HISTÓRIA: A CIÊNCIA DO HOMEM
A história está na ordem-do-dia em nossos tempos. Expressões como "bonde da história", "contra-mão da história", "fim da história" trazem para os meios de comunicação muitas das preocupações que, tradicionalmente, frequentavam apenas os gabinetes dos especialistas e suas vizinhanças. E os historiadores, cientistas sociais e outros intelectuais dão, de bom grado, sua contribuição ao debate.
"Não tentemos descobrir uma lei ou regras de evolução", pede um historiador eminente, o francês George Duby – o mesmo que, em outro lugar, diz não acreditar que "a objetividade seja possível em história". Ele é um elo de uma linhagem secular.
Nietzsche, em 1874, escrevia: "enquanto há leis na história, as leis não valem nada e a história não vale nada". Em nosso século, pensadores como Karl Popper e Claude Levi-Strauss recusam-se a reconhecer o caráter de ciência à história, uma forma de conhecimento que o nazista alemão Martin Heidegger considera um destino, sobre o qual "não é o homem que decide", teoria aparentada à do brasileiro (e atualmente muito badalado, até nos círculos reformistas da esquerda) Carlos Byington, um psiquiatra e analista de filiação junguiana. Ele criou, com base nas idéias do suíço Carl Gustav Jung, uma teoria mitológica da história que preconiza um "conhecimento iniciático revelado a partir da função prospectiva" de símbolos gerados a "partir do inconsciente coletivo operante, criativo e reativo à realidade histórica". Finalmente, outro tema – o do fim da história – foi trazido às páginas dos periódicos pelo nipo-americano Francis Fukuyama, um consultor da Rand Corporation e do Departamento de Estado do governo norte-americano. Poucos meses depois de anunciar que Clio havia completado seu trabalho com o predomínio da democracia liberal, Fukuyama apresentou também uma proposta para garantir a integridade e a segurança da obra que a Musa da História levou tanto tempo para terminar: a substituição do Conselho de Segurança da ONU por um organismo internacional formado a partir da estrutura da OTAN, do qual só participariam os países que aplicam o modelo democrático-liberal (isto é, por definição, as potências imperialistas de nosso tempo) e que funcionaria como polícia internacional para solucionar conflitos em todo o Mundo.
"A história não é uma ciência como as outras", diz Jacques Le Goff, historiador francês. Ele toca aqui o ponto central de uma importante linha de argumentação que recusa o caráter científico à história. É a argumentação daqueles que, como Popper, tentam reduzir a história ao paradigma das ciências chamadas exatas. "Do nosso ponto de vista, não podem existir leis históricas", escreveu Popper. "Na história, só raramente pode ser obtida uma teoria que possa ser testada e que seja, portanto, de caráter científico".
O que distingue o estudo das outras ciências da análise do fato histórico
A ciência, para Popper, trabalha com experimentos que podem ser repetidos e verificados em condições laboratoriais. Ora, na história isso é impossível – ela baseia-se em fatos únicos e irrepetíveis, cujo registro é sempre incompleto e invariavelmente comprometido pela visão do autor do relato. A especialidade da história é o particular, escreveu o francês Michel de Certeau – e aqui esbarramos em outra linha de argumentação contra o caráter científico da história, a representada pelo alemão Friedrich Nietzsche (ver meu artigo "Filósofo de Direita, Guru da Esquerda", in Princípios, nº 20), que enfatiza o particular em detrimento do geral, do universal.
Centrada no fato, no acontecimento, no passado irrepetível, a história se distingue das outras ciências precisamente pela natureza de seu objeto. Mas o que é esse objeto? Não é, evidentemente, semelhante ao objeto da física, da química, da biologia, das demais ciências da matéria – que podem ser tocados, medidos, observados direta ou indiretamente. Ele não se reduz a um mero acontecimento, isolado, fechado em si próprio. Um fato só adquire significação quando inserido numa rede ampla de relações. Um fato histórico é, assim, um conglomerado de inúmeros outros, que ele articula, interliga, aos quais dá sentido e dos quais, por sua vez, extrai seu próprio sentido. Por não compreender isso, Popper não consegue hierarquizar os fatos, e seu liberalismo exige igualdade para todos. "Uma história concreta da humanidade, se houvesse, teria que ser a história de todos os homens. Teria que ser a história de todas as esperanças, lutas, sofrimentos humanos. Nenhum homem é mais importante que outro. É claro que essa história concreta não pode ser escrita".
