O governo anunciou, em meados de setembro de 1990, sua proposta de negociação da dívida externa. Procurou transmitir à opinião pública a falsa idéia de que ela representaria o caminho de uma negociação soberana. Mais do que depressa, setores da oposição sucumbiram ao canto da sereia e anunciaram o seu apoio à proposta governamental. Todavia, a proposta do governo, longe de representar os interesses nacionais, atende aos interesses dos banqueiros estrangeiros.

A ministra Zélia Cardoso esteve na Comissão de Renegociação da Dívida Externa no Senado, em outubro de 1990, para expor a proposta brasileira de negociação da dívida. Ela apresentou o cerne da posição do governo, ao afirmar que a proposta "não contempla a redução da dívida, não pede a redução da dívida", e que "o Brasil está pronto a pagar a dívida na sua integralidade". Na mesma oportunidade, falou o negociador da dívida, embaixador Jório Dauster, que ressaltou a mesma questão, ao afirmar: "o Brasil não foi chorosamente pedir uma redução substancial dessa dívida", mas sim dizer que o credor que confiasse no Brasil, e se dispusesse a ser seu sócio no crescimento, iria "receber até o seu último centavo". Ora, não se trata de chorosamente pedir a redução da dívida. Trata-se de não reconhecer a legitimidade de uma dívida, fruto de imposições unilaterais dos banqueiros internacionais. Mas sobre o caráter da dívida externa brasileira discorreremos adiante.

A ministra da Economia afirmou: "em nenhuma das propostas trabalhamos com juro flutuante. Em todas as propostas trabalhamos com juro fixo”. No entanto, essa mesma ministra aceita o pagamento de uma dívida ilegítima, em grande parte decorrente, no passado, do aumento abusivo das taxas de juros flutuantes.

Partindo, assim, do reconhecimento da “legitimidade” do montante da dívida, o governo amplia o perfil do seu pagamento, dilatando o seu prazo. Para isso, fixa como critério a capacidade de pagamento do setor público, já que a dívida externa privada não entra nessa negociação.

“Paga integralmente títulos que valem só 25% do valor nominal da dívida”

Segundo o senhor Antônio Kandir, secretário de Política Econômica, a capacidade de pagamento decorre do superávit primário do governo, da receita por emissão monetária não inflacionária, da receita por juros correspondentes às reservas internacionais depositadas e do fluxo de financiamento externo ao setor público. Isso equivale a dizer que a capacidade de pagamento inclui o chamado dinheiro novo, ou seja, novos empréstimos para pagar dívidas antigas. E essa é simplesmente a continuidade de uma política que vem sendo adotada há muito tempo e cuja consequência é o crescimento ainda maior da dívida externa.

O governo pretende, ainda, transformar a dívida em bônus, com prazos de resgate e juros diferenciados, assegurando aos credores que pagarem em maior tempo o recebimento total dos seus créditos. Os bancos que desejarem um pagamento antecipado de suas dívidas devem participar de um leilão, onde o deságio do título é fixado livremente. São criados três bônus. O Bônus de Saída, com prazo de resgate em 15 anos. O Bônus com Juros Reduzidos, com prazo de resgate de 25 anos. E o Bônus Coupon Zero, com prazo de resgate de 45 anos. Aparentemente, tal proposta poderia parecer um avanço significativo no tratamento da dívida externa. É evidente que, nos marcos de uma política que atenda aos interesses da política dos banqueiros internacionais, esta proposta é menos ruim do que o pagamento da dívida nos moldes anteriores, porque permite ao governo reduzir o pagamento dos serviços da dívida para investir no desenvolvimento do país.

A proposta do governo Collor apenas amplia o prazo de pagamento da dívida, podendo reduzi-la parcialmente, em decorrência de opção feita pelos próprios banqueiros em receber mais rapidamente. Na realidade, o País continuará pagando uma dívida ilegítima por muito tempo, mantendo, portanto, a dependência do País aos banqueiros internacionais.

