
O novo livro de Clóvis Moura chama-se As injustiças de Clio – O negro na historiografia brasileira, publicado pela Oficina de Livros, de Belo Horizonte. Clio, a quem se refere o título, era a musa da História na mitologia grega. Ao longo de 217 páginas, Clóvis Moura analisa em especial as obras de Frei Vicente do Salvador, Rocha Pita, Southey, Abreu e Lima, Varnhagen, Armitage, Handelmann, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna – todas, com exceção de Abreu e Lima, repletas de discriminações contra os negros, algumas fazendo mesmo a defesa aberta do racismo.
Negror dos tempos
Clóvis Moura alerta para o fato de que apesar "das diversas posições em que esses historiadores se situam, uma coisa lhes é comum: a visão de que os negros, índios e mestiços em geral são elementos bárbaros, pagãos, gentios sem capacidade civilizadora, e os brancos, detentores das estruturas de poder, aqueles elementos que impulsionaram a nossa sociedade em direção à civilização".
O autor chama a atenção para o papel do pensamento religioso, em especial o cristão, para justificar as arbitrariedades contra os negros. É o caso, por exemplo, de um sermão do padre Vieira, feito em 1633 na Bahia, onde pontificava: "Escravos, estais sujeitos e obedientes em tudo aos vossos senhores, não só aos bons e modestos, senão também aos maus e injustos… porque nesse estado em que Deus vos pôs é a vossa vocação semelhante à de seu Filho, o qual padeceu por nós, deixando-vos o exemplo que haveis de imitar", ou de Frei Vicente do Salvador, que em sua História do Brasil, escrita na primeira metade dos anos 1600, pede providências "principalmente contra os negros de Guiné, escravos dos portugueses que cada dia se lhes rebelam e andam salteando pelos caminhos e se não fazem pior é com medo dos ditos índios, que com um capitão português os buscam e os trazem presos a seus senhores".
Ao analisarem episódios onde os negros são os principais protagonistas ou têm atuação de importância impossível de ser negada ou esquecida, os historiadores não abrem-mão da parcialidade. O Quilombo de Palmares – uma "grosseira odisséia", no dizer de Euclides da Cunha – tem o seu extermínio saudado. Rocha Pita chega inclusive a inventar que Zumbi teria cometido suicídio. Na disputa do território pernambucano por holandeses e portugueses, os negros são uma malta de desordeiros incendiários. A Inconfidência Baiana de 1798 é relegada a um movimento baderneiro. E por aí vai.
Pensamento presente
Varnhagen, considerado o "pai da historiografia brasileira", defende com todas as letras o "branqueamento" do Brasil: "Fazemos votos para que chegue um dia em que as cores de tal modo se combinem que venham a desaparecer totalmente no nosso povo os característicos de origem africana". E justifica a escravidão, alegando que os negros "passando à América, ainda em cativeiro, não só melhoraram de sorte, como se melhoravam socialmente, em contato com gente mais polida e com a civilização do cristianismo. Assim a raça africana tem na América produzido mais homens prestimosos e até notáveis do que no Continente donde é oriunda".
EDIÇÃO 20, FEV/MAR/ABR, 1991, PÁGINAS 78