Se fosse possível seguir o programa proposto por Popper para a história, chegaríamos a um resultado semelhante ao dos cartógrafos referidos por Jorge Luis Borges que, tentando fazer mapas cada vez mais precisos e fiéis à realidade, acabaram produzindo um que tinha o tamanho do país mapeado e que, portanto, não servia para nada.
Ciência das relações no tempo e no espaço, a história tem outras exigências. E, como Marx já havia observado no prefácio à primeira de O Capital, a abstração é a mais veemente dentre elas. "Na análise das formas econômicas não podem servir nem o microscópio nem reagentes químicos. A faculdade de abstrair deve substituir a ambos", escreveu.
Por isso, como diz o biólogo Stephen Jay Gould, "os estereótipos do 'método científico' não têm lugar para a irredutível história". "As leis da natureza são definidas pela sua invariabilidade no espaço e no tempo. As técnicas de experimentação controlada e da redução da complexidade natural a um conjunto mínimo de causas gerais partem do pressuposto de que todas as épocas podem ser tratadas da mesma forma e simuladas adequadamente em laboratório". Isso não se aplica à história: "há muitas diferenças entre as explicações históricas e os resultados experimentais. Não existe a possibilidade de se comprovar os fatos através de sucessivas repetições porque estamos tentando explicar as causas de um conjunto único de detalhes que, tanto pelas leis da probabilidade como pelo caráter irreversível do transcurso do tempo, não podem voltar a ocorrer".
A política é a principal fonte das teses para ter visão do processo
Essa é a opinião de um cientista cujo interesse pela história da vida e da evolução levou-o às vizinhanças da ciência da história, onde encontrou uma problemática semelhante à encontrada pelos historiadores, com as mesmas exigências e limitações. E o que é que faz o historiador? Em primeiro lugar, tenta "ver" – a própria palavra "história" deriva de radical indo-europeu "wid", "weid", que significa "ver". Em grego, "historien" é "procurar saber", "informar-se". Fiel a essa imposição, outro eminente historiador francês, Fernand Braudel, diz que "ver, fazer ver, é metade de nossa tarefa. Ver, se possível, com os nossos próprios olhos".
Mas isto não basta. A história tem também que entender, esclarecer, procurar o sentido que encadeia os fatos e determina os resultados. Uma história baseada exclusivamente nos fatos, que renunciasse ao esforço de compreender o processo onde eles se situam, não passaria de mera crônica, um registro cuja única diferença para com o jornalismo seria a distância temporal em relação ao objeto de seu relato. "As leis da história tem de ser demonstradas nos fatos e a partir dos fatos" – escreveu Rerbert Marcuse em seu estudo sobre Hegel. "Até aqui, o método de Hegel é o método empírico. Mas estas leis não podem ser conhecidas a não ser que a investigação tenha sido orientada, desde o início, pela teoria adequada. Os fatos, por si, não dizem nada; eles só respondem a perguntas teóricas apropriadas. A objetividade verdadeiramente científica exige, em lugar de uma recepção passiva de fatos dados, a aplicação de categorias corretas, que organizem os dados em sua significação real".
A teoria, por definição, é formada pelo conjunto de categorias que orientam o olhar ao mundo objetivo. Mas as categorias são universais, resultam de um processo de abstração baseado na observação e no isolamento de traços comuns a inúmeros fenômenos reais. Aqui estamos novamente às voltas com a dialética do universal e do particular (ver meu artigo acima citado).