“Troca por ações é crime contra patrimônio a favor de multinacionais”.

O alcance dessa política, no entanto, fica mais claro quando se sabe que o pagamento da dívida será feito pelo valor nominal. Ora, os títulos da dívida externa brasileira foram negociados em novembro deste ano, por 23 e 26 centavos por dólar. Isso equivale a dizer que o pagamento de 25% da dívida representam, na realidade, saldá-la do ponto de vista do seu valor real. Efetuado esse pagamento, o País continuará devendo, ainda, os outros 75%, além dos juros correspondentes. Portanto, esta proposta, longe de ser boa, é um péssimo negócio e atende aos interesses, não do Brasil, mas dos banqueiros internacionais. Outro aspecto importante da proposta do governo diz respeito à conversão da dívida em ação das empresa estatais. Na reunião da comissão de Renegociação da Dívida, já referida, o embaixador Jório Dauster afirmou: o governo está admitindo que "a dívida possa ser convertida em participação acionária das empresas privatizadas". Tal política representa um crime contra o patrimônio público do País. Significa entregar para empresas multinacionais patrimônio público pelo valor nominal da dívida.

Aí fica absolutamente transparente o papel de dominação exercido pela dívida externa sobre os países do Terceiro Mundo. Em primeiro lugar, estimula-se o endividamento de tais países. Em seguida, através de inúmeros mecanismos, eleva-se a dívida a um montante impagável. Depois, pretende-se trocar papéis desvalorizados pelo patrimônio dos países dependentes. Esta política foi claramente descrita no documento chamado "Santa Fé II" do governo norte-americano, que fixa estratégias para a América Latina. Ali se fala da necessidade de utilizar "a atual crise da dívida para um mais amplo processo de transição na América Latina", afirmando ainda: "os mecanismos de conversão da dívida estão se mostrando um veículo eficaz para as nações devedoras latinas diminuírem a dívida externa".

Na verdade, esse processo de transição a que se refere o documento diz respeito a um maior controle dos centros nevrálgicos das economias latino-americanas por empresas estrangeiras. Tal política conduz, necessariamente, a um amplo e profundo processo de desnacionalização da economia brasileira, trazendo à tona a própria questão da soberania nacional. Isto porque decisões econômicas em setores essenciais do País serão tomadas não dentro, mas fora do Brasil.

Os defensores dessa política falavam inicialmente na privatização das estatais deficitárias. Aos poucos, a máscara começa a cair e o atual presidente da Petrobras chegou ao ponto de propor a desestatização daquela empresa, tida como de padrão internacional.

Durante a Assembléia Nacional Constituinte foi apresentado um Projeto de Decisão, não votado, de proibição de conversão da dívida em capital de risco. Na fundamentação da proposta, destacava-se que a queda do preço das ações na Bolsa de Valores tornava possível a compra das 50 maiores empresas instaladas no País por apenas 10,143 bilhões de dólares, sendo que a maior empresa, a Petrobras, tinha suas ações cotadas pelo valor de 1,650 bilhão de dólares, e a Vale do Rio Doce, considerada a maior companhia mineradora do mundo, tinha suas ações, na época, avaliadas em 389,864 milhões de dólares.

A conversão da dívida externa em ação das estatais, portanto, se transformará numa grande negociata em que o patrimônio público será vendido a preço de banana para as multinacionais, com graves consequências para o futuro do País.

Mesmo essa proposta, que não atende aos interesses nacionais, não será mantida pelo governo.
Os banqueiros internacionais dispõem de instrumentos de pressão para submeter o governo aos seus objetivos. Por um lado, a desativação progressiva dos créditos de curto prazo, que financiam as exportações, já teve como consequência uma redução no superávit da balança comercial. Além disso, os bancos credores passaram a pressionar seus governos e organismos multilaterais para suspenderem a liberação de empréstimos já contratados pelo Brasil.

