IDEOLOGIA E HEGEMONIA NA OBRA DE GRAMSCI
Gramsci, neste ponto, se aproxima de Lênin ao encarar a ideologia enquanto "uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, nas atividades econômicas e em todas as manifestações da vida intelectual e coletiva" (1).
"Nela (ideologia) são incluídas todas as atividades do grupo social dominante, aqueles aparentemente menos ideológicos, particularmente as ciências (…) mesmo a ciência é parte integrante da superestrutura (…) uma categoria histórica" (2). Portanto para Gramsci, a ideologia está presente em todas as atividades humanas, não se traduz apenas no campo da produção de idéias, mas se reduz na prática, seja cotidiana, seja científica.
Para Gramsci, somente as "ideologias orgânicas" deviam ser consideradas, ou seja, só aquelas vinculadas a uma das classes fundamentais da sociedade, no caso do capitalismo, a burguesia e o proletariado. Ele estabelece níveis dentro desse todo a que podemos chamar de ideologia dominante, ou seja, entre a concepção de mundo "produzida" pelos intelectuais orgânicos da classe dominante e as idéias, senso comum, das classes subalternas, informadas por aquela concepção de mundo. Esta diferenciação em níveis é engendrada pelas contradições objetivas inerentes à sociedade dividida em classes sociais antagônicas. Esta contradição é a fonte das constantes fissuras; responsável, em certo sentido, pela falta de homogeneidade entre o discurso (sempre ideológico) de dominantes e dominados, apesar de esses últimos, no fundamental estarem presos nos laços da ideologia burguesa, que os informam.
"A ideologia difundida nas camadas sociais dirigentes é evidentemente mais elaborada que os seus fragmentos encontrados na cultura popular (…) na cúpula, a concepção de mundo mais elaborada, a filosofia, ao nível mais baixo, o folclore. Há entre esses dois níveis extremos, o senso comum" (3).
A filosofia, enquanto nível “superior” da ideologia, como afirma Gramsci, é a "chave-mestra da ideologia", a principal força coesiva, é justamente ela que modela e dirige os demais níveis, em especial o senso comum. Dirige, respeitando os limites apresentados anteriormente.
Mas, se uma filosofia deseja cumprir a sua função deve, necessariamente, manter-se ligada às classes subalternas, às massas populares, sem isso perderia a sua capacidade de direção política e ideológica. Marx já afirmava que a teoria só adquire força material quando penetra nas massas.
O senso comum por sua vez revela-se uma amálgama de diversas ideologias tradicionais e da ideologia de classe dirigente. O senso comum aparece na obra de Gramsci enquanto "folclore da filosofia".
“A ideologia não é inerente ao sujeito, mas fruto de todo um processo social”
"Cada camada social possui seu próprio senso comum (…) seu traço fundamental mais característico é o de constituir (mesmo em nível de cada cérebro) uma concepção fragmentária, incoerente, inconsequente, conforme a situação social e cultural da multidão para a qual esse traço também é a filosofia" (4).
Gramsci procura, também, compreender os meios pelos quais a ideologia das classes dominantes (a sua filosofia) penetra e ajuda, em certo sentido, a coesionar as classes subalternas sob a sua direção, impedindo assim a ruptura violenta do Status quo de dominação, mantendo coeso o edifício social. A esses instrumentos de produção e reprodução de ideologias, no seu conjunto, Gramsci denomina de “estrutura ideológica", ou seja, uma "organização material destinada a manter, defender e desenvolver a frente teórica".
Esta estrutura é composta por diversas instituições, entre elas, as principais, para Gramsci, são a Igreja, a Escola e a Imprensa; junto com estas compõem a “estrutura” todas as instituições que, de uma forma ou de outra, "podem influir, direta ou indiretamente, sobre a opinião pública", sobre o pensar e o fazer das classes sociais subalternas. Neste rol de instituições podemos incluir bibliotecas, clubes etc. Estes, por sua vez, necessitam de canais de expressão – os materiais ideológicos – que Gramsci classifica segundo seu grau de eficiência: "os meios audiovisuais (…) são os meios de difusão que possuem maior rapidez, raios de ação e impacto emotivo muito mais vastos que a comunicação escrita (livros, jornais), mas superficialmente e não em profundidade" (5).