Há cerca de um ano, a Folha de S. Paulo abrigou uma polêmica pública cujo centro foi o ataque de alguns historiadores da Unicamp à obra de Jacob Gorender, A Escravidão Reabilitada, e o móvel da polêmica era justamente a posição daquele grupo de historiadores jovens (que se pretendem novos), para os quais a história é o conhecimento do singular e do individual, alheia à noção de leis, relações, sistemas, modos de produção etc. A atividade desse grupo de historiadores trouxe para o Brasil os métodos e as polêmicas que ocorrem no exterior, onde os defensores de uma micro-história se contrapõem aos partidários da história globalizante, onde as revoluções são opostas à vida cotidiana, onde a "autonomia das mentalidades" é enfatizada contra o condicionamento social do pensamento e da vida.
A política é a principal fonte das teses que permitem ao historiador reconstruir os processos históricos e a visão global de períodos mais ou menos extensos, com suas relações e significações que permitem ao historiador a visão de um todo articulado e coerente. Assim, a história tem outra particularidade: ela é uma ciência política. Ela nasceu nos palácios, em tempos imemoriais, quando os escribas tinham a tarefa de registrar os feitos e as glórias dos poderosos. Mais tarde, necessidades e interesses políticos de classes sociais, independentes ou contrárias ao sistema de poder vigente, levaram a novos pontos de vista na elaboração da história.
Cada classe social, em cada época histórica, produz então uma historiografia que remonta o passado de acordo com sua ótica ideológica, ressaltando seus heróis e condenando seus bandidos. Isso ocorre principalmente quando a história é vista como um leque de temas edificantes, com os quais a elite dominante pretende moldar a moral cívica dos governados através do exemplo de gerações passadas, ou enaltecer e justificar seu próprio domínio.
Para Varnhagen, historiador oficial do II Reinado no Brasil, o grande acontecimento histórico foi a expulsão dos holandeses de Pernambuco e os grandes heróis da história foram os Restauradores, isto é, os latifundiários escravistas pernambucanos que dirigiram a luta – contra o invasor estrangeiro. Varnhagen, historiador dos grandes latifundiários que dominavam a monarquia brasileira, procurava destacar, como acontecimento fundador da nacionalidade, justamente o evento onde aquela classe apareceu com mais força criadora e onde seu papel dirigente parece incontestável. Onde ela aparentemente tornou-se porta-voz da sociedade, defensora dos interesses gerais de todos os brasileiros, encarnação da nacionalidade.
A luta do povo iluminou os construtores reais da nossa sociedade
A política – e a luta política – orienta a leitura do passado e a seleção e hierarquização dos fatos em relatos consistentes. Os acontecimentos e os heróis vão surgindo na história – ou melhor, na historiografia – com a emergência de novas forças sociais, com o alargamento do campo democrático. Os negros de Palmares, os revoltosos dos levantes escravos de Salvador, na década de 1830, os camponeses Mucker do Rio Grande do Sul só emergem como heróis dignos desse nome com a irrupção do povo na história presente, nas lutas políticas contemporâneas. É significativo que O Quilombo dos Palmares, de Edison Carneiro, ou Rebeliões de Senzala, de Clóvis Moura, que foi a primeira sistematização das lutas dos escravos no Brasil, só tenham sido possíveis no calor das lutas políticas dos anos 1950, quando a exigência de democracia e de mudanças profundas na sociedade brasileira mobilizou enormes camadas do povo, tornou operários e camponeses protagonistas da luta política – e fez ver que a história do povo brasileiro é justamente a história dos escravos, base da sociedade e massa do nosso povo em quatro séculos de existência do Brasil.
O debate que opõe, no Brasil e no exterior, os historiadores do cotidiano, do detalhe, do "aparentemente insignificante", como diz George Duby, aos que enfatizam o sistema, o geral, o enfoque globalizante, é nitidamente político. A luta pela democracia deu fundamento ao liberalismo radical da nova esquerda libertária, para a qual toda forma de poder deve ser denunciada como nociva. A ênfase passou para a liberdade individual e o subjetivismo, para o resgate da memória do povo, do discurso dos oprimidos, de sua subjetividade. A historiadora Emilia Viotti da Costa enfatiza esse aspecto, e alerta para suas limitações. "Esta postura, entretanto, termina muitas vezes resultando num relativismo total. A afirmação da subjetividade é uma espécie de resistência, mas há riscos: pode-se levar toda a história para o campo do subjetivo, transformando-a em uma simples coleção de testemunhos e depoimentos". "O historiador, assim, renuncia a um discurso totalizador que possa incorporar as múltiplas subjetividades. O resultado é uma história em que todos os testemunhos são igualmente relevantes". Ele fica, assim, sem "critérios para separar o relevante do irrelevante".