Quando da vinda de Bush ao país, ele deixou muito claro que condicionava os investimentos de longo prazo no Brasil a um acordo com os bancos credores sobre a dívida externa. Um aspecto mais imediato da proposta ressaltava a disposição do Brasil de não pagar os juros da dívida externa este ano. Em pouco tempo, o governo voltou atrás dessa posição a pretexto de "flexibilizar" sua política e resolveu pagar parte dos juros da dívida. Tal decisão revela a falta de firmeza do governo no tratamento com os banqueiros internacionais. Já no primeiro embate sucumbe às imposições dos credores. A declaração do presidente do Lloyd's Bank, ao final de um almoço na Embaixada Brasileira em Londres, é ilustradora da mudança de posição do governo brasileiro. Diz o alto-executivo: "o Brasil começa a falar a mesma língua do sistema financeiro internacional".

“Crescimento brusco com a nociva política de vender tudo para pagar a dívida”.

Outro aspecto que suscita dúvida sobre a seriedade da proposta do governo Collor está no tratamento dado ao Congresso Nacional. A Constituição brasileira, no art. 52, Inciso VI, fala da competência privativa do Senado para dispor sobre "os limites globais e condições para alterações de crédito interno e externo". No entanto, o governo sequer apresentou uma proposta por escrito a ser apreciada pelo Senado Federal. Evidentemente apresentou-a aos banqueiros. E o que é mais grave, segundo denúncia da revista Isto é, Senhor, de 24-10-1990, o governo fez um acordo com os bancos credores, acertando que nenhuma das partes divulgaria os detalhes da proposta. Isso equivale a dizer que o governo acertou com os banqueiros que os seus termos não deveriam ser levados ao conhecimento da opinião pública ou do Congresso Nacional. Com o objetivo de impedir que o Congresso fixasse limitações ao processo de negociação da dívida, o governo Collor impediu a aprovação, pelo Senado Federal, de um Projeto de Resolução que, ao fixar normas para negociação da dívida, continha artigo proibindo o pagamento dos juros aos banqueiros internacionais antes da assinatura do acordo global sobre a dívida.

Tabela 1 (p. 13)

Através da tabela 1 pode-se perceber o crescimento vertiginoso da dívida externa brasileira. O país, que em 1970 devia 5,473 bilhões de dólares, chega a 1989 devendo 114,741 bilhões. Este quadro espelha a política brasileira de ampliar as exportações e reduzir as importações com o objetivo de assegurar o saldo na balança comercial para o pagamento da dívida. Tal política foi altamente lesiva aos interesses nacionais, porque restringiu o consumo interno, adotando o arrocho salarial e outros mecanismos, com o objetivo de gerar excedentes para exportação. Por outro lado, o governo adotou todo tipo de estímulos às exportações, financiando à custa do povo brasileiro a venda de nossos produtos a preços mais baratos no mercado internacional. E o objetivo de toda esta política, altamente lesiva aos interesses nacionais, era o pagamento dos serviços da dívida. Em 1988 o país bate o recorde, pagando mais de 24 bilhões de dólares de serviços da dívida externa.

Diante de tal quadro, cabe questionar a quem beneficiou a dívida externa brasileira. Na tabela 2 fica evidente que em 1972, 75,1% da dívida, realizada através da Lei 4.131, eram de responsabilidade do setor privado, sendo 47,8% do capital privado externo. As empresas multinacionais eram, portanto, nesta fase, as principais tomadoras de empréstimos estrangeiros. A indústria automobilística se destacou entre as grandes tomadoras de empréstimos, através da General Motors do Brasil S.A., Ford do Brasil S.A., e a partir de 1976 destaca-se a Fiat Automóveis S.A. e a Fiat Diesel do Brasil S.A. Entre as empresas produtoras de tratores, destacam-se Caterpillar do Brasil S.A., Massey Ferguson do Brasil S.A. e Fiat Allis Tratores e Máquinas Rodoviárias. Na indústria química destacou-se a Dow Química S.A. E na indústria de material elétrico e de comunicações, Siemens S.A., Ericsson do Brasil Comércio e Indústria S.A., AEG Telefunken do Brasil S.A. A conclusão evidente é de que as multinacionais foram as grandes beneficiadas desse endividamento externo do Brasil.