"Em todo homem está presente uma consciência imposta pelo ambiente em que vive, e para qual, portanto, concorrem influências diversas e contraditórias. Na consciência do homem, abandonado à própria espontaneidade, não ainda criticamente consciente de si mesmo, vivem ao mesmo tempo influências ideológicas diferentes, elementos díspares, que se acumularam através das estratificações sociais e culturais diversas" (6).
Gramsci tem a clareza de que a formação da consciência, a construção da ideologia, não é algo inerente ao sujeito, mas fruto de todo um processo social, de relações sociais e históricas bastante concretas. Sabe também da capacidade de influência que a ideologia das classes dominantes exerce sobre a maneira de pensar e agir (dois aspectos da ideologia) das classes subalternas. É a ideologia dominante que, em grande parte, informa e forma a consciência (ou falsa consciência – Luckács) das classes sociais dominadas.
Não sem razão Marx já afirmava na sua obra Ideologia Alemã que as idéias dominantes eram sempre as idéias das classes economicamente (e, portanto, politicamente) dominantes, pelo menos, como ressalva Gramsci, nos momentos em que não existe a crise da hegemonia, ou seja, nos momentos em que a revolução não se apresenta enquanto problema imediato a ser resolvido.
A preocupação de Gramsci, em certo sentido, foi também uma preocupação de Lênin. Era preciso não substituir a luta ideológica, em nome da luta exclusivamente econômica. Era preciso não deixar a classe operária no espontaneísmo das lutas reivindicatórias imediatas, pois não seria através delas que adviria a sua consciência de classe. A classe operária deixada à sua própria sorte caminharia, não no sentido da construção da consciência socialista, mas sim no sentido da ideologia meramente sindical-corporativa, ainda burguesa.
"Mas, por que, pergunta Lênin, o movimento espontâneo, que se dirige no sentido do mínimo esforço, conduz exatamente à dominação da ideologia burguesa? Pela simples razão de que a ideologia burguesa é muito mais antiga que a ideologia socialista e está completamente elaborada e possui meios de difusão infinitamente maiores (…) a ideologia burguesa mais difundida (ressuscitada sob as mais diversas formas) é aquela que se impõe espontaneamente, sobretudo aos operários" (7).
“A função do membro do partido é organizativa e diretiva isto é intelectual”
Não precisamos fazer aqui um minucioso trabalho de comparação entre as obras dos dois autores para notarmos o débito de Gramsci para com Lênin e deste para com Marx, particularmente, no que diz respeito ao papel desempenhado pela ideologia (enquanto conjunto de idéias) junto às classes sociais exploradas (ou subalternas) no sentido de enquadrá-las no sistema. Gramsci avança ao descobrir que entre a concepção de mundo compartilhada pelas classes populares – “impostas” pela burguesia – e a sua ação (prática) concreta, enquanto classes exploradas, existe uma contradição insolúvel, pois a sua condição objetiva de classe explorada leva-a constantemente a pôr em xeque a hegemonia das classes dominantes, ameaçando superá-la.
O problema central, para Gramsci, tratava-se então de tornar explícitas (através da filosofia de práxis) as condições de exploração, que de uma forma ou de outra, transparecem na ação das classes sociais, criticando também a concepção de mundo imposta às classes subalternas, através dos aparelhos ideológicos, no sentido de superá-la, estabelecendo assim a "unidade entre a teoria e a prática, entre a política e a filosofia".
Mas, esta nova concepção de mundo, a proletária, que é representada pela filosofia de práxis, deve partir das experiências concretas das massas – a partir da sua compreensão ainda que fragmentária da realidade, do senso comum – não para se manter preso a ele, mas para criticá-lo, depurá-lo das influências burguesas, unificá-lo e elevá-lo a um nível superior, ao bom senso (a filosofia), construindo assim uma "visão crítica de mundo".
E para Gramsci "somente a filosofia da práxis é uma filosofia capaz de unificar e elevar as pessoas simples ao nível de uma visão superior (a filosofia)", pois ao contrário das outras filosofias, em especial a católica, "ela não tende a manter as pessoas simples em sua filosofia primitiva, o senso comum, mas tende a conduzi-las a uma concepção superior de vida. Ela afirma a exigência da relação entre os intelectuais e as pessoas simples" (8).
