O regime de partido único passou a ser tratado, por boa parte do movimento comunista – embora nem sempre de forma explícita – como se fosse um princípio no período de transição do capitalismo ao comunismo. Em oposição a esta tendência, setores de esquerda que se consideram renovadores defendem, hoje, a necessidade de o socialismo incorporar "valores essenciais" da democracia moderna como o pluripartidarismo e a alternância no poder.

Só pode trazer benefícios estudar com atenção propostas de desenvolver o pensamento socialista. É necessário, porém, conferir o alcance prático e teórico do pluralismo e da alternância de poder e, com espírito autocrítico, analisar a relação dos comunistas com outras correntes políticas. Afinal, durante certo tempo, um dos entraves ao avanço das idéias revolucionárias foi não saber aliar a defesa dos princípios com a avaliação dos erros e deficiências da construção do socialismo.

O informe de Stalin ao 8º Congresso Extraordinário dos Sovietes, em novembro de 1936, sobre o projeto de Constituição e a Carta então aprovada, pode servir de ponto de partida.

A Constituição, em seu artigo 126, assegurava a todos o direito de se filiar em organizações sociais, sindicatos e cooperativas "enquanto os cidadãos mais ativos e mais conscientes da classe operária e de outras camadas de trabalhadores unem-se ao Partido Comunista da URSS, que é a vanguarda dos trabalhadores na sua luta pela afirmação e desenvolvimento do regime socialista e que representa o núcleo dirigente de todas as organizações de trabalhadores, tanto sociais como do Estado". O informe de Stalin, em nome da Comissão de Constituição, esclarece: "Um partido é parte de sua classe, é sua vanguarda. Vários partidos e, em consequência, a liberdade de partidos, só podem existir numa sociedade em que existem classes antagônicas, cujos interesses sejam hostis e irreconciliáveis (…)

Na URSS só existem duas classes, operários e camponeses, cujos interesses, longe de serem hostis, são, pelo contrário, amistosos. Portanto, não existe na URSS terreno para vários partidos e, por conseguinte, para liberdade desses partidos. Na URSS só existe terreno para um partido, o Partido Comunista”.

“Operário, camponês e pequeno-burguês devem ter apenas um partido como opção?”

No socialismo as classes e as lutas de classes permanecem. É possível, como lei geral, negar que os conflitos de classes se expressem através de partidos políticos? Como justificar teoricamente que só podem existir vários partidos onde os interesses de classes sejam "irreconciliáveis"? Operários e camponeses são classes distintas, com interesses, idéias, formação, economia e cultura diferentes. O campesinato e a pequena-burguesia, devido à opressão capitalista, tendem a se aliar com o proletariado. Mas ideologicamente são aferrados à propriedade privada e, no fundo, sonham com um capitalismo que lhes garanta um lugarzinho.

Marx já apontava, no Manifesto, em 1848, que o proletariado é a única classe verdadeiramente revolucionária, partidária do socialismo e do comunismo. Para manter o poder, vencer as vacilações, conquistar as grandes massas para o novo sistema e promover efetivamente as transformações sociais, os operários precisam estabelecer alianças com o campesinato e demais camadas intermediárias, ou conseguir sua neutralidade. É difícil supor que neste processo, como regra geral, a única opção partidária seja o partido, comunista.

É discutível também que em 1936 não existissem mais classes exploradoras na URSS. Do ponto de vista econômico, os poderosos tinham perdido suas propriedades particulares. É preciso estudar, porém, a possibilidade de parte dos exploradores se camuflarem e, devido a debilidades no controle de massas sobre o aparato estatal, reproduzirem ainda certos mecanismos para se apropriarem do trabalho alheio.

No socialismo, dizia Lênin em 1919, "as classes permaneceram, mas cada uma delas modificou-se; variaram igualmente as relações entre elas. A luta de classes não desapareceu sob a ditadura do proletariado; o que ocorre é que ela ganha outras formas" (1). Em 1921, voltava a advertir: "os grandes latifundiários e capitalistas não desapareceram na Rússia, mas foram totalmente expropriados e estão inteiramente derrotados no terreno político como classe, e seus restos foram esconder-se entre os empregados da administração pública do poder soviético" (2).

Isto não é propriamente o assunto deste artigo. De qualquer modo, do ponto de vista ideológico e político, a luta ente o caminho proletário revolucionário rumo ao comunismo e a reconstituição burguesa do capitalismo permanece durante todo o período de transição.
A idéia do abrandamento da luta de classes – "só existem classes amistosas" – conduz ao debilitamento ideológico do Partido como força de vanguarda, desarma a classe operária e dificulta a sua mobilização para enfrentar as contradições reais da sociedade. Pode ter também como consequência a exacerbação da repressão contra qualquer oposição ao poder – identificada não como fruto das contradições sociais, mas da ação solerte do inimigo externo.