Outro aspecto, propriamente historiográfico, que resulta dessa tendência, é a atomização dos relatos históricos em casos isolados, parciais, arqueológicos no sentido foucaultiano do termo – relatos que se encerram em si, aparentemente sem ligações com outros do passado, sem pretender influir em outros do futuro, envolvendo seu tema em camadas, como uma cebola envolve em camadas seu núcleo vazio.
Este é outro lado da renúncia dessa historiografia que, muito apropriadamente, se considera uma arte (e seus relatos, literatura) e não ciência: ela se desenraiza de sua própria ciência. Além de ser condicionada por interesses mais gerais dos atores sociais, a história é impulsionada também por uma dinâmica própria. Em certa medida, ela adquire – como todas as outras ciências – autonomia, e gera seus próprios problemas e questões, cujo esclarecimento depende não apenas da reflexão sobre os resultados já obtidos, mas principalmente da descoberta de novos dados sobre o passado, que permitam aprimorar o conhecimento e melhorar as teses que orientam a história como ciência.
Ver no passado os signos denunciadores da nossa realidade atual
A política e a própria historiografia podem estar, assim, entre os elementos que dão origem às teses que organizam o estudo do passado. Este é o sentido da ruptura de Karl Marx com a idéia tradicional de história corrente no século XIX, ruptura que aparece já em seus primeiros escritos, principalmente em A ideologia Alemã, de 1845.
"Neste particular, para a concepção marxista da história, o processo histórico importa em função do presente, pois, através do método histórico, se chega à compreensão e crítica da realidade social, residindo aí a importância da história como ciência", escreve a professora Gizlene Neder.
De fato. A forma mais desenvolvida, mais complexa e variada é, para Marx, a chave das formas anteriores a partir das quais ela se desenvolveu. "A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco", escreveu ele. Mas só no sentido de que "nas espécies animais inferiores só se podem compreender os signos denunciadores de uma forma superior quando essa forma superior já é conhecida". Isto tem uma importância decisiva para a crítica marxista das doutrinas históricas anteriores, principalmente da doutrina cristã: "aquilo a que se chama de desenvolvimento histórico baseia-se, ao fim e ao cabo, sobre o fato de a última forma considerar as formas passadas como jornadas que levam ao seu próprio grau de desenvolvimento, e dado que ela raramente é capaz de fazer a sua própria crítica".
Aparentemente nosso círculo parece começar a se fechar. Para a compreensão e crítica da realidade social atual a história deve entender o passado e encontrar nele "os signos denunciadores" dessa forma atual. Mas a história só pode fazer isso se for uma ciência.
"A melhor prova de que a história é e deve ser uma ciência – diz Jacques Le Goff – é o fato de precisar de técnicas, de métodos e de ser ensinada". Ela "é a ciência do tempo", ensina o historiador e, por isso mesmo, seu objeto perde-se, sem relevo, na multiplicidade infinita dos acontecimentos que cercaram a vida humana no passado. E é preciso descobrir, nesse emaranhado, as linhas de desenvolvimento que conduzem ao presente, processos objetivos que ocorrem no mundo real, fora da consciência do homem (e fora, igualmente, de qualquer consciência transcendental, não importa seu nome: Deus, Absoluto, Espírito do Tempo, etc).
Se o relato do historiador é condicionado pelos interesses conflitantes de seu tempo, se a teoria com a qual ele organiza sua investigação é expressão desses interesses, como deixar de pensar que, não importa o ponto de vista, qualquer reconstrução histórica é igualmente válida? Como escapar, aqui, do relativismo histórico?
