A Comuna é um exemplo da fantástica capacidade transformadora das massas. Diante de uma oportunidade concreta de enfrentar seus inimigos, os trabalhadores realizaram prodígios com os poucos recursos que tinham à mão. Enfrentaram forças muito superiores, revelaram imensa criatividade e, apesar da falta de um programa sistemático e coerente, tomaram iniciativas revolucionárias de grande significado.

Embora seja uma experiência limitada – pelas circunstâncias concretas da situação – representa uma demonstração convincente de como transformações sociais são obra das grandes massas e não um processo esquemático, traçado previamente por cérebros iluminados.
A revolução assemelha-se à explosão das águas que rompem uma barreira e, no choque com os obstáculos, procura o caminho mais apropriado.

Mas, por outro lado, a atividade dos comunardos comprovou que a energia revolucionária se perde quando não é canalizada e organizada por um Partido. Um destacamento de combate capaz de compreender cientificamente a situação e, de forma global, avaliar as tarefas mais importantes, traçar uma estratégia e as táticas adequadas a unir os esforços de milhares de braços que se levantam. Um núcleo que oriente o centro da explosão para o coração do inimigo e, com isto, utilize plenamente o potencial das forças acumuladas.

Os combatentes de Paris eram, na grande maioria, operários. Mas eram lutadores apoiados mais no instinto de classe do que em conceitos e programas. Nesta época, o marxismo já tinha razoável penetração no movimento operário. Esta influência, entretanto, ainda não se traduzia em organização política do proletariado. Faltava aos comunardos um partido com visão revolucionária da sociedade e das transformações exigidas. Mesmo assim, no curso de luta, as idéias socialistas fizeram com que a maioria das orientações adotadas tivesse nítido caráter revolucionário e, inclusive, fosse contra as doutrinas pequeno-burguesas então dominantes – mesmo entre os dirigentes do movimento.

Os trabalhadores parisienses contavam com os sindicatos e com as seções francesas da Associação Internacional dos Trabalhadores, ainda muito débeis.

Com o desenvolver da luta, o povo se organizava em clubes que já existiam antes da Comuna, mas com papel muito limitado.

Tais clubes, entretanto, formados espontaneamente, não se construíam em bases político-ideológicas unificadas, possuíam uma estrutura muito rudimentar e pouca ligação uns com os outros, não tinham capacidade de dirigir um movimento revolucionário tão vasto. Dedicavam-se a elevar a "educação do povo pelo povo", como proclamavam os estatutos dos Clubes Proletários, e "uniam-se para fazer triunfar a revolução", como declarava o Clube Nicolas-des-Champs. A variedade de concepções entre os comunardos dificultava a definição de objetivos comuns e a unidade de ação mais ampla. O movimento abria seu caminho um pouco pelo ímpeto revolucionário das massas, um pouco por iniciativas dos mais avançados, um pouco pelo espírito prático dos trabalhadores, com base em formulações bastante gerais sobre uma nova sociedade. A ideologia do proletariado, sistematizada pelo marxismo, ainda não tinha condições de galvanizar o processo social.

Entre os representantes eleitos para o Conselho da Comuna, a maioria se dizia de revolucionários independentes – com muitas idéias, mas sem capacidade de transformá-las em um plano revolucionária.

Outra parte era de republicanos, defensores de um socialismo um pouco romântico, impreciso (Lênin os chama de jacobinos sem povo). Uma parte era de blanquistas, seguidores de Blanqui (preso em Versalhes), velho revolucionário, abnegado, mas preso a uma visão imediatista com grande incompreensão sobre o papel das massas e do próprio processo revolucionário. Cerca de 30 conselheiros eram ligados à Internacional, porém com pouca unidade ideológica. Boa parte destes estava sob domínio das concepções anarquistas – e reformistas – de Proudhon. Só uns poucos, como Frankel, Vaillant e Vaslin, tinham proximidade com as idéias de Marx – mesmo assim, exerceram razoável influência sobre os demais e fizeram enorme esforço para manter Marx informado dos acontecimentos. E este, por sua vez, mesmo à distância, dedicou-se com entusiasmo à tarefa de ajudar os insurretos com algumas orientações (Veja carta de Marx no quadro).