Tabela 2 (p. 14)

No final da década de 1970 começa o chamado processo de estatização da dívida externa brasileira, que consistia na liquidação, por parte dos credores, das dívidas em cruzeiro no Banco Central, pelo câmbio vigente. Neste processo, era possível antecipar o pagamento em relação ao vencimento do empréstimo em dólares, o que na prática correspondia a um seguro de câmbio para os tomadores de empréstimos internacionais. Ou seja, as empresas particulares, sobretudo as multinacionais, pagavam suas dívidas em cruzeiros, inclusive antecipadamente, não ficando à mercê das oscilações cambiais que evidentemente ampliam o volume da dívida. Além dos benefícios obtidos pelas multinacionais, repassando a dívida para o governo federal, elas ainda extraíram lucros fabulosos através da compra dos títulos da dívida pública, onde os juros pagos pelo governo eram altíssimos.

Progressivamente, o setor público foi substituindo o setor privado na captação de recursos internacionais. A tabela 3 mostra o papel que os setores de energia e transportes passaram a jogar no endividamento externo. Diante do crescimento vertiginoso das taxas de juros, o setor privado, tendo repassado suas dívidas para a União, se retraiu no processo de endividamento. No entanto, o governo necessitava de novos dólares para pagar os serviços da dívida e adotou, assim, a política de estimular o endividamento das empresas estatais, e isso de tal forma que, em 1981, o setor de energia devia 26,5% da dívida contraída através da Lei 4.131.

Tabela 3 (p. 15)

Gráfico (p. 15)

“Juros flutuantes obrigam os países pobres a pagar déficits dos ricos”.

Na discussão da questão da dívida externa, o reconhecimento do pagamento daquilo que os banqueiros internacionais consideram sua integralidade é o nó da questão. E aí o governo Collor é explícito ao dizer que os banqueiros vão receber "seu último centavo". Essa posição contraria frontalmente os interesses do nosso país. Tal postura decorre da política geral adotada pelo governo de procurar integrar o país no Primeiro Mundo. Para isso, abandona a política da união dos países do Terceiro Mundo na luta em defesa de seus direitos e capitula, vergonhosamente, às exigências dos países altamente desenvolvidos e dos banqueiros internacionais.

A dívida brasileira é ilegítima em decorrência de um conjunto de fatores, entre os quais se destacam a adoção dos juros flutuantes, as desiguais relações de troca, as fugas de capitais através das práticas do super e sub-faturamento e das fraudes.

Grande parte da dívida externa brasileira decorre da elevação das taxas de juros reais, promovida pelos países ricos. Na realidade, com os choques do petróleo, alteraram-se os fluxos de capital no mundo. Os países produtores de petróleo, dispondo de um grande volume de dólares, resolveram emprestá-los, através dos bancos dos países altamente desenvolvidos. E estes elevaram tremendamente as taxas de juros como mecanismo de repassar as consequências da crise do petróleo para os países em desenvolvimento. Darrel Delamaide afirma: "os países em desenvolvimento tiveram que financiar não apenas o déficit provocado por suas importações de petróleo, mas também aquele provocado por seu comércio com os países industrializados. Tiveram de tomar empréstimos para cobrir seus próprios déficits, e depois tomar mais empréstimos para assumir os déficits dos países industrializados. Os países industrializados, em resumo, 'reciclaram' seus déficits para os países em desenvolvimento".

