A BURGUESIA DEMOROU PARA CONSOLIDAR O SEU PODER
Hoje, quando se comemora os 120 anos da Comuna de Paris, o socialismo vive uma crise que já se arrasta há mais de uma geração e o atinge em suas três dimensões: a crise das experiências concretas de construção da nova sociedade que degeneraram, retrocederam e desmoronaram ruidosamente; crise do movimento político socialista no mundo; a crise da teoria socialista, chamada a enfrentar os gigantescos desafios formulados pela atualidade.
Essa crise pode ser encarada como a de uma formação econômico-social nova, que luta para firmar-se e consolidar-se como uma etapa superior da história humana. E que, enfrentando as contradições impostas pela velha forma de organização da vida, enfrenta idas e vindas – fenômeno que, aliás, a própria sociedade burguesa sofreu na luta contra o sistema feudal e as formas pré-capitalistas que a procederam. O melhor exemplo das idas e vindas de uma nova forma de organização social, até consolidar-se, é fornecido pelo próprio processo da revolução burguesa, especialmente na França, onde se realizou com o máximo de transparência e nitidez.
Neste aniversário da Comuna de Paris, não seria demais recordar que esta teve um duplo papel histórico: inaugurou a lista das revoluções socialistas, mas também forçou a conclusão das transformações democrático-burguesas, que já se arrastavam na França há mais de oito décadas.
A Revolução Francesa foi um caso raro de movimento social, em que a burguesia chamou as massas à ação revolucionária direta.
Mesmo na França, o fluxo revolucionário foi de curta duração, embora radical e fecundo. Seu detonador e símbolo foi a tomada velha fortaleza da Bastilha pelas massas insurretas de Paris, em 14 de julho de 1789. Seguiram-se a 1ª Constituinte; supressão dos dízimos e privilégios fiscais da nobreza; Declaração dos Direitos do Homem; nacionalização dos bens da Coroa, dos nobres que fugiram e da Igreja; monarquia parlamentar; voto censitário (só votam os possuidores de bens); proibição das greves e associações operárias; fuga, captura e prisão do rei; guerra com as monarquias feudais européias; insurreição em Paris; organização do povo em Comunas, bisavós da Comuna socialista de 1871; terror revolucionário contra os aristocratas; proclamação da República; execução do rei Luis XVIII e da rainha Maria Antonieta; reforma agrária; Segunda Constituição, republicana e democrática (parlamento unicameral, sufrágio universal); estabelecimento do "máximo" (congelamento do preço do trigo); supressão de todos os privilégios feudais; abolição da escravatura nas colônias francesas; reforma do exército.
Neste processo, o controle dos acontecimentos passou a setores cada vez mais avançados.
Primeiro, a nobreza reformista e a grande burguesia financeira, partidárias da monarquia constitucional. Em seguida, a burguesia mercantil e industrial, representada pelos girondinos. E, por fim, entre junho de 1793 e julho de 1794, a pequena-burguesia revolucionária, tendo como porta-vozes os jacobinos, liderados pelo jovem advogado Robespierre, "O Incorruptível".
Ainda mais à esquerda estavam as massas trabalhadoras de Paris, artesãos, operários, armados e organizados nas Comunas.
Seus representantes na Convenção, como Hebert, o fantástico jornalista Jean Paul Marat, do periódico O Amigo do Povo, e o padre plebeu Jacques Roux são chamados raivosos. Eles, porém, não chegaram ao poder. São os setores mais à direita que tomaram as rédeas da situação, com o golpe de 27 de julho de 1794 (9 de Termidor, segundo o calendário da revolução).
Logo no dia seguinte ao golpe de Termidor, Robespierre e 21 dos seus guilhotinados. O clube dos jacobinos foi fechado. O "máximo", suprimido. Na primavera de 1795, o povo pobre de Paris tentou uma reação, com os "motins da fome"; o novo governo mandou a artilharia bombardear os bairros operários e estabeleceu o terror contra-revolucionário.