Uma forma possível para escapar a esta armadilha é encontrar um elemento que, sendo comum a todas as épocas históricas, possa servir de medida. E esse elemento é o progresso, apesar de todas as dúvidas e ataques a que esta noção, hoje, está submetida. Por isso, é preciso cuidado no uso desse metro. O arqueólogo e historiador australiano Gordon Childe propõe que se abandone como inútil e anticientífico o hábito de perguntar à História: "Fizemos progresso?". Será difícil obter concordância entre as pessoas e respeito de perguntas como essa. "Uma pergunta assim formulada não tem sentido científico", diz ele. Ao contrário, poderá "ser legítimo perguntar: 'O que é progresso?', e a resposta pode tomar mesmo parte da forma numérica que a ciência preza com tanta razão. Mas o progresso torna-se, então, aquilo que realmente aconteceu – o conteúdo da história". Será possível, então, avaliar a situação dos homens ao longo dos milênios, e perguntar à história se a liberdade aumentou ou diminuiu, se o bem estar social atinge a um número crescente ou decrescente de indivíduos, se as condições de higiene e saúde melhoram ou pioram, se os instrumentos para aumentar a produtividade do trabalho existem e são empregados, se a expectativa de vida das pessoas aumenta ou diminui etc.
A partir desse metro pode-se construir uma avaliação sobre os períodos históricos, julgar para onde a humanidade caminha, pode-se compreender mesmo a natureza progressista ou não de retrocessos temporários, de descontinuidades, dos períodos considerados de estagnação histórica.
Por isso, as classes sociais cujos interesses exigem a ruptura com situações cristalizadas e a aceleração da história são sempre otimistas em relação ao curso da história, ao contrário das classes conservadoras que, ameaçadas pelas mudanças iminentes, iludem-se pensando ser possível paralisar a história. Os gregos da época arcaica (antes do século V, o século de Péricles e da democracia ateniense, de Sócrates e Platão na filosofia) tinham uma concepção trágica, circular, da história. As Parcas dominam, com desígnios imutáveis, o destino dos homens, que são impotentes para lutar contra determinações gravadas desde sempre com ferro e bronze no palácio daquelas três deusas. A passagem da Idade Arcaica para a Época Clássica foi marcada por intensas lutas de classes, entre os comerciantes enriquecidos, individualizantes e, naquele contexto, progressistas, das cidades gregas, e a tradicionalista aristocracia rural. Os aristocratas defendiam um modelo eterno, baseado na afirmação da instabilidade do humano, na impossibilidade de previsão e cálculo, ficando fora da história. Contra eles, levantavam-se as "individualidades que vão criando o conceito de história como um progresso de racionalização, e ás outras individualidades, as que realizam essa idéia da história na prática. Em ambos os casos o progresso racional é concebido como conduzindo a um êxito racional – poder, riqueza – e como solidário com o progresso da Justiça", diz o historiador Francisco Rodriguez Adrados.
A noção cristã deu espaço para a perspectiva de necessidade na visão histórica
A concepção circular do tempo e da história, comum a muitas concepções míticas primitivas, presente no pensamento indiano antigo, no pensamento grego anterior ao século V, foi superada pela noção do progresso linear, principalmente depois da criação da concepção cristã da história. Para historiadores cristãos dos séculos IV e V d.C., "o mundo era governado pelo logos ou Razão Divina, também chamada Providência, que constituía a estrutura de toda a natureza e de toda a História", diz Le Goff. Ficou possível, assim, estudar o processo histórico e entender sua lógica já que, comandado pela mente de Deus, conhecer esse processo seria algo como descobrir os desígnios divinos.
Essa visão pode ser vista como uma ruptura, "uma revolução na mentalidade histórica", diz Le Goff. "O Cristianismo teria substituído as concepções antigas de um tempo circular, pela noção de um tempo linear e teria orientado a história, dando-lhe um sentido".
Santo Agostinho, que escreveu sua Cidade de Deus em 413 d.C., fundamentou a concepção cristã da história na Providência Divina, criando uma teoria cuja influência se estenderia por um milênio e meio e que, mesmo em nosso tempo, encontra inúmeros adeptos. Não se pode acreditar que Deus "tenha deixado os reinos dos homens, seu domínio e sua servidão, fora das leis de Sua providência", escreveu ele.