Em estimativa efetuada pelo Banco Central, o aumento das taxas de juros representou um incremento de 53 a 62 bilhões de dólares, ou seja, de 50 ou 60% do total da dívida. Na tabela 4 o Banco Central fez uma simulação do aumento da dívida externa em decorrência da elevação das taxas de juros. Na coluna 2, dos juros líquidos simulados, percebe-se uma perda anual que se aproxima de 5 bilhões de dólares. O absurdo fica gritante em 1988. De uma dívida de 102 bilhões de dólares, 62 bilhões correspondiam aos aumentos das taxas de juros. A simulação mais pessimista levaria a um prejuízo mínimo de 34 bilhões de dólares neste período.

Tabela 4 (p. 17)

A tabela 5 nos dá também informações que ajudam ter presentes a dimensão e as consequências do aumento das taxas de juros da dívida externa brasileira. Vê-se que, enquanto em 1971 o país pagava 344 milhões de juros, a partir de 1981 passou a pagar mais de 10 bilhões por ano. No período de 1971 a 1989, o Brasil pagou 122,771 bilhões de dólares. No entanto, a dívida brasileira, que em 1971 era de 6,621 bilhões de dólares, elevou-se em 1989 para 111,916 bilhões.

Tabela 5 (p. 18)

Alguns dados a mais no sentido de perceber a gravidade do processo de transferência de recursos para o exterior: no período de 1980 ã 1988 o Brasil recebeu, a preços de 1988, empréstimos e financiamentos no total de 103,300 bilhões. Nesse mesmo intervalo de tempo, pagou 184,900 bilhões de dólares de serviço da dívida, sendo 96,6 bilhões a título de juros e 88,3 bilhões de amortização. Os serviços foram, portanto, 80% maiores do que os empréstimos, havendo uma transferência de recursos para o exterior de 81,5 bilhões de dólares. Tais perdas para o Brasil e para os países dependentes evidentemente representam lucros exorbitantes para os credores. Na década de 1970, o Cheese, o City-
bank e o Bank of America já estavam fazendo mais da metade de seus lucros no exterior. Em 1977 o relatório do Citybank declarava que 20% de seus lucros provinham do Brasil, mais que o lucro total extraído nos Estados Unidos. Aí está uma das raízes da pobreza do Brasil e dos países do Terceiro Mundo. Eles passaram a ser exportadores de capitais à custa da miséria de seu povo.

“A dívida externa não é mais questão financeira e sim problema político”.

A exploração dos países dependentes se faz, também, através de outros mecanismos, como a desigual relação de troca estabelecida no comércio internacional. As economias altamente industrializadas, detendo o monopólio do comércio internacional, manipulam os preços dos produtos, obtendo com isso grandes lucros. Tanto isso é verdade que, segundo o Banco Central, tomando por base 1977, o índice das relações de troca caiu de 100 nesse ano para 73 em 1986. Isso significa que em 1977 podíamos trocar 10 mil toneladas de soja por 100 tratores. Já em 1986, com as mesmas 10 mil toneladas de soja, conseguiríamos comprar apenas 73 tratores. Em decorrência da deterioração dás relações de troca, o Brasil perdeu, no período compreendido entre 1973 e 1985, 41,1 bilhões de dólares, que representam mais da metade da dívida atual com os bancos privados estrangeiros.

Além desses mecanismos de exploração dos países dependentes, o sub e o super-faturamento realizados pelas empresas multinacionais terminam por enviar ao exterior uma quantidade muito grande de dólares, que foge ao controle governamental. Isto para não dizer das fraudes realizadas em todo o processo de concretização da dívida externa. Por tudo isso, aceitar como legítimo o montante da dívida, contabilizada pelos banqueiros, é desconsiderar essas manipulações realizadas para favorecer os interesses dos países capitalistas desenvolvidos.

