A IMPRENSA BURGUESA, UM VÉU DE MENTIRAS…
Para enfrentar o "muro de mentiras", que os jornais burgueses ergueram contra a Comuna, Marx desenvolveu as bases de um método para uma imprensa popular militante. As características deste jornalismo, baseado num método concreto e não dogmático de análise da conjuntura, precisam ser estudadas ainda hoje pelas forças progressistas. Em 30 de maio de 1871 o jornal conservador Le Temps, que durante a maior parte do tempo que durou a Comuna pôde manter ácida propaganda contra ela, desdobrava-se para apresentar a campanha sangrenta das forças de Versalhes como a vitória da "civilização".
"Paris respira, enfim: a luta horrível terminou há 24 horas. (…) que seria de Paris sem o movimento feliz e imprevisto que abriu, antes da hora programada para o assalto, as portas da cidade ao exército libertador? (…) As paixões e os ódios sem nome que moveram homens da Comuna constituem um fenômeno tão monstruoso que exigem todo poder de observação dos políticos, dos filósofos, dos moralistas".
Le Temps não era uma exceção. Durante os 72 dias que durou a revolução, os jornais burgueses da França e do resto do mundo não se contentaram em verberar contra a Comuna. Eles distorceram deliberadamente os fatos e chegaram a inventar acontecimentos para fazer brotar o ódio da opinião pública contra o movimento. Foi "noticiada" em todo o mundo a execução em massa de "reféns". A onda de calúnias chegou ao Brasil. O Jornal do Commércio, do Recife, e outros, falaram em massacres de beneditinos, depredação e incêndio do museu do Louvre, crimes contra a honra, vilipêndio de igrejas e outras atrocidades. O objetivo, em boa parte alcançado, era apresentar a reação selvagem da burguesia francesa como um ato salutar, ainda que atroz – como a resposta dura e necessária à barbárie que, de outra forma, não poderia ser contida.
A imprensa ergueu "um muro de mentiras" contra a revolução, contra-atacou Karl Marx na época. Apesar de enfermo, Marx usou todas as suas forças para analisar em profundidade o desenvolvimento da Comuna e para tornar possível a ação das massas trabalhadoras de toda a Europa a favor dela.
"Não acredites numa palavra daquilo que os jornais escrevem sobre os acontecimentos de Paris. É tudo mentira e impostura. Jamais a vulgaridade da escrevinhice jornalística burguesa se fez valer com tanto brilho", disse Marx ao deputado socialista alemão Liebknecht em uma carta datada de 06-04-1871. Marx não se contentou, porém, em denunciar a deturpação dos fatos. Ele ansiava pela intervenção das massas trabalhadoras francesas e européias na defesa da Comuna. E sabia que só seria possível desencadeá-la se o movimento operário organizado fosse capaz de formular uma interpretação para a crise capaz de vencer intelectualmente as demais, e dessa forma mobilizar amplos contingentes do povo. Chegar a tal interpretação e difundi-la amplamente entre os trabalhadores, pensavam Marx e a Internacional, era uma tarefa de prioridade máxima, cuja concretização justificava todos os esforços e sacrifícios.
As dificuldades eram múltiplas e começavam pelos obstáculos à manutenção de uma correspondência regular entre a Inglaterra e Paris rebelde. Durante algumas semanas, Auguste Serrailler, enviado expressamente pela Internacional à Comuna, remeteu farto material sobre os acontecimentos. Em seguida, porém, o cerco versalhês e prussiano sobre a insurreição bloqueou as comunicações por correio. As cartas passaram a ser enviadas por mensageiros socialistas e chegavam com grande atraso. Mais tarde, até mesmo esta forma de contato foi impedida.
Marx passou a contar, então, apenas com a imprensa burguesa. A comissão de autores soviéticos que redigiu sua biografia em 1973 relata que ele dava, desde o início, grande importância à leitura deste material e chegou a desenvolver um método próprio de trabalhar com ele. Mantinha um volumoso caderno com recortes dos jornais. E sabia extrair da montanha de mentiras e especulações lançadas por eles "o fato primitivo, número, a frase exata de um determinado político". Dessa forma, "reconstituía” a trama dos acontecimentos, seguia seu desenvolvimento, descobria as suas causas sociais políticas".
A partir dos fatos extraídos da própria imprensa burguesa, Marx construía um conjunto de teses essenciais sobre os movimentos mais importantes da conjuntura. Essas teses compõem as versões preliminares das obras que escreveu no período. Talvez por isso todas elas estejam repletas de citações não apenas do jornal oficial da revolução – o Journal Officiel –, mas também da imprensa burguesa da época. Vistos através de uma interpretação mais avançada, os dados fornecidos por esta imprensa voltam-se contra os próprios "comentários" que os acompanham. Além disso testemunham a segurança do autor, suficientemente forte para servir-se das informações prestadas pelo adversário…
Na Guerra civil em França, obra em que Marx procurou sintetizar a experiência da Comuna e extrair dela conclusões teóricas originais são seguidamente mencionados, entre outros, o Journal de Paris, o Le Temps e o Le Siécle, os ingleses The Times, Daily News, Evening Standart e Spectator.
A análise que Marx faz dos fatos ganha força graças a certas características essenciais. A primeira delas é a capacidade de identificar numa conjuntura complexa o elemento mais relevante, que presidirá o desenvolvimento dos demais. Em maio de 1870, Marx começa a chamar a atenção para uma tendência nova que desponta no movimento operário europeu. Os trabalhadores franceses, pensa ele, estão elevando rapidamente seu grau de organização.