Uma pergunta ainda fica: Se a nova concepção de mundo, a ideologia socialista, como a chama Lênin, não nasce espontaneamente, de onde ela vem? Ela só poderia vir então de fora da relação direta entre operário e patrão na fábrica. Kautsky já afirmava: "A consciência socialista de hoje não pode surgir senão de um profundo conhecimento científico (…) assim a consciência socialista é um elemento importado de fora (…) e não algo que surgiu espontaneamente" (9).
Contudo, quem são os portadores, os divulgadores, desta ideologia? São os teóricos do socialismo, os intelectuais orgânicos da classe operária.
"Naturalmente, afirma Lênin, isto não significa que os operários não participem dessa elaboração. Mas, não participam na qualidade de operários, participam como teóricos do socialismo" (10).
Nos dias de hoje, a tarefa da construção de uma nova hegemonia, acreditava Gramsci, não poderia ser obra de um homem, de uma pessoa singular, mas deveria ser obra de "um organismo no qual já tenha início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação. Esse organismo já foi dado pelo desenvolvimento histórico e é o Partido político a primeira célula onde estão contidos os germes da vontade coletiva que tendem a tornar-se universais" (11).
Todavia, a grande diferenciação entre a estrutura de um partido operário e as demais organizações é que ele, apesar de dividido em níveis, busca superar esta divisão em seu seio entres dirigentes e dirigidos, grandes e pequenos intelectuais. Se a filosofia da práxis busca elevar as classes subalternas do senso comum ao nível do bom senso, no seio do partido ela busca capacitar o militante de base a exercer funções de dirigentes políticos.
Por isso, a tarefa do partido consiste em superar os resíduos corporativos (os momentos egoístico-passionais) através do que Gramsci chama de "processo catártico", ou seja, a superação do interesse mesquinho de "espírito de corpo" pela ação política.
"No partido político, os elementos de um grupo social econômico superam esse momento (corporativo, egoístico-passional) de seu desenvolvimento histórico e se tornam agentes de atividades gerais, de caráter nacional e internacional" (12).
"Um comerciante", continua Gramsci, "não entra num partido para fazer comércio, nem um industrial para fazer nada" (13).
“Somente a filosofia da práxis eleva as pessoas ao nível de uma visão superior”
O destaque que Gramsci dá ao problema dos intelectuais está intimamente ligado à importância que tem para ele o problema da hegemonia. Não é à toa que ele chamava os intelectuais como os "funcionários de hegemonia".
"Os intelectuais (…) não são um grupo social autônomo (…) eles dão homogeneidade à classe dominante (…) todo o grupo social deve elaborar a sua própria hegemonia político-cultural, deve criar, portanto, os próprios quadros, seus próprios intelectuais" (14).
Qual é o conceito de intelectual para Gramsci?
"Todos os homens são intelectuais (…) mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais", e continua: "quando se distingue entre intelectuais e não intelectuais faz-se referência, na realidade, tão somente à imediata função social da categoria profissional dos intelectuais, isto é, leva-se em conta a direção sobre a qual incide o peso maior da atividade profissional específica, se na elaboração intelectual ou se no esforço muscular nervoso" (15). Gramsci busca captar os homens nas suas múltiplas relações. Para ele era impossível separar o "homo faber" do "homo sapiens". "Mesmo no mais mecânico e degradado (trabalho físico) existe um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora" (16). Portanto, ele supera a visão tradicional de intelectual que sempre foi traduzido na figura do grande literato, do filósofo, do artista. A concepção de Gramsci em algumas passagens de sua obra é mais ampla do que afirmam alguns autores, como Gruppi, pelo qual Gramsci teria mudado "completamente a noção de intelectual. Intelectual não seria quem sabe latim ou grego antigo, o escritor ou coisa parecida. O intelectual é o dirigente da sociedade, o quadro social" (17). Como já vimos em citações anteriores, podemos notar que o conceito de Gramsci é ainda mais amplo, em todo trabalho, até no mais mecânico, está implícita a necessidade de certo esforço intelectual, por isso "todo homem é um intelectual".