A dívida externa, por sua dimensão, deixou de ser um problema meramente financeiro para se transformar em uma questão política. A Conferência Internacional sobre a dívida externa dos países em desenvolvimento afirmou, em sua Resolução: "impõe-se reconhecer por tudo isso que a dívida externa é um problema eminentemente político. Assim resulta surpreendente que ante tal situação, as nações devedoras, sobretudo as da América Latina, continuem a aceitar as negociações bilaterais, realizadas caso a caso, permanecendo cada uma delas isoladas frente a credores associados em organizações coletivas".

A dívida externa se transformou numa questão política porque o seu pagamento tem trazido consequências extremamente graves para todos os países dependentes, tem conduzido à recessão, ao desemprego e ao arrocho salarial. Por ser uma dívida injusta e impagável, os países do Terceiro Mundo estão diante da necessidade de tomar uma decisão unilateral e soberana, em relação à dívida externa.

Tratando do assunto, a escritora britânica Emma Rotchschild, afirmou: "tal crise, que representa uma perspectiva de perigo para centenas de bancos e para o próprio sistema, promete miséria e destruição, além das mais profundas crises políticas. É a crise da dívida nos países em desenvolvimento. A questão que se coloca para o sistema financeiro não é se essa dívida deixará de ser honrada. Trata-se, isto sim, de quando, como e onde". Evidentemente, os banqueiros estão conscientes dos riscos que estão correndo e sabem que a questão da dívida chegou a tal nível que os países dependentes não têm condições objetivas de saldá-las. Como garantia por esses riscos, os banqueiros cobram uma taxa adicional, chamada spread. Ou seja, os banqueiros internacionais já se preveniram e receberam as taxas correspondentes. O absurdo é que diante de tudo isso dirigentes dos países dependentes continuem pensando segundo a lógica dos dominadores e insistam em pagar uma dívida impagável.

E mais absurdo ainda é que setores progressistas terminem por fazer coro com o governo na questão da dívida externa. Tal posição foi assumida pelo deputado César Maia, do PDT, pelo senador Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, e mais recentemente, pelo deputado Roberto Freire do PCB, que elogiou o processo de negociação da dívida externa conduzido pelo governo brasileiro. Enquanto tais setores apóiam a política do governo, o economista norte-americano John Kenneth Galbraith, em declaração dada à televisão brasileira, comentando a vinda de Bush ao Brasil, afirmou que o país não deveria pagar sua dívida externa. E que, com o tempo, os banqueiros internacionais se amoldariam a essa realidade.

Há hoje, em nível mundial, uma situação favorável para a discussão da dívida externa. E um dos fatores que dá maior espaço para esta discussão diz respeito às contradições surgidas nos países credores entre os sistemas financeiro e industrial. Isto porque o pagamento dos serviços da dívida, se atende aos interesses do setor financeiro, termina prejudicando o setor industrial, porque a evasão de recursos impede que os países dependentes comprem produtos dos países altamente industrializados. Darrel Delamaide, afirma que o ex-secretário do Tesouro norte-americano, Regan, disse: "de cada 8 empregos do setor industrial dos Estados Unidos, um depende de exportações", afirmando ainda que 1 bilhão de dólares em exportações representava 24 mil novos empregos. Isso equivale a dizer que a queda de 10 bilhões de dólares nas exportações americanas representa 250 mil desempregados naquele país. Tais contradições implicam a existência de um espaço novo para discussão da dívida externa.

Os banqueiros internacionais querem adiar ao máximo a hora da verdade para ampliar ainda mais suas margens de lucros. Por isto pressionam para que as negociações sejam feitas caso a caso, e diretamente com os bancos credores. Ao povo brasileiro interessa, no entanto, uma negociação política, um tratamento soberano para a questão da dívida externa. Porém, não é este o caminho adotado pelo governo Collor de Mello. Ele se submete ao caminho imposto pelos banqueiros internacionais. Tanto isso é verdade que o seu roteiro de negociações previa, em princípio, um entendimento primeiro com o FMI, depois com o Clube de Paris e, finalmente, com os bancos particulares credores. No entanto, o FMI estabeleceu como exigência para um acordo com o Brasil um entendimento prévio com os banqueiros particulares. O governo sucumbiu a essa imposição, alterou o roteiro de negociação, e se dispôs a pagar os juros este ano. Mais uma vez rompeu com o que ele próprio tinha estabelecido.