Dos 90 membros do Conselho, 25 eram operários. Militantes autênticos, conhecidos do povo. Mas não representavam um partido. Nem mesmo se inspiravam na ideologia operária. Eram também portadores de concepções marcadamente pequeno-burguesas, republicana e proudhonista. Apesar disto, revelaram-se os mais lúcidos e coerentes. Embora não fossem marxistas, na ação prática se aproximaram das orientações mais revolucionárias. Por sua bravura e combatividade, eles arrastaram a maioria para um caminho mais próximo às exigências da luta de classes, com as debilidades já vistas.

Entretanto, a vida ensinou – e vem confirmando seguidamente – que só o instinto revolucionário não é capaz de conduzir à revolução. Sem compreender o alcance da luta de classes, os comunardos não perceberam que a burguesia, ao retirar-se para Versalhes, realizava uma manobra estratégica para acumular forças e, a seguir, esmagar a revolta de Paris. Tiveram excessivo respeito pelas formalidades e pelas instituições.

A Comuna de Paris vista por Marx

17 de abril de 1871.

Sua carta chegou bem. No momento estou com as mãos inteiramente ocupadas. Assim, apenas umas poucas palavras. Que você possa comparar as demonstrações pequeno-burguesa à la 13 de junho de 1849, etc., com a atual luta em Paris, é bastante incompreensível para mim.*

A historia mundial seria na verdade muito fácil de fazer-se a luta fosse empreendida apenas em condições nas quais as possibilidades fossem infalivelmente favoráveis. Seria, por outro lado, coisa muito mística se os “acidentes” não desempenhassem papel algum. Esses acidentes mesmo caem naturalmente no curso geral de desenvolvimento e são compensados outra vez por novos acidentes. Mas a aceleração e a demora são muito dependentes de tais “acidentes”, que incluem o “acidente” do caráter daqueles que de inicio ficam a frente do movimento.

O “acidente” decisivo desfavorável, desta vez, não deve de modo algum ser encontrado nas condições gerais da sociedade francesa, mas na presença dos prussianos na França e sua posição logo junto de Paris. Os parisienses estavam muito conscientes disso. Mas a canaille burguesa de Versalhes estava também muito consciente disso. Precisamente por esta razão eles apresentaram aos parisienses a alternativa de aceitar o combate ou sucumbir sem luta. No ultimo caso, a desmoralização da classe operaria seria uma desgraça muito maior que a queda de qualquer numero de “lideres”. A luta da classe operaria contra a classe capitalista e seu domínio entrou em nova fase com a batalha de Paris. Sejam quais forem os resultados imediatos, um novo ponto de partida de importância mundial foi conquistado.

Adio
K.M.

*13 de junho de 1849, a “Montanha” – extrema esquerda da Assembléia Nacional – organizou uma demonstração em Paris para protestar contra a violenta supressão da Republica Romana pelas tropas francesas. A manifestação foi facilmente desfeita, e indicava uma bancarrota dos democratas pequeno-burgueses na França.
(K. Marx, Carta a Kugelmann, p. 293-294)

Londres, 13 de maio de 1871

(…) A Comuna me parece perder muito tempo com bagatelas e querelas pessoais. Vê-se que há ainda outras influencias alem dos operários. Tudo isso não seria nada se você pudesse recobrar o tempo perdido.
(…) Os prussianos não entregarão os fortes aos versalhes, mas depois da conclusão definitiva da paz (10 de maio) (1) eles permitirão ao governo cercar Paris com seus gendarmes (policiais). Como Thiers e companhia tinham, como você sabe, estipulado o pagamento de uma luva no tratado concluído em Pouyer-Quertier, eles recusarão aceitar ajuda dos banqueiros alemães, oferecida por Bismark. Nesse caso, eles perderiam a luva. A condição primordial da realização de seu tratado sendo a conquista de Paris, eles suplicaram a Bismark que prolongasse o prazo de pagamento da primeira prestação até a ocupação de Paris. Bismark aceitou essa condição. A Prússia, precisando urgentemente desse dinheiro, oferecerá todas facilidades possíveis aos Versalheses para acelerar a ocupação de Paris.
Assim, cuide-se!