Uma terceira Constituição retornou ao sistema de duas câmaras e ao voto censitário; o Executivo ficou a cargo de um diretório de cinco membros.
Em 1797, a rebeldia das camadas trabalhadoras parisienses ainda se manifestou na "Conspiração dos Iguais", sob a liderança de François Noel Baboeuf, um precursor do pensamento socialista. Mas um delator entregou Baboeuf e ele foi guilhotinado.
A reviravolta termidoriana nos rumos da revolução teve um nítido significado de classe. A burguesia francesa, tendo derrubado o antigo regime e afastado os principais entraves ao desenvolvimento do capitalismo, voltou as costas para a revolução e procurou uma ordem política estável, que consagrasse suas vitórias, mantivesse o povo afastado do poder e defendesse os interesses da França burguesa na arena européia.
Esta busca a levou a um sujeitinho de pouco mais de um metro e meio, com trinta anos de idade e seis de generalato, falando francês com um forte sotaque corso: Napoleão Bonaparte. Ele derrubou o Diretório e se apoderou do governo sem maiores dificuldades. Fez aprovar uma quarta Constituição e o célebre Código Civil napoleônico, reformou o ensino, reestruturou o aparato burocrático, pôs fim à desordem administrativa e econômica da época revolucionária. Os sindicatos e greves continuavam proibidos. A burguesia vibrou. Os camponeses, agora proprietários das terras que trabalham, não se queixavam. Em 1804, o jovem general fez-se coroar imperador.
Desapareceu, assim, a República conquistada durante as jornadas revolucionárias. Porém, a monarquia napoleônica tinha um conteúdo distinto da dos Bourbons: uma era feudal, a outra é essencialmente burguesa.
Desde 1792 a França estava em guerra permanente, combatendo os aristocratas contra-revolucionários, a rebelião da Vendéia, as monarquias feudais do continente e a Inglaterra, que há mais de um século realizara transformações de caráter burguês, mas justamente por isso temia a concorrência francesa. A revolução forja um novo exército e uma nova concepção de guerra que logo mostram sua superioridade nos campos de batalha.
A França rechaça o inimigo para além de sua fronteira e continua, na época napoleônica, a espalhar pela Europa o seu império e as idéias incendiárias – para a época – das transformações democrático-burguesa.
Em 1812, o Império francês abrande 152 departamentos e tem mais de 50 milhões de habitantes (a Europa soma na época um total de 175 milhões). Em torno dele estende-se uma área de Estado-satélite e aliados, que vai desde a Península Ibérica, a Oeste, até a Áustria, a Prússia e a Polônia, ao Sul, e da Noruega, ao Norte, até a península da Itália, ao Sul.
Napoleão liderou o novo império burguês da França em guerras contra as dinastias feudais européias, deixando no rastro de seu exército transformações profundas no Velho Continente. Mas, finalmente, a coalizão das velhas aristocracias européias venceu o "Pequeno Corso" em 1815, acontecimento que levou a um período de restauração monárquica não só na França mas em toda a Europa.
O período de 1814 a 1830 foi então o exemplo clássico de restauração de um sistema político-social que parecia irremediavelmente relegado à lata de lixo da história. É certo que não dava simplesmente para fingir que a revolução não acontecera.
O rei foi obrigado a conviver com uma Constituição, mas outorgada por ele próprio. O parlamento era bicameral, com uma Câmara dos Pares, hereditária, e uma Câmara de conservadores. O rei promulgou leis contra o "sacrilégio" e a liberdade de imprensa, restabeleceu o controle da Igreja sobre o ensino, dissolveu a Guarda Nacional e aprovou a "Lei do Bilhão", indenizando os aristocratas emigrados pelos domínios feudais que perderam.
Em meados de 1830, Carlos X dissolveu a Câmara dos Deputados, limitou ainda mais o direito de voto, decretou nova lei de censura; a França encaminhava-se nitidamente para o absolutismo explícito. A burguesia vacilou, mas as massas populares saíram às ruas de Paris. As barricadas retomaram; após três dias de combate, Carlos X abdicou e fugiu para a Inglaterra. Triunfava a Revolução de Julho de 1830.