“Proposta de Collor é parte da “modernização" neoliberal e antinacional”.

Não se pode aceitar uma discussão meramente contábil ou financeira da dívida externa, como querem os agiotas internacionais. A dívida externa tem de ser discutida necessariamente em nível político; com governos e não banqueiros na mesa de negociação.

A proposta do governo Collor sobre a dívida externa faz parte de seu projeto neoliberal de "modernização da economia", cujo aspecto central diz respeito à abertura da economia brasileira ao exterior. John Reed, do Citycorp, nos ajuda a estabelecer a relação entre a questão da dívida externa e a política econômica brasileira, ao afirmar: "a intenção brasileira de abrir sua economia para o exterior envolve diretamente a necessidade de um acordo com os credores internacionais para que os mercados de capitais de investimentos sejam novamente acessíveis ao Brasil". Portanto, o projeto do governo de modernização da economia, via abertura para o exterior, passa, como foi dito, pela necessidade de um acordo com os credores internacionais, pela imperiosidade de "enquadrar-se" na realidade deste mercado. Dito de outra forma, a proposta brasileira sobre a dívida externa coloca-se dentro dos limites aceitáveis pelos banqueiros internacionais, não rompendo, portanto, com a dependência.

Pelo contrário, aos poucos vai ficando claro que a política de Collor, longe de representar uma efetiva modernização e independência do país, vai significar a transformação do Brasil em um grande supermercado para venda de produtos estrangeiros. Vai conduzir ao sucateamento e desnacionalização da economia nacional e, portanto, a um maior controle do capital estrangeiro sobre a economia brasileira.

A modernização do país é uma necessidade. O avanço da economia brasileira exige o desenvolvimento científico e tecnológico do país e o aumento da produtividade. No entanto, é falsa a idéia de que a abertura do Brasil ao exterior seja o caminho para o seu desenvolvimento tecnológico. O professor Bautista Vidal afirma: "a tecnologia externa é o principal instrumento através do qual se molda e se controla a estrutura produtiva nacional, especialmente em setores dinâmicos e estratégicos" pois a adoção de determinada tecnologia implica a escolha de matérias-primas, a especificação de componentes, as formas de produção e tipos de energia a ser consumida. O mesmo autor destaca a irracionalidade provocada pelos pacotes tecnológicos no processo produtivo brasileiro, exemplificando com o fato de que enquanto somos obrigados a fabricar 1.500 tipos de aço, as economias mais sofisticadas fabricam menos de 500.

“Em pauta a ruptura do modelo de dependência ao capital financeiro mundial”.

No que diz respeito ao desenvolvimento científico e tecnológico do país, fica evidente a situação de dependência quando se sabe que o Brasil aplica 0,6% do seu PIB nessas atividades, enquanto os países mais avançados gastam de 2 a 3% do PIB. Imaginar que uma abertura maior do país aos capitais estrangeiros implica uma incorporação de tecnologia é inteiramente falso. O que ocorrerá é a compra de produtos mais avançados do ponto de vista tecnológico no mercado internacional. Porém, isso não implicará o desenvolvimento tecnológico e científico do país. Até porque as empresas multinacionais concentram a pesquisa científica e tecnológica nos seus países de origem, seja por razões econômicas ou estratégicas.