Entretanto será que Luciano Gruppi, e outros marxistas, estariam equivocados assim? Não haveria, na obra de Gramsci, certas ambiguidades que dessem margem a outras interpretações?
Acredito que sim. Numa leitura mais atenta podemos notar que Gramsci ao mesmo tempo que amplia "ao infinito" o seu conceito de Intelectual (homem = intelectual = faber + sapiens), sente certa necessidade de lhe impor alguns limites. Primeiro explode o conceito tradicional para depois resgatá-lo, em outro patamar. Referindo-se ao Partido, Gramsci afirmaria: "todos os membros do partido devem ser considerados como intelectuais (…) pois importa, sim, a função que é diretiva e organizativa, isto é, educativa, intelectual" (18). Ou seja, Gramsci relaciona o conceito de intelectual e a função dirigente. Qualquer elemento que exerça na sociedade um papel educador e o de direção (neste inclui-se o camponês, mesmo o analfabeto, que seja líder de uma das muitas ligas camponesas existentes na Itália) pode ser considerado intelectual.
"Todos os homens são intelectuais (…) mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais" e mesmo esses poucos se dividem numa verdadeira hierarquia de "intelectuais".
"Existe uma hierarquia qualitativa entre os intelectuais, essa hierarquia exclui aqueles que (…) não exerçam funções de intelectuais (o grifo é nosso): os agentes subalternos, que não têm a função de direção. No aparelho de direção social e governamental existe toda uma espécie de empregos de caráter manual e instrumental" (19). Esses setores, os agentes subalternos, não teriam grande papel na construção da hegemonia, os intelectuais propriamente ditos dividiam-se segundo o grau de eficiência enquanto agentes da hegemonia: na cúpula, os criadores da nova concepção de mundo e de seus diversos ramos como as ciências, filosofia, arte, direito; no escalão inferior, aqueles que estão encarregados de administrar ou divulgar esta ideologia (20). Gramsci faz uma divisão entre aqueles que produzem a cultura e aqueles que, de uma forma ou de outra, a reproduzem. Isto tem consequência prática, na elaboração de uma política, de uma estratégia na luta ideológica, na luta pela superação da hegemonia das classes exploradoras.
"Na frente ideológica, a derrota dos auxiliares e adeptos menores tem uma consequência quase negligenciável, é uma luta em que é preciso reservar os golpes para os mais eminentes. Se não confunde-se o jornal com o trabalho científico, é preciso abandonar as casuísticas infinitas da política que toca os jornais" (21).
Mais uma vez podemos sentir a influência do pensamento de Lênin sobre Gramsci. Nas suas diversas cartas nas quais trata do problema da produção intelectual, em especial as endereçadas a seu amigo Máximo Gorki, Lênin afirmaria: "Se os pequenos artigos, periódicos (semanais ou quinzenais) nada vos dizem, se vos sentis bem trabalhar numa grande obra, naturalmente que não vos aconselharei a interrompê-la. Ela será muito mais útil" (22).
Mas, não devemos concluir precipitadamente que a importância dada aos "grandes intelectuais" signifique necessariamente a substituição do papel que desempenham os pequenos intelectuais, enquanto agentes reprodutores da ideologia. Em especial quando se trata de compreender a sua importância na sociedade política (= Estado), cuja tática (= estratégia) fundamental é ainda o da "guerra de posições".
"Pode ser interessante empregar a tática que consiste em forçar os pontos de menor consistência para ter condições de tentar o assalto do ponto mais forte dispondo do máximo de força, na medida em que justamente liberaram-se tropas para eliminação dos auxiliares mais fracos", ou seja, na luta política, as classes dominadas nunca devem negligenciar o papel desempenhado pelos intelectuais subalternos sob pena de sofrerem graves revezes. Por isso era preciso neutralizar esse setor que tem a sua importância na estratégia revolucionária de Gramsci, a guerra de posições.
"Não existe uma classe independente de intelectuais, mas cada grupo social possui a sua própria camada de intelectuais ou tende a formá-la" (23).
