PARIS, 1871: REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO
Em 1989, todas as nações do mundo, como por um passe de mágica, festejaram apoteoticamente o bicentenário da Revolução Francesa. A mídia eletrônica de todas as partes do Globo fez com que chegassem aos telespectadores deslumbrante evento militar-coreográfico-musical e político.
A URSS, os Estados Unidos, a Inglaterra, todos os países da Comunidade Européia uniam-se para prestar homenagem àquela data que simbolizava a queda do regime feudal e o início do poder da burguesia, isto é, do capitalismo. Mas, a revolução francesa, para o povo, não é motivo de tanta festividade. Já em 1871, poucos anos depois da prometida terra de liberdade, igualdade e fraternidade, revelou-se a realidade do mundo do capital, com degradação do operário, com uma economia de mercado que exigia, para funcionar normalmente segundo os interesses dos detentores do capital, milhares de desempregados, bem como a super-exploração do trabalho das mulheres e dos menores.
Essa economia de exploração logo dará os seus frutos, esmagando a economia artesã, a doméstica e outras formas inferiores de produção, entrando francamente na senda do capitalismo. De 1851 a 1869 a riqueza da França e o volume do seu comércio cresceram em mais de cinco vezes. Por outro lado, aumentou a produção do carvão de pedra e de ferro, ambos indispensáveis ao funcionamento e à construção industrial. Enquanto em 1852 a produção foi de apenas 4,9 milhões de toneladas, em 1872 ela atingiu 16,1 milhões de toneladas. Enquanto a produção de ferro, na quinta década, teve uma média de 780 mil toneladas por ano, a média anual da sexta década foi de 1,14 milhões de toneladas. O número de locomotivas na França, em 1850, era de 5 mil e, em 1869, de 29 mil. A extensão das estradas de ferro se sextuplicou de 3,11 mil quilômetros em 1850, a 17,9 mil quilômetros.
Ao lado da pequena produção ainda predominante em Paris, através de microempresas existiam, também, grandes empresas. De 440 mil trabalhadores industriais parisienses 50 mil eram empregados em empresas municipais e em grandes companhias. À época da Comuna, Paris já possuía dez fábricas de gás, um centro ferroviário com doze estações, fábricas de cigarro, tipografias, arsenais e outras grandes empresas municipais e privadas.
Convém dizer que esse surto econômico deu-se durante o Segundo Império de Napoleão III, aliado à burguesia financeira banqueiros e usurários – além dos grandes latifundiários e a camada superior da burguesia industrial. Assim, o dono das maiores fábricas de munições de Creuse, Schneider, era presidente da Câmara dos Deputados. Napoleão preparava-se para sua aventura colonial no México e para a guerra contra a Alemanha.
Apesar do surto industrial, a França à época da Comuna era predominantemente agrária pois, em 1872, 68% da população francesa viviam em regiões agrárias e somente 32% nas cidades. Era um campesinato pouco diferenciado, grande parte sem terra, particularmente atormentado pelas dívidas.
Na época do Segundo Império eles pagavam um imposto direto sobre a terra, impostos sobre os produtos à cidade. Vivia particularmente oprimido pelas dívidas e frequentemente o camponês era somente o proprietário simbólico da sua terra, porque as suas rendas eram logo distribuídas entre os seus credores.
Enquanto no campo a situação existente era a que descrevemos, a classe operária se expandia dinamicamente. De acordo com o censo de 1861, existiam na França 2,9 milhões de trabalhadores industriais e 1,6 milhões de patrões. Enquanto em Paris cada empresa industrial tinha a média de 4,5 operários, a média geral para o país era ainda mais baixa: 1,7 trabalhadores. Média tão baixa de trabalhadores por empresa demonstra que na França havia um grande número de empresas artesãs.
A situação dos trabalhadores durante o Segundo Império piorou seriamente apesar do desenvolvimento econômico. Entre a quinta e a sexta década, os salários aumentaram entre 10 e 40% enquanto o preço das mercadorias e o aluguel das habitações tiveram um aumento de 70%.
Por outro lado, a jornada de trabalho em Paris excedia de 11 horas e na província ia geralmente além de 12 horas e em alguns lugares como no Loire Superior chegava a 15 e 16 horas.
Os protestos dos trabalhadores contra essa situação eram violentamente reprimidos; ocupavam fábricas com tropas, estabeleciam penas de prisão para os grevistas. Até 1864 (através da Lei de la Chapelier) as coalizões operárias estavam proibidas. O governo permitia a formação de sociedades operárias sob a direção do padre ou do alcaide local. Muitas dessas entidades tinham mais o papel de espionagem do que de reivindicação social e econômica.
A luta de classes que se aguçava tinha de ser exercida nas situações mais desfavoráveis para os operários. Nem por isto ela deixou de existir, especialmente após a participação da Internacional na França. O número dos seus membros aumenta e isso desperta o receio de Napoleão III, que a dissolve depois de prender e julgar inúmeros membros da organização.