A verdade é que países altamente industrializados, longe de estarem interessados na difusão tecnológica, procuram restringi-la. E o Brasil, na medida em que insiste em seguir a orientação dos países altamente desenvolvidos, reforça esta situação. Na chamada Rodada Uruguaia do GATT foi apresentada a proposta norte-americana, apoiada pelo Brasil, que aponta para uma redução do ritmo da difusão tecnológica. Segundo tal proposta, haverá um aumento do prazo mínimo de 15 para 20 anos para as patentes industriais, além da permissão para que o proprietário da patente não a explore industrialmente no país que a concede. Tal política impede o desenvolvimento tecnológico dos países dependentes. O objetivo da redução do ritmo da difusão tecnológica é limitar a competitividade dos países em desenvolvimento e, com isso, aumentar as exportações dos países desenvolvidos.

O reflexo desta política de ampliação das exportações brasileiras já se manifestou na balança comercial. Segundo o Departamento de Comércio Exterior, a balança comercial brasileira apresentou em outubro o menor saldo verificado desde janeiro de 1987: 223 milhões de dólares. E o mais grave é que a importação de supérfluos chega a tal ponto que empata com a registrada durante o governo do presidente Eurico Gaspar Dutra, considerado o mais liberal em relação ao comércio exterior.

Do ponto de vista dos países dependentes, o respeito às patentes significa uma limitação a que esses países partam de um patamar de conhecimento já acumulado para desenvolver suas tecnologias. O Japão não aceitou essa limitação, não aceitou patentes. Por isto, transformou-se na potência industrial de maior avanço tecnológico, incorporando os avanços tecnológicos descobertos no mundo e desenvolvendo seus conhecimentos, a partir desse patamar. O Brasil segue o caminho oposto, submetendo-se às pressões das grandes potências industriais. Chega ao absurdo de apoiar as propostas norte-americanas no GATT e a reconhecer patentes nas áreas de alimentação e de medicamentos, que até agora o país não reconhece.

A verdade é que os Estados Unidos, através do FMI, impõem aos países devedores uma política de recessão econômica, arrocho salarial e desnacionalização da economia, através da conversão da dívida em capitais de risco, colocando em prática o velho ditado popular, que diz: "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". Isso porque os Estados Unidos enfrentam hoje uma crise de grandes proporções, tendo um déficit de 800 bilhões de dólares, num orçamento de 1,3 trilhão. Têm também hoje fabuloso déficit na balança comercial e a maior dívida externa do mundo. No entanto, o FMI, controlado pelos EUA, não fixa nenhuma regra de estabilização econômica para aquele país. Pelo contrário, quando o presidente Nixon rasgou os acordos de Bretton Woods, acabando com a garantia-ouro do dólar, numa fraude sem precedente na história econômica mundial, o FMI e a comunidade financeira internacional nada fizeram.

Para defender, de fato, os interesses nacionais, torna-se necessário romper com a lógica do sistema dominante e impor a lógica dos países dominados. E a nossa lógica é muito clara. Não podemos e não devemos pagar uma dívida ilegítima. Não podemos e não devemos permitir a venda do patrimônio público para pagar essa dívida.

O caminho que, de fato, atende aos interesses nacionais, passa pela suspensão do pagamento da dívida externa, até que uma verdadeira auditoria aponte o montante real e legítimo da dívida externa brasileira, ou seja, se o Brasil ainda deve alguma coisa. A dívida externa envolve a questão da manutenção ou ruptura do modelo de desenvolvimento econômico que prevalece no país. O governo Collor não pretende romper com a dependência, mas fazer algumas transformações, "modernizar o país" dentro dos limites da dependência. E para isso tem de se enquadrar nas regras dos banqueiros estrangeiros e dos países credores, pagando uma dívida externa ilegítima.

O verdadeiro caminho para a modernização do Brasil passa pela construção de um país verdadeiramente soberano, que tenha a capacidade e a coragem de tomar decisões em função dos interesses do seu povo e não em função da imposição dos banqueiros internacionais.

Aldo Arantes é advogado.

EDIÇÃO 20, FEV/MAR/ABR, 1991, PÁGINAS 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21