“Um intelectual sem organização é tão desprezível quanto a ideologia que produz”
Para Gramsci é justamente o grau do vínculo orgânico (grupo social e camada de intelectuais) que, em última instância, define qualquer intelectual. Dependendo do grau dessa relação temos um nível de intelectual, sendo que as camadas mais importantes e complexas (de maior influência e de maior poder de coesão) são as que possuem maior ligação orgânica com uma das classes fundamentais da sociedade, em especial, com a classe que detém a direção política do Estado e poder econômico. E essa relação é mais estreita, portanto orgânica, quando o intelectual se origina da classe que representa, mas ressalva: "o chefe da empresa-homem político aparecerá como intelectual orgânico da burguesia e não como chefe da empresa, sua função predomina sobre a sua origem social (grifo é nosso)" (24).
É certo, inclusive para Gramsci, que estas afirmações devem ser relativizadas, pelo menos em alguns casos, pois se elas servem muito bem no caso das classes dominantes, não se ajustam com a mesma precisão no caso das classes subalternas que, "pelo menos inicialmente, são obrigadas a importar os seus intelectuais entre os grandes intelectuais" (25). Isto coloca as classes subalternas numa situação de inferioridade, convivendo em meio ao risco de verem seus intelectuais ser cooptados pelos grandes intelectuais das classes dominantes, através do processo que Gramsci chama de "transformismo".
Portanto, para Gramsci, o intelectual não é autônomo em relação às classes sociais e este caráter de classe do vínculo orgânico já provoca consequências: o caráter “improdutivo” de qualquer intelectual isolado de uma classe social: "um intelectual sem vínculo orgânico, afirmava ele, tem importância tão desprezível quanto as ideologias que produz" (26).
Então, qual a real função do intelectual orgânico das classes dominantes no seio da sociedade?
"São eles que elaboram a ideologia da classe dominante dando-lhe consciência do seu papel e transformando-a em concepção do mundo que impregna todo o corpo social (…) são os encarregados de animar e gerir a 'estrutura ideológica' da classe dominante no seio das organizações da sociedade civil (…) e de seu material de difusão (…) agentes da sociedade política, encarregada da gestão dos aparelhos de Estado". São eles que "mantém coeso o bloco histórico, os que elaboram a hegemonia da classe dominante que, sem eles, não poderia ser dirigente: seria apenas dominante e opressiva, faltando a base de massas, o consenso necessário para exercer o seu poder" (27). Os intelectuais, aqueles que asseguram o consenso das classes subalternas em torno das classes dominantes, que servem de elo entre a superestrutura e a infra-estrutura do bloco histórico.
Apesar de compreender o intelectual enquanto "funcionário da superestrutura" ou "funcionário da hegemonia" não incorre num erro bastante comum do "sociologismo", que estabelece uma relação mecânica entre os intelectuais e as classes sociais. Para ele nas relações intelectuais e as classes sociais deve haver a mesma mediação existente entre a infra e superestrutura dentro de determinado bloco histórico. A estrutura econômica determina, mas só em última instância, a superestrutura e esta, por sua vez, tem relativa autonomia em relação à infra-estrutura que lhe dá sustentação. Portanto, o intelectual enquanto elemento (= agente) da superestrutura, possui também uma relativa autonomia em relação às classes sociais, das quais não é um reflexo passivo.
"A evolução da estrutura, para Gramsci, pode, inclusive, ser retardada ou até retida por uma evolução mais lenta dos intelectuais particularmente pela manutenção de dirigentes políticos tradicionais" (28). É o próprio Engels que afirma: "embora as condições materiais de vida sejam as causas primeiras isto não impede que a esfera ideológica reaja por sua vez sobre ela" (29).
“No momento da crise todos os aparelhos ideológicos sofrem alterações”
Baseando-se novamente em Engels, Gramsci reafirmaria: "a relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata como ocorre com todos os grupos sociais fundamentais, e sim mediada em graus diversos, por intermédio de toda trama social, do complexo das superestruturas" (30).
É justamente esta relativa autonomia, impulsionada principalmente pelas contradições internas da sociedade, que permite, vez por outra, que alguns intelectuais se desloquem da situação de reprodutores da ideologia dominante para a de portadores de uma nova 'ideologia', a filosofia de práxis, ligando-se organicamente às classes subalternas, em especial, ao proletariado.