As tropas do Imperador dispararam sobre os trabalhadores durante uma greve de mineiros de 1869 que abrangeu todo o vale do Loire. Várias outras greves são organizadas, como a de Creuse, 1870, provocada pela destituição de Assie, membro da Internacional que teve também caráter político. Os camponeses passam a aderir aos movimentos de protesto.
A crise se agravava para o governo. A derrota da França no México, depois de três anos, quando quis impor o Imperador Maximiliano aos mexicanos, agrava mais a situação e Napoleão vê como saída uma guerra contra a Prússia.
A guerra foi um desastre. Depois de sucessivas derrotas os franceses perdem a batalha-decisiva, em Sedan, em 1º de setembro, tendo os prussianos capturado 86 mil
soldados, 39 generais, o próprio Imperador e 650 canhões (1).
"La Débâcle", como a batizou Émilie Zola, estava consumada. A França, além de perder a Alsácia-Lorena, teria de pagar cinco milhões de francos como indenização de guerra. A França estava arrasada. A burguesia desesperada proclama a república. Porém logo traiu as esperanças do povo. O governo de Defesa Nacional demonstrou total incapacidade para governar. À sua frente estavam inimigos da classe operária, como o general Trochu, chefe do Conselho de Ministros, militar da capital e que não ocultava suas simpatias pela monarquia.
Mas, apesar da capitulação de Napoleão III em Sedan, os prussianos marcham sobre Paris: não queriam apenas vencer a guerra, mas saquear a cidade. Nesta conjuntura os trabalhadores começam a praticar ações armadas. Thiers, que sentia a revolução no ar, segundo René Garmy, "quis desarmar o povo antes que fosse tarde demais. Em 18 de março as tropas governamentais lançaram-se das alturas para tentar apoderar-se da artilharia; porém espontaneamente formou-se a resistência. A multidão fechou o caminho e o 88 de linha levantou os fuzis e confraternizou com os insurgentes. Os generais Leconte e Clemente Thomas foram fuzilados. Por todas as partes foi dado o alarma e os soldados de Thiers tiveram de bater em retirada. Para isto foram erguidas barricadas. Diante da insurreição, Thiers ordenou a retirada do exército do governo e das administrações para Versalhes. À noite de 18 de março, o Comitê Central da Guarda Nacional, desconcertado pela rapidez da insurreição, de improviso e quase contra a sua vontade, nomeia-se governo provincial. Assim se consumou a ruptura entre a burguesia e o proletariado" (2).
Com as tropas governamentais derrotadas em Versalhes a Comuna elege os seus representantes e passa a deliberar rapidamente, enquanto o governo de Versalhes negocia com o comando alemão a fim de obter autorização de elevar de 40 mil a 80 mil homens (depois 100) o efetivo das suas tropas, destinados a operar contra Paris revoltada (Veja cronologia dos acontecimentos).
Durante a luta militar a Comuna passou pelas armas menos de 90 pessoas (reféns, espiões, agentes provocadores etc).
As tropas versalhesas perderam durante as batalhas de rua 83 oficiais mortos e 430 feridos; 790 soldados mortos e 5.990 feridos.
Em primeiro lugar a Comuna não soube manejar a arma governamental. Não soube fazer como devia a mobilização de suas tropas contra Versalhes nem abrir os arquivos secretos, nem apoderar-se dos fundos do Banco da França, nem reprimir com a energia necessária os complôs contra-revolucionários. Thiers conseguiu de Bismarck a libertação de 100 mil prisioneiros, que se encontravam em suas mãos para marchar sobre Paris, isolando-a das províncias e das massas camponesas sem que os comunardos tivessem a iniciativa de levantar focos insurrecionais no campo, permitindo, com isto, a entrada dos exércitos de Thiers que ocuparam Paris.
Um dos maiores erros da Comuna foi "a reverência com que olhava o Banco da França". E uma vez mais, grande parte deste erro foi devido à minoria. O banco armazenava gigantescas reservas de ouro da burguesia francesa, que estavam servindo para sustentar aos de Versalhes, ou seja, à contra-revolução.
Na realidade conservou em seus postos o antigo diretor e os membros da antiga guarda. Nomeou apenas um comissário que vinha somente resguardar a segurança do capital da burguesia francesa. O banco tinha um total de três bilhões de francos em ouro, bilhetes e documentos. A quantia representada somente em ouro e brilhantes era de 1,3 milhões de francos.
Sob as vistas da Comuna, o Banco da França fornecia dinheiro sem nenhum embaraço ao governo de Versalhes. Se a Comuna tivesse tomado posse do banco, a burguesia francesa teria exercido pressão sobre o governo de Versalhes para exigir que firmasse um acordo com a Comuna.