(Carta de Karl Marx a Léo Frankel e Eugene Varlim)

Nota
(1)- Onde está dez de maio no original a data é 26 de maio. Vacilaram em reprimir os inimigos, apressaram-se em fazer eleições, tiveram escrúpulos em se apoderar do Banco da França. A afobação em fazer eleições resultou, inclusive, em que 15 representantes da burguesia conseguissem votação suficiente para ocupar cadeiras no Conselho da Comuna (logo passaram a sabotar o movimento e se demitiram). Também por falta de visão histórica, não buscaram apoio dos camponeses. Só muito mais tarde, a 28 de abril, aprovou-se um "Apelo aos Trabalhadores do Campo". Por tudo isto, como afirmou Lênin, ficaram a meio caminho. E permitiram à burguesia retomar a ofensiva.

E fácil compreender tais debilidades. O nível de desenvolvimento das forças produtivas era pequeno. Boa parte dos operários trabalhava em fábricas pequenas ou médias. A classe operária não tinha noção exata de sua força e de suas tarefas no movimento revolucionário.

A Comuna, e inúmeras experiências posteriores, demonstraram que o proletariado não tem como exercer sua hegemonia sem a constituição de um partido de classe, diferente, com visão científica da sociedade, que saiba como agem as outras classes, que interprete corretamente o que cabe aos trabalhadores realizar e que alianças devem realizar, assim como os alvos principais a serem atacados. Uma organização com perspectiva histórica e idéias revolucionárias, que reúna os elementos avançados e faça com que, através da estreita ligação destes com as grandes massas, o conjunto do movimento popular tenha uma direção consequente.

Não se pode pensar consequentemente em revolução sem tratar da organização de sua força mais destacada, que é a classe operária. Este foi um problema na Comuna e é um problema geral, para todos os países na atualidade.

Mas a ligação com as massas e a capacidade de disputar posições e influenciar a maioria – mesmo em situação difícil – como fizeram os operários da Comuna, precisam ser relembradas em nossos dias.

Em não raras ocasiões, destacamentos operários agem, até hoje, como se bastassem a definição pelo marxismo-leninismo e a adesão formal aos princípios para assegurar a posição dirigente. Transformam, assim, o posto de vanguarda em um "status" automaticamente estabelecido e não em uma condição dia a dia conquistada, teórica e praticamente.

Tal atitude tem provocado o afastamento dos trabalhadores, deliberações fora da realidade, conclamações pomposas e vazias. E o esvaziamento de tais partidos.
Em países onde se iniciou a construção do socialismo, este fenômeno se manifestou de forma mais aguda. A posição de vanguarda passou a ser definida em Constituição: "A força dirigente é o Partido Comunista". E pronto. A atividade apoiada na dialética foi então substituída por procedimentos burocráticos. O Partido assumiu uma postura acima do povo, isolando-se e perdendo seu caráter avançado. Mais do que isto, passou-se a considerar o Partido como única forma de o proletariado exercer sua direção política, diminuindo o papel dos sindicatos, dos sovietes, das cooperativas e outras organizações de massas.

Os acontecimentos na URSS e no Leste europeu evidenciaram todo o dano que isto acarreta. No socialismo, a batalha pela hegemonia, no terreno das idéias e da prática, prossegue, com novas formas e, muitas vezes, mais acirrada. Trocar bons argumentos, a vinculação com o povo, o desenvolvimento da teoria, a sistematização das experiências, o aprendizado com as massas, por métodos administrativos e pelo mandonismo, não pode conduzir a um bom final.

Estudar a Comuna não é saudosismo ou exercício cultural diletante. É sobretudo extrair e aproveitar os ensinamentos para a prática presente. A luta dos comunardos chama a atenção para a necessidade do Partido e fornece indicações importantes para o processo de sua construção. O papel do Partido é canalizar as imensas energias das massas e não substituí-las ou comportar-se como um ser superior que dita regras e dá ordens.

EDIÇÃO 21, MAI/JUN/JUL, 1991, PÁGINAS 49, 50, 51