Marx em diversas de suas obras afirma que as bases, as causas, de qualquer revolução social, inclusive a socialista, devem ser procuradas no mundo da produção, pois elas são frutos da contradição irreconciliável entre as forças produtivas, que apresentaram um desenvolvimento contínuo e as relações de produção, que tenderiam a se desenvolver mais lentamente.
"Ao chegar a uma determinada fase do desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes.
De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social" (31). Já afirmava Marx.
Gramsci, também parte desse pressuposto marxista de que toda a crise revolucionária é, em última instância, determinada pelas contradições que se dão no mundo da produção, portanto, tem um caráter objetivo. Mas, ele avança sobre essa premissa como já havia feito Lênin, ao dirigir as suas atenções para um outro aspecto da crise revolucionária – que é o aspecto subjetivo, ideológico – ela (a crise revolucionária) é vista por ele, acima de tudo, como uma crise da superestrutura, "é lida em nível de superestrutura e é concebida como crise de hegemonia" (32). Lênin já havia esboçado as duas condições básicas (do ponto de vista político) de uma crise revolucionária: 1º) os de baixo não se submetem a ser governados como antes; 2º) os de cima já não podem governar como antes. Podemos notar que Lênin também dava muito valor a este aspecto superestrutural da crise, tão subestimado pelos teóricos da II Internacional, presos a uma leitura mecanicista e fatalista da obra de Marx. Estes “teóricos” acreditavam que o próprio desenvolvimento do capitalismo levaria-nos necessariamente ao socialismo, quer queiramos ou não. Subestimam assim o papel ativo exercido pelo homem na história enquanto agente transformador. Na verdade, esta posição aparentemente dogmática era a maneira de acobertar uma política reformista, da eterna espera da situação madura, que por si só traria as mudanças. A classe operária deveria esperar, pacientemente, a lagarta transformar-se em borboleta.
A Revolução Russa de 1917 viria desmascarar tais teses. Não por acaso o jovem Gramsci saudara a revolução Russa, como uma Revolução contra O Capital. Na verdade, tratava-se de uma revolução contra determinado tipo de leitura de O Capital. O Capital havia se transformado nas mãos da Social-Democracia européia num manual de economia e não em um guia para a ação política revolucionária.
Voltemos novamente a Gramsci para vermos como encara o problema da crise.
"Essa hegemonia", segundo Gruppi, "entra em crise quando desaparece sua capacidade de justificar um determinado ordenamento econômico e político da sociedade. Isso ocorre quando as forças produtivas desenvolvem-se a tal nível que põem em xeque as relações de produção existentes" (33), ou seja, as pressões impostas pela infra-estrutura se traduzem num desenvolvimento sem precedente do movimento social das classes exploradas, no aumento de sua ação política, o que leva, por sua vez, as classes até então hegemônicas a perderem, em grande parte, a sua eficiência enquanto "agentes do consenso" diante da contra-ideologia, que vai ganhando as classes dominantes em luta. Assim a revolução (a ruptura radical com a hegemonia anterior) só se realiza quando se forja a unidade férrea entre a filosofia de práxis, trazida pelo partido, e o movimento espontâneo das massas, entendidas aqui, enquanto classes subalternas.
O grupo dominante embora mantenha a dominação política e econômica, perde toda (ou em grande parte) a sua capacidade dirigente; é quando uma concepção de mundo que durante séculos conseguiu se impor ao conjunto da sociedade entra em crise e em seu lugar desenvolve-se uma nova maneira de pensar e agir, uma nova ideologia, informada pela filosofia de práxis.
Neste momento particular de crise, todos os aparelhos de reprodução ideológicos ou de dominação política sofrem profundas alterações: "Os partidos tradicionais (…) como os homens que os dirigem, não são mais reconhecidos como expressão própria de sua classe, ou fração de classe (…) o partido termina por se tornar anacrônico e, nos momentos de crise aguda, chega a se esvaziar inteiramente de seu conteúdo social e fica como se construído no vazio" (34).