O segundo Império, de Luís Napoleão, havia perseguido ferozmente os operários, cujos líderes estavam em boa parte no exílio ou na prisão. O próprio grau de consciência do proletariado era muito inferior, por exemplo, ao que existia na Alemanha, onde as teses marxistas desfrutavam de enorme prestígio. No entanto, a desagregação acelerada do regime agudizava a luta de classes e deslocava o centro da conjuntura para a França. A classe operária francesa dará "o primeiro empurrão" para a revolução européia, escreve Marx a Engels em 1875. Coerente com tal ponto de vista, é para este país que ele voltará sua atenção principal, a partir daí.
E, ao invés de tentar "enquadrar" os acontecimentos que surgem nas conclusões teóricas obtidas no passado, ele procura extrair de cada fenômeno novos elementos que enriqueçam ainda mais sua teoria. Tal tendência torna-se nítida já durante a guerra franco-prussiana, que seria a causa imediata da Comuna.
Na luta pela independência dos trabalhadores transpareceria uma outra característica da atividade de Marx como publicista. Cultivador da polêmica, ele considerava ser necessário expor, abertamente as divergências que surgiam no seio do próprio movimento revolucionário. Num documento aprovado ainda em 4 de setembro, os membros parisienses da Internacional haviam capitulado diante da pressão ideológica de sua própria burguesia e repetiam frases de claro conteúdo chauvinista. Numa carta escrita em 14-09, Marx alertou: "Todo o tom deste manifesto é absurdo e de modo nenhum corresponde ao espírito da Internacional".
Em 18 de março de 1871 eclodiu em Paris a revolução popular que ficou conhecida como a Comuna. As contínuas vacilações das classes dominantes francesas haviam criado uma situação em que não restara ao proletariado outra alternativa. A manutenção de tropas alemãs na França humilhava o país. O movimento operário, que reivindicara incessantemente a independência, viu-se obrigado, diante da inação prolongada do governo no burguês, a lutar por ela com suas próprias mãos. Qualquer alternativa seria vista como incapacidade de cumprir o próprio programa, e levaria à desmoralização.
Marx estuda com cada vez maior preocupação os fatos e comunica-se sem cessar com os comunardos. Mesmo feita em Londres, sua análise chega a ponto de indicar a eles esquemas militares para a defesa de Paris. Quando o acordo entre as burguesias francesa e prussiana está cada vez mais próximo, Marx aconselha os revolucionários a fortificarem o lado norte das colinas de Montmartre, próximo ao qual estão estacionadas as tropas de Bismarck. Mais tarde escreverá, com amargura: "Tinham ainda tempo para fazê-lo. Eu os avisei de antemão que, de outro modo, cairiam numa ratoeira".
Na primeira dezena de maio concretiza-se o acordo entre Bismarck e Louis Favre, ministro do Exterior do governo de Versalhes. A burguesia francesa, antes impotente, reúne agora 150 mil soldados, muitos deles ex-prisioneiros de guerra libertados pelos prussianos. Thiers avisa que será implacável na vingança contra a Comuna. Suas tropas entram em Paris em 21 de maio. Uma semana depois a cidade está arrasada.
Nos documentos que elaborou sobre a Comuna, Marx não se furtou a dizer que a revolução de Paris representava, independentemente de sua direção, o estágio mais avançado atingido até então pela luta dos trabalhadores. A desmoralização deles em caso de capitulação, explicou ele a Kugelmann, teria sido uma tragédia bem maior que a derrota. E completou, numa condenação categórica à tendência oportunista de perseguir a todo custo vitórias táticas, mesmo quando elas comprometem a independência da luta operária: "A história mundial seria, aliás, muito fácil de fazer se a luta fosse empreendida apenas sob a condição de probabilidades infalivelmente favoráveis".
Marx chega a conclusões igualmente inovadoras sobre as novas alianças de classe que se esboçam no cenário internacional. Decorrido um quarto de século desde a redação do Manifesto Comunista, havia se esgotado por completo o papel revolucionário da burguesia. Ela havia abandonado as alianças que estabelecera no século XVIII e no início do século XIX com os operários e as massas despossuídas. Consolidada no poder, unia-se agora às classes mais retrógradas, aos remanescentes aristocráticos e feudais da sociedade para esmagar o proletariado. Este, por sua vez, devia atuar como o defensor dos interesses do campesinato trabalhador e da pequena-burguesia urbana empobrecida. Aí, entre as massas despossuídas, residiam suas possibilidades de aliança.
A mensagem que Marx escreveu para a Internacional sobre a Comuna recebeu o título definitivo de Guerra Civil na França. Foi apresentada ao Conselho Geral e aprovada em 30 de maio. O fim da revolução parisiense exigia que o proletariado apresentasse uma resposta teórica imediata. Qualquer demora, qualquer atitude burocrática e protelatória, implicaria em prejuízos políticos graves e crescentes".
A burguesia liquidara a Comuna. Apenas dois dias transcorridos após o fim da campanha militar sangrenta de Thiers, contudo, a direção do movimento operário demonstrava que tinha, naquele tempo, disposição e capacidade para dar resposta intelectual imediata e aos problemas com que se defrontava. Guerra Civil na França, que imediatamente foi publicado em mais de dez idiomas e com tiragem superior a de qualquer outra obra de Marx editada até então, terminava assim: "Paris dos operários, com sua Comuna, será para sempre celebrada como a precursora de uma sociedade nova. A seus exterminadores, a História já os pregou em um pelourinho eterno, e todas as preces de seus padres não bastarão para resgatá-los".
Antonio Martins é jornalista.
EDIÇÃO 21, MAI/JUN/JUL, 1991, PÁGINAS 58, 59