Foi um progresso, de toda forma. A história deixou de ser o domínio de forças cegas e inescrutáveis e passou a ser regida por leis. O progresso consiste que, agora, o estudo da história podia ser organizado segundo critérios racionais, conhecidos por todos os estudiosos, que podiam aceitá-los ou refutá-los. Ficava assim estabelecida uma base mínima que permitia tirar a história do domínio das arbitrariedades individuais, e dar os primeiros passos para sua transformação em ciência.
Ao dar um sentido para a história, a noção cristã deu origem também à noção de necessidade histórica. Orientado para um fim – o Juízo Final, depois do qual o Reino de Deus se instalaria na Terra – o processo histórico deveria percorrer etapas previstas num plano pré-fixado pela mente divina, que não previa lugar para o acaso. Cada acontecimento estaria, assim, rigorosamente dentro do script, e seu sentido esclarecido pelo objetivo final perseguido pelo processo.
O primeiro fato histórico é a produção dos meios que asseguram a vida
A concepção histórica de Hegel – a história é o processo de auto-desenvolvimento, desdobramento e auto-conhecimento do Espírito Absoluto – talvez seja o último e mais grandioso dos frutos da escatologia cristã. E a crítica a Hegel feita por Marx e, depois, por Nietzsche, talvez tenha sido, por isso mesmo, a mais arrasadora denúncia da falsidade da doutrina histórica cristã. "Essa história entendida hegelianamente – escreveu Nietzsche – foi chamada, com escárnio, a perambulação de Deus sobre a Terra, Deus este que entretanto, por seu lado, só é feito pela história". Mas a crítica aristocrática de Nietzsche, recusava-se "a escrever a história do ponto de vista das massas e a procurar aquelas leis que podem ser derivadas das necessidades das massas, portanto, as leis de movimento das mais baixas camadas de lama e de argila da sociedade". Assim, orientou-se no sentido de uma história imutável, saudosista do passado e pessimista quanto ao futuro.
Para Marx, a "concepção hegeliana da história nada mais é do que a expressão especulativa do dogma germano-cristão e a oposição do espírito e da matéria, de Deus e do Mundo". A crítica de Marx, nesse texto de 1844, orienta-se no sentido de uma compreensão não só não-cristã da história, mas também não especulativa, apontando já o caráter científico que marcaria sua concepção. "A história não fez nada, não possui 'enormes riquezas', não 'leva a cabo nenhuma luta'! (…) não é a história que utiliza o homem para realizar os seus fins – como se fosse uma entidade independente – ela nada mais é do que atividade do homem em busca dos seus fins".
Começava a nascer, assim, a mais revolucionária concepção da história, onde não há um plano pré-estabelecido nem uma finalidade rigorosamente estabelecida. Ela abria-se para o conhecimento das inumeráveis possibilidades inscritas em cada momento do processo histórico, e que só a vontade dos homens, independente de qualquer força transcendental, poderia determinar o rumo a seguir.
Essa concepção não nasceu pronta e acabada; ela desenvolveu-se lentamente, elaborada nos duros anos de estudo empreendidos por Marx e Engels. São os homens que fazem sua história, escreveram eles em A Sagrada Família (1844) e em A Ideologia Alemã (1845). No Manifesto do Partido Comunista (1848), disseram: "A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias é a história das lutas de classes". A idéia inicial de que são os homens que fazem a história começava a se precisar.
Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels esboçam também as condições para a existência da história: a produção material da vida. "Devemos lembrar a existência de um primeiro pressuposto de toda a existência humana, a saber, que os homens devem estar em condições de poder viver a fim de 'fazer história'. Mas, para viver, é necessário antes de mais nada beber, comer, ter um teto onde abrigar-se, vestir-se etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida; trata-se de um fato histórico (…) que é necessário (…) executar dia a dia, hora a hora, a fim de manter os homens vivos". Os pontos seguintes eram: satisfeita a primeira necessidade, "a ação de a satisfazer e o instrumento utilizado para tal conduzem a novas necessidades"; além disso, os homens não renovam dia a dia apenas sua própria vida, mas reproduzem-se, criando outros seres humanos.