“Nenhuma revolução se faz sem solucionar o problema chave da hegemonia”
A crise de hegemonia, que é sempre uma condição da crise revolucionária, não leva necessariamente à ruptura, ela apenas abre os espaços para que ela ocorra, sua condição Sine Qua Non. A ruptura, como já afirmamos anteriormente, exige a ação (teórico-prática) dos intelectuais orgânicos da classe, no caso, o Partido (definido por Togliatti como intelectual coletivo).
"A crise gera situações imediatas, perigosas, porque diferentes camadas da população não possuem a mesma capacidade de orientar-se rapidamente e organizar-se com o mesmo ritmo" (35). As classes subalternas, mesmo nestes períodos de crise, que teoricamente parecia-lhe mais favorável, ainda estão numa situação de relativa desvantagem diante da classe ainda no poder que, portanto, possui o domínio sobre os aparelhos de coerção e cooptação (que mesmo debilitado mantém, em parte, a sua eficiência). Gramsci já alertava que o "proletariado, como classe, é fraco em elementos organizadores, não possui e não pode dotar-se de uma camada de intelectuais senão muito lentamente (…) e somente depois da conquista do poder estatal". Aqui, decerto, Gramsci se baseava na experiência viva da Revolução Russa que teve na conquista da intelectualidade, educada pela burguesia, um problema crucial. Mas, posteriormente defenderia a tese da possibilidade e da necessidade de ganhar amplas camadas da intelectualidade, antes mesmo da conquista do poder, enquanto uma condição.
"Certamente é importante e útil para o proletariado que um ou mais intelectuais adiram a título individual ao seu programa, a sua doutrina, se fundem no proletariado e sintam-se parte integrante dele (…) Hoje, são os intelectuais como massa e não como indivíduos que nos interessam (…) É tão importante quanto útil que se opere na massa dos intelectuais uma ruptura de caráter orgânico, historicamente determinada que se manifeste como formação de massa, uma tendência de esquerda no sentido moderno do termo, isto é, uma virada em direção ao proletariado revolucionário" (36). Gramsci tinha a consciência do papel do Partido enquanto intelectual coletivo da classe. Ele era, para Gramsci, "O elemento decisivo de qualquer situação, a força permanente, organizado, preparado com bastante antecedência e que possa fazer avançar quando se julgue que a situação é favorável (e só será favorável na medida em que tal força exista e esteja plena de ardor combativo) por isso, a tarefa essencial é de, sistemática e parcialmente, formar, desenvolver, tornar essa força cada vez mais homogênea, compacta e consciente de si" (37).
Luciano Gruppi já alertava e, penso se não inutilmente, que não era Marx que Gramsci visava a desenvolver e sim Lênin. Digo inutilmente pois nestas últimas décadas a Universidade vem sendo invadida por uma série de trabalhos que têm em Gramsci o seu principal referencial teórico, ao mesmo tempo em que outros autores clássicos do pensamento marxista, em especial Lênin, vêm sendo sistematicamente abandonados, enquanto referenciais teóricos, não sendo incluídos em nossos currículos, embora poucos sejam aqueles que neguem publicamente a importância do seu pensamento.
Hoje, alguns autores chegam mesmo a erigir uma verdadeira muralha da China entre esses dois pensadores, um considerado dogmático, ortodoxo e, outro, original e crítico. As citações de Gramsci se multiplicam nos artigos e monografias, enquanto Lênin poucas vezes aparece. É justamente aí que reside a contradição, visto que Gramsci sempre se considerou leninista e procurou aplicar as teses de Lênin, de maneira original, à realidade italiana. Esta originalidade jamais significou a libertação de um limite, o pensamento de Lênin. É isto que em certo sentido este trabalho procurou, ainda que modestamente, resgatar.
A Hegemonia é decerto um problema colocado diante de qualquer classe que deseja conquistar e manter o poder político. Mas apenas a partir dos fins do século XIX este conceito passaria a compor o arcabouço teórico do que podemos chamar, grosso modo, de ciência política marxista, uma preocupação que roubaria o tempo e o sono de muitos intelectuais revolucionários. Pois só para aqueles que tinham na Revolução um problema a ser resolvido é que a hegemonia aparece também como problema-chave; para aqueles que a questão do poder não se colocava, a hegemonia também não podia se constituir como centro de preocupações mais sérias. Nenhuma revolução, até nossos dias, se concretizou sem que fosse dada solução ao problema da hegemonia, ou seja, sem que a classe revolucionária e o seu partido conseguissem o consentimento das demais classes subalternas para o seu projeto político.
