Cogito ergo sum; será? A máxima de Descartes, "penso, logo existo", revela uma concepção muito comum entre os psicólogos modernos de que o pensamento existe "a priori", antes da experiência e do aprendizado. Eles dizem que a consciência humana deve estar embutida nas profundezas do espírito ou nos elementos estruturais do cérebro, e negligenciam completamente o ambiente que o cérebro reflete.

O livro recém-lançado do psicólogo soviético A. R. Luria, Desenvolvimento Cognitivo, mostra que a coisa não é bem assim. Luria e alguns discípulos fizeram uma pesquisa inovadora no Uzbequistão, em 1931 e 1932. Seus resultados são apresentados no livro, escrito em 1976. Eles mostram o importante papel que o desenvolvimento sócio-histórico desempenha na formação da consciência e do pensamento.

Naquela época, a URSS passava por mudanças sócio-econômicas significativas: a industrialização, a coletivização da agricultura, a escolarização maciça através de cursos rápidos e o realinhamento da vida pelos novos princípios socialistas.

O Uzbequistão era então muito atrasado. Ali conviviam, neste período de transição, professores recém-formados, alfabetizados, porém com conhecimento ainda muito rudimentar; trabalhadores de fazendas coletivas e jovens que haviam feito alguns cursos rápidos, ainda semianalfabetos; camponeses que viviam em vilarejos afastados, analfabetos e ainda fortemente ligados à tradição feudal e muçulmana; e mulheres analfabetas que, sob a influência da religião islâmica, ficavam alijadas das atividades sociais modernas, isoladas em alojamentos específicos, com pouco contato com outras pessoas.

Os pesquisadores formavam um grupo de psicólogos materialistas dialéticos que, inspirados por L. S. Vigotsky, renovaram radicalmente sua ciência. Eles puderam trabalhar, naquela situação de mudança, com os diferentes grupos alfabetizados, semianalfabetos e analfabetos – e comparar o processo cognitivo de cada grupo levando em conta a realidade em que cada indivíduo vivia no momento da pesquisa, sua tradição cultural, sua realidade social.

Um dos testes relatados refere-se ao aplicado ao muçulmano Mirzamb, de 33 anos, analfabeto, que vivia num vilarejo e que só foi à cidade uma vez. O pesquisador apresentou-lhe quatro cartões, com os desenhos de um copo, uma panela, uma garrafa e de um óculos. Pediu-lhe, então, que tirasse o cartão com o desenho do objeto que não encaixava na sequência.

"M: Não sei qual das coisas não se encaixa aqui. Será a garrafa? Você pode beber chá no copo – isso é útil. Os óculos também são úteis. Mas há vodka na garrafa – isso é mal".
P: Você poderia dizer que os óculos não pertencem a esse grupo?
M: Não, óculos também são úteis.
Em seguida, perguntou-se a ele:
"Mas você pode usar uma palavra – vasilha – para esses três, certo?"
Mirzamb insiste em dizer que há vodka na garrafa, e que por isso ela é má, e que os óculos devem permanecer na sequência porque são úteis".
"Se você está cozinhando alguma coisa, você tem de ver o que você está fazendo, e se os olhos de uma pessoa a estão incomodando, ela tem de usar óculos".

Na mesma linha de pesquisa, outro grupo entrevistado constituía-se de jovens com um ou dois anos de escolaridade, que serviram o Exército ou se tornaram ativistas de fazendas coletivas. Para Sult, de 20 anos, o pesquisador mostrou desenhos de um martelo, uma serra, uma tora de madeira e uma machadinha.

"S: A madeira não cabe aqui. Madeira só fica no chão, enquanto os outros três são usados para diversos tipos de trabalho.
P: Qual a palavra que você poderia usar para estas três coisas?
S: Você poderia chamá-las de ferramentas.
P: Você poderia chamar uma tora de ferramenta?
S: Não, ela é de madeira".

Esses dois exemplos mostram o desenvolvimento do pensamento concreto, baseado naquilo que o sujeito vê, para o pensamento abstrato, que usa categorias para se relacionar com os objetivos. Mirzamb só pensa nos objetos dentro de seu dia-a-dia, como se apenas sua relação com os objetos permitisse a existência deles. Já Sult cria categorias e, apesar dos objetos ainda estarem ligados ao situacional (a madeira só ficava no chão), ele consegue desprendê-los da sua utilidade mais imediata. Sem dúvida, há diferenças na consciência de mundo de Mirzamb e de Sult. Esta diferença não existe a priori no cérebro de cada um deles, mas é resultado da história social de um e de outro.

Esses exemplos foram tirados de uma série apresentada por Luria em seu livro. O mesmo tipo de experiência foi realizado para verificar os processos de percepção, abstração e generalização, dedução e inferência, raciocínio e solução de problemas, imaginação e, finalmente, auto-análise e auto-consciência.

Os resultados da pesquisa corrigem Descartes e toda sua vasta descendência, e obrigam a uma revisão radical, materialista, do Cogito que, mais corretamente, deveria ter a formulação: Existimos, logo pensamos!

Verônica Maria Bercht, bióloga e jornalista.

EDIÇÃO 21, MAI/JUN/JUL, 1991, PÁGINAS 86