Desta vez, porém, a vitória revolucionária não abriu, como em 1789, um período de participação popular. A grande burguesia francesa tirou lições do passado e temia mais o povo que os restos feudais. Assim, ela rapidamente encontrou um novo rei, Luís Felipe, um Bourbon do ramo de Orleans, de 57 anos, riquíssimo e muito bem relacionado nos meios financeiros; que ficou conhecido como o "rei burguês". Por um lado, ele aposentou os excessos restauracionistas de seus antecessores: reformou a Constituição, aboliu a censura, restaurou a Guarda Nacional, readotou a bandeira nacional tricolor. Por outro, apoiava-se nos "legitimistas" ultraconservadores da nobreza latifundiária, manteve os republicanos e bonapartistas no ostracismo e formou sucessivos governos conservadores, autoritários e corruptos. A classe social que dava efetivamente as cartas já não era a nobreza feudal, mas a alta burguesia. Entretanto, os restos do Antigo Regime ressuscitados durante a restauração sobreviviam em grande medida, sobretudo na superestrutura política. O voto censitário eliminou do parlamento qualquer representação dos operários, camponeses ou da pequena-burguesia e reduziu consideravelmente o peso da própria burguesia industrial.
Em 1848 explodiu na França uma terceira revolução de conteúdo democrático-burguês, vanguardeando, mais uma vez, uma onda revolucionária que se espraiou pela Europa. Em fevereiro, trabalhadores, estudantes e efetivos da Guarda Nacional parisiense se amotinaram e ergueram 2 mil barricadas. Luis Felipe fugiu do palácio por um subterrâneo e o povo proclamou o fim da monarquia. Formou-se um governo provisório, com hegemonia burguesa e pequena participação de socialistas pequeno-burgueses. Uma Assembléia Constituinte foi convocada e, mais uma vez, os acontecimentos pareciam inclinar-se no sentido de uma superação radical e definitiva dos restos do antigo regime.
Porém, a esta altura, a frente antifeudal já estava objetiva e irremediavelmente cindida, com burgueses, de um lado, e proletários, de outro. Em junho, respondendo ao fechamento das "Oficinas Nacionais" que davam trabalho a mais de 100 mil desempregados, os operários de Paris partiram novamente para a insurreição.
Nas jornadas de junho de 1848, a classe operária apareceu pela primeira vez como força política independente e deparou-se com uma repressão de ferocidade nunca vista, a cargo do general Cavaignac, célebre por sua crueldade nas guerras de conquista da Argélia. Os operários, inclusive mulheres e crianças, lutaram com heroísmo, mas o campesinato permaneceu apático e as tropas de Cavaignac terminaram por vencer. Cerca de 800 operários morreram em combate; outros 2 mil foram fuzilados após a derrota; 25 mil foram presos e 3,5 mil deportados.
Em novembro foi promulgada a Constituição da Segunda República: ela previa um parlamento unicameral e eleição direta para a Presidência, por quatro anos não renováveis. Não foi, contudo, o fim da luta pela conclusão das transformações democrático-burguesas. Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte (apelidado "Napoleão, o pequeno" pelo romancista Victor Hugo), venceu a eleição presidencial abrindo o caminho para um novo retrocesso.
De fato, em 1852 Luís Bonaparte promoveu um golpe de Estado e proclamou-se imperador, com o título de Napoleão III, numa repetição caricata da trajetória de seu tio. O novo "imperador dos franceses pela graça de Deus e a vontade do povo", dissolveu o parlamento, rasgou a Constituição republicana e outorgou outra, monárquica. Retomando os velhos cacoetes monárquicos da aristocracia francesa, apoiou-se na burocracia e no exército e restabeleceu a tutela clerical sobre o sistema de ensino. As greves e associações operárias permaneceram proibidas até 1864. O mesmo traço reacionário se manisfestou na política externa: A França enviou uma expedição militar para recolocar no trono de Roma o papa Pio IX , deposto pelos revolucionários italianos.