Assim, Marx e Engels introduziam uma visão histórica que trazia a atividade prática do homem, o trabalho, e as relações objetivas, materiais, reais, dos homens com a natureza e como os outros homens, para o centro do esquema explicativo. Pierre Villar lembra como, nessa época, os fundadores do marxismo traçavam, ainda que precariamente, os fundamentos do materialismo histórico: a estreita ligação entre as forças produtivas e a divisão do trabalho, que determina as formas das relações sociais; a articulação entre a realidade social e as representações que os homens fazem dela; e, finalmente, a contradição entre as relações de produção e as forças produtivas.
Assim, foi ficando cada vez mais evidente que o comportamento do indivíduo não era completamente livre e autônomo, mas condicionado pela sociedade onde ele vive, pela história dessa sociedade. Assim, em 1852, Marx tornou mais precisa sua concepção da história. "Os homens fazem sua própria história – escreveu em O 18 Brumário de Luís Bonaparte –, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos".
Não pode haver um plano extra-histórico a determinar o rumo dos acontecimentos; esse plano, segundo se depreende das teses de Marx e Engels, é elaborado cotidianamente pelos homens, e o acaso é um elemento importante nessa elaboração. "A história universal – escreveu Marx, numa carta em 1852 – teria um caráter muito místico se excluísse o acaso. Este acaso, bem entendido, faz parte do processo geral de desenvolvimento, e é compensado por outras formas de acaso. Mas a aceleração ou o atraso do processo dependem desses 'acidentes', incluindo o caráter 'fortuito' dos indivíduos que estão à cabeça do movimento na sua fase inicial".
Velhas tradições oprimem como um pesadelo o cérebro das novas gerações
Como um rio que vai contornando as pedras e obstáculos em seu caminho, a história do homem vai assim abrindo passagem através de obstáculos que o meio geográfico, as formas de pensar e o conflito de interesses entre as classes e os grupos sociais vão erigindo. Mas esse acaso, na época em que a história se constitui plenamente como ciência, deixa de ser cego.
"A história se faz de tal modo – escreveu Engels em 1890 – que o resultado final sempre deriva dos conflitos entre muitas vontades individuais, cada uma das quais, por sua vez, é o que é por efeito de uma multidão de condições especiais; são, pois, inumeráveis forças que se entrecruzam umas com as outras, um grupo infinito de paralelogramos de força, das quais surge uma resultante – o acontecimento histórico – que, por sua vez, pode ser considerada produto de uma potência única que, como um todo, atua sem consciência e sem vontade".
Mas, como Lênin mostrou em sua atuação na revolução de 1917, na época em que a história se constitui como ciência, os atores não são mais cegos. Ao exigir do partido bolchevique a insurreição, em setembro daquele ano, Lênin advertiu: "A história não nos perdoará se não assumirmos o poder agora". Com isso, ele alertava para o fato de não bastar a existência de condições objetivas maduras para a revolução; é preciso também a disposição subjetiva para isso, a história não faz sua tarefa sozinha – ela não faz nada: são os homens que, usando os recursos que ela oferece, devem acertar o momento exato para agir. E a ciência da história é uma ferramenta de grande valia para esse diagnóstico. A crítica liberal frequentemente vê no marxismo uma variação da escatologia cristã, onde o objetivo final – o Reino de Deus na Terra – é substituído pela Revolução e pela instauração do Comunismo. Embora muitas versões do marxismo tenham contribuído para que essa crítica fosse, ao menos parcialmente, real, a verdade é que ela é completamente estranha ao marxismo e não compreende a essência da crítica feita por Marx e Engels às concepções anteriores da história. Mais do que isso, essa crítica não compreende a noção radicalmente científica e materialista da concepção da história dos fundadores do marxismo, uma concepção cujo centro são os homens reais e suas relações com a natureza e com os outros homens. Uma concepção que não reconhece, em nenhuma hipótese, a existência de um fim para o qual a história obrigatoriamente se dirige, mas que põe esse fim nas mãos e nas vontades dos homens, os únicos que podem decidir, com os meios objetivos e subjetivos de que dispõem, se o mundo caminha ou não para o Comunismo.
José Carlos Ruy é jornalista.
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