Houve também muita divergência ideológica: anarquistas, blanquistas, babeufistas e outras correntes pequeno-burguesas no seio da classe operária da época, dificultaram a unidade de decisão em momentos cruciais, do que se aproveitou a contra-revolução para lograr a vitória.
Esmagada militarmente a Comuna, iniciou-se o terror, não apenas contra os seus líderes e participantes, mas contra a população de Paris. Alguns documentos da época dão uma pálida visão do que foi essa carnificina contra homens, mulheres e crianças. A corte marcial de Chatelet e a caserna de Lobau, para citarmos apenas esses dois centros de repressão e tortura, não poupavam nenhum parisiense, mesmo sem nenhuma participação nos eventos. Pequenos matadouros funcionavam nas administrações municipais, nas escolas, nos terrenos baldios, nas estradas dos subúrbios etc. Havia grades nas prisões de Mazas e da Roquette. Houve também degolamentos em massa no Panteão, nos Buttes Chaumont e no P're Lachaise.
Belleville e La Villete foram literalmente despovoadas pelo massacre.
A repressão, os fuzilamentos e deportações duraram até o mês de agosto. M. Camille Pelleton fazendo a contagem dos mortos e conferindo a cifra oficial de 17 mil (admitida pelos generais da ordem) concluiu, por baixo, que 30 mil trabalhadores parisienses foram assassinados no decurso da semana sangrenta de maio de 1871. Junte-se a essa quantia a dos prisioneiros mortos sobre barcaças, deportados para a Nova Caledônia ou outras partes (Rochefort e Louise Michel estiveram neste número) e lá dizimados pelas febres. Queiram lembrar-se que 40 mil pessoas, homens, mulheres e crianças, foram presas em Paris, levadss para Versalhes, encerradas em Satory, em condições atrozes – e que os massacradores da ordem tiveram, eles próprios de admitir a inocência de 2/3 desses infelizes – e ter-se-á talvez uma idéia aproximada do modo pelo qual a burguesia trata o povo operário (3).
O historiador André Ribard descreve as cenas do terror da seguinte maneira: "A repressão foi abominável. Massacrou-se nas igrejas, no Muro, no Panteão, nas ambulâncias, mataram-se à queima-roupa mulheres amamentando os seus filhos, médicos, inválidos, feridos e enfermeiros. Massacrou-se a tiros de metralhadora nas lamas das docas de Satory. Formaram-se cortejos de prisioneiros em Versalhes e as elegantes vieram cuspir neles" (4).
Assim se restabeleceu a ordem "democrática" na França. A Comuna de Paris, apesar de derrotada, marca uma virada qualitativa no nível das lutas sociais no mundo moderno. Não apenas pela sua combatividade, seu heroísmo e senso de organização, ela se projeta como superior a todas as outras que a precederam.
O que a faz qualitativamente superior é o fato de que, pela primeira vez, o proletariado toma o poder e dirige a sociedade, demonstrando, na prática, a possibilidade concreta da existência de uma sociedade sem exploradores e explorados, criando um novo tipo de Estado representativo dos trabalhadores. Esse Estado que se criou na Comuna foi o embrião daquele que surgiria depois, conforme previa Engels ao escrever: "Em realidade o Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra, tanto na República democrática como sob a monarquia; e no melhor dos casos, um mal que se transmite hereditariamente ao proletariado triunfante em sua luta pela dominação de classe. Como fez a Comuna, o proletariado vitorioso não pôde deixar de amputar imediatamente na medida do possível os aspectos mais nocivos desse mal, até que uma futura geração, formada em circunstâncias sociais novas e livres, possa desfazer-se de todo desse velho traste do Estado.
Ultimamente as palavras 'ditadura do proletariado' voltaram a despertar sagrado terror ao filisteu social-democrata. Pois bem, senhores, quereis saber que face tem essa ditadura? Olhai para a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!" (5).
Clóvis Moura é sociólogo e escritor. Professor examinador de pós-graduação da Universidade de São Paulo. Autor de vários livros, destacando-se A sociologia posta em questão, Sociologia de la Praxis, Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha e As injustiças de Clio.
NOTAS
(1) EFIMOV, A. e FREIBERG, N. História da Época do Capitalismo Industrial. Vitória, RJ. 1945. 2 vols., 2ª ed., p. 552-55.
(2) GARMY, René. Origenes de Capitalismo y de los Sindicatos. América, México. 1938, p. 133.
(3) DUNOIS, A. et alii. A Comuna da Paris. Laemmert, RJ, 1968. p. 46.
(4) RIBARD, André. História do Povo Francês. Brasiliense, SP. 1945, p. 263.
(5) ENGELS, F. in Obras Escolhidas de K. Marx e F. Engels. Alfa-Ômega, SP, s/d, p. 51.
EDIÇÃO 21, MAI/JUN/JUL, 1991, PÁGINAS 40, 41, 42