Entre todos estes teóricos, inclusive Lênin, seria Gramsci que mais se preocupou em desenvolver o conceito, enquanto direção político-ideológica, enquanto momento de predomínio do consentimento sobre a coerção. Seu estudo tem como referencial teórico as sociedades européias ocidentais, mais desenvolvidas econômica e politicamente que a Rússia czarista, mas não se restringe a elas, podendo ser estendida para o estudo do Estado em geral. Coube a Gramsci o resgate do papel da ideologia e dos aparelhos ideológicos enquanto instrumentos privilegiados na construção da hegemonia; no caso da ideologia predominante, serviria enquanto cimento que dava homogeneidade e coesão a todo edifício social, um agente a serviço da produção e da reprodução das relações sociais de produção.
Resgata o papel ativo da ideologia não como reflexo mecânico da estrutura econômica, compreendendo-a em sua autonomia, ainda que relativa, como já constatara Engels em seus últimos dias.
Mas, se a ideologia é o cimento que busca manter coeso o edifício social, os intelectuais seriam os artífices desta obra, são eles (os intelectuais) os portadores e reprodutores privilegiados das ideologias, buscando dar a elas um estatuto de ciência.
Gramsci também compreendeu que a mediação que deve existir entre os intelectuais e as classes sociais que lhe dão suporte é a mesma que existe entre a infra e a superestrutura, ou seja, os intelectuais não são reflexos mecânicos das classes das quais de originam ou deveriam representar. É esta contradição que, quando levada ao extremo, pode levar a ruptura de parcelas da intelectualidade com a classe da qual provêm e a sua adesão ao projeto político de outras classes sociais.
Augusto César Buonicore é historiador e diretor do Sindicato dos Servidores Municipais de Campinas.
Notas
(1) GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História, p.16.
(2) PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico, p. 23.
(3) PORTELLI, Hugues. op. cit., p. 23.
(4) GRAMSCI, A., apud PORTELLI, H. O conceito de Bloco Histórico, p. 26.
(5) GRAMSCI, A., idem p. 28.
(6) GRUPPI, L. O Conceito de Hegemonia em Gramsci, p. 6.
(7) LÊNIN, V. I. Que Fazer?, p. 33.
(8) GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História, p. 10-11.
(9) KAUTSKY, K. apud, LÊNIN, V. I. Que Fazer?, p. 31.
(10) LÊNIN, V. I. Que Fazer?, p. 31.
(11) GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o Estado Moderno, p. 208
(12) Ibid.
(13) Ibid.
(14) GRUPPI, L. O Conceito de Hegemonia em Gramsci, p. 80.
(15) GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a Organização da Cultura, p. 7.
(16) Ibid.
(17) GRUPPI, L. Tudo começou com Maquiavel, p. 84.
(18) GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a organização da Cultura, p. 15.
(19) PORTELLI, H. Gramsci e o Bloco Histórico, p. 96.
(20) Idem, p. 97.
(21) GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História, p. 157
(22) LENIN V. I., apud J. M. PALMER; Lenine: Arte e a Revolução, p. 117.
(23) GRAMSCI, A., apud PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico, p. 85.
(24) PORTELLI, H. op. cit., p. 85.
(25) Ibid.
(26) Ibid.
(27) PORTELLI, H. op. cit., p. 87.
(28) Idem, p. 89.
(29) ENGELS, F. Obras Escolhidas, vol. 3.
(30) GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a organização da Cultura, p. 9.
(31) MARX, K. Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política.
(32) GRUPPI, L. O Conceito de Hegemonia em Gramsci, p.90
(33) Idem, p. 90.
(34) GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, p. 56.
(35) Idem, p. 55.
(36) GRAMSCI, A. apud, C.Buci-Glucksman, p. 45-46.
(37) GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, p. 54.
EDIÇÃO 21, MAI/JUN/JUL, 1991, PÁGINAS 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85