Desta forma, até o momento mesmo em que os comunardos de Paris hastearam a bandeira do socialismo, ainda não se haviam completado as transformações democrático-burguesas. Quando Napoleão III perdeu a guerra e foi aprisionado pelos prussianos em 1870, o parlamento proclamou às pressa a República, cedendo mais uma vez à pressão popular. Porém, na Assembléia Popular convocada em seguida, 450 dos 750 deputado eram monarquistas e já se preparavam para achar um novo rei ou imperador.
Por ironia da história, foi o proletariado socialista de Paris, com sua revolução frustrada, mas profética, que obrigou a burguesia francesa a concluir, a contragosto, a sua própria revolução.
Toda esta reconstituição evidencia como a revolução burguesa se processou dolorosa e sinuosamente, num processo cheio de altos e baixos, avanços e recuos, acúmulos quantitativos e saltos qualitativos, a dar conta de sua missão histórica. Mostra, ainda, que o avanço em última instância da revolução não exclui a possibilidade da restauração. No caso da revolução proletário pelo menos dois fatores contribuem para tornar o processo ainda mais difícil.
Em primeiro lugar, ela precisa negar não só alguns séculos de capitalismo, mas vários milênios de propriedade privada e divisão da sociedade em exploradores e explorados. Em segundo lugar, as novas relações econômicas e sociais socialistas, ao contrário das relações burguesas, não podem se estruturar no seio da velha sociedade. A revolução burguesa, ao se colocar a tarefa de tomar para si o poder político, já encontra as formas da economia capitalista, que foram brotando espontaneamente da própria decomposição do feudalismo. Sua tarefa se limita a transformar a superestrutura, libertando-a dos entraves ao livre desenvolvimento do capital.
Ao passo que a revolução socialista depende do poder político para erguer, a partir de uma base econômica moldada pelo capitalismo (e, às vezes, até com sobrevivências pré-capitalistas), as novas relações sociais baseadas na produção coletiva e na apropriação coletiva dos frutos do trabalho.
Isto significa uma diferença de qualidade entre uma restauração feudal-absolutista, no curso da revolução burguesa, e uma restauração burguesa no curso da revolução proletária. A primeira, quando muito, consegue emperrar, porém, jamais impedir e, menos ainda, reverter o desenvolvimento das relações capitalistas na economia. Durante todo o período da restauração pós-napoleônica, na França e na Europa, as novas relações capitalistas foram se impondo inexoravelmente. A indústria francesa, em 1820, contava com apenas 65 máquinas a vapor; em 1847 já contava com mais de 5 mil.
Já a revolução socialista, ao perder o poder político (seja através de uma contra-revolução aberta, seja pelo apodrecimento e aburguesamento de suas próprias estruturas), perde também sua base econômica.
A propriedade coletiva socialista dos meios de produção degenera num tipo de capitalismo de Estado, ou de cooperativismo capitalista "auto-gestionário", até entrar em colapso e assumir formas explícitas de privatização, como mostra a história de nossos dias.
Este é um traço específico e (por que não dizer?) um agravante de restauração burguesa face à restauração feudal.
Deriva daí uma situação contraditória, que constitui a tragédia, o paradoxo e o desafio da revolução proletária em nossos dias. Ao retrocederem, as tentativas de construção do socialismo não deixam mais que sua experiência como legado aos combatentes revolucionários da atualidade.
A vitalidade da causa revolucionária brota de outra fonte, o contínuo agravamento da contradição entre produção social e apropriação privada dentro do próprio sistema burguês. É ele que coloca ao alcance de nossas mãos, de nossa ousadia e competência, a realização do profético programa dos revolucionários da Comuna – tomar de assalto os Céus da emancipação da humanidade.
Bernardo Joffily é jornalista.
EDIÇÃO 21, MAI/JUN/JUL, 1991, PÁGINAS 52, 53, 54, 55, 56, 57