A luta de classes é um movimento complexo, com idas e vindas, e fases distintas. Depende da marcha das transformações sociais e de seus reflexos na formação da consciência social. A experiência mostra que, em determinados momentos, é possível avançar rapidamente e com certa tranquilidade. Em outros, as resistências se radicalizam e podem inclusive assumir formas violentas. Não se pode fixar uma tendência permanente. Os partidos, e as relações entre eles, comportam-se em função desta realidade.

Quando o Partido e a classe operária estão vigilantes e mobilizados elevam sua consciência e sua capacidade de conquistar as camadas não proletárias para a luta revolucionária. Com isto, a tarefa de identificar e coibir as tentativas contra-revolucionárias desloca-se cada vez mais do aparelho estatal para as organizações de massas.

Se a classe e o Partido imaginam que "todos são amigos", e que o único a temer é o agente externo, a responsabilidade de localizar e reprimir as "infiltrações" fica cada vez complexa e dependente de especialistas de vanguarda, longe do povo… e da vida. Então, não cabe nenhuma contestação e nenhum partido discordante da linha oficial. O Partido Comunista passa, por decisão constitucional, a interpretar o sentimento de todos e a ser vanguarda. Como se vanguarda pudesse ser posto nomeado por decreto.

“A direção implica convencer e ajudar a tirar lições da experiência”

Marx, no Manifesto do Partido Comunista indica: "os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários (…) não proclamam princípios particulares, segundo os quais pretenderiam modelar o movimento operário". Mostra que eles se distinguem dos outros partidos porque em todas as lutas "destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do proletariado (…) representam sempre e em toda parte, os interesses do movimento em seu conjunto. (…) Teoricamente, têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos resultados gerais do movimento proletário".

Se os comunistas perdem esta capacidade teórica e deixam de defender os interesses comuns e gerais da classe operária, não há Constituição que os faça continuar sendo vanguarda. Esta é uma posição a ser conquistada cotidianamente em confronto com outras classes e seus partidos, se existirem. É desastroso supor que outras correntes não possam sensibilizar a opinião de parcelas dos trabalhadores, mesmo num processo vitorioso de construção do socialismo. A caminhada revolucionária depende da demonstração permanente para as massas operárias e populares, com argumentos e experiência práticas, da teoria e das vantagens da nova sociedade em construção.
Dispor de uma teoria científica evidentemente cria a possibilidade de compreender o desenvolvimento da história e identificar os interesses fundamentais dos trabalhadores. Mas a essência do marxismo, como já foi exaustivamente repetido, é a análise concreta da situação concreta e não a simples proclamação de princípios e fórmulas. Em decorrência, a relação com outras correntes de opinião deve ser considerada, em cada momento, em função das necessidades da revolução e da elevação do nível de consciência do povo e não da opinião pré-concebida de que não cabem outros partidos.

A Constituição albanesa, aprovada em 1976, seguiu o exemplo soviético e foi mais adiante. No artigo 3, proclama: "O PTA, vanguarda da classe operária, é a única força política dirigente do Estado e da sociedade”. No artigo 4, acrescenta: na Albânia, "a ideologia dominante é o marxismo-leninismo”. A precipitação em consagrar os desejos como realidade levou a que, no artigo 55, se proibisse qualquer organização e atividade religiosa.

A ilusão de que a única ameaça vinha do inimigo externo foi tão longe que Menmet Shehu, membro do Comitê Central, quando rompeu com o Partido do Trabalho da Albânia, em fins de 1981, foi caracterizado como membro de vários serviços secretos estrangeiros. Não se apontou nenhuma ligação entre suas posições com conflitos de classes no interior do país.

Não se pode confundir hegemonia política e direção ideológica do proletariado com dominação da ideologia proletária, que resulta de um longo processo de luta de classes, em todos os terrenos, que pode envolver muitas gerações, e de profundas transformações das relações sociais – tarefas essenciais da ditadura do proletariado.

O resultado das concepções equivocadas foi o afastamento entre os comunistas e o povo. Infelizmente, isto só veio plenamente à tona recentemente, com acontecimentos tão dramáticos, que culminaram com uma triste demonstração de 400 mil albaneses saudando James Baker, a troco de esmolas, na praça central de Tirana, no fim do mês de junho.

Estado e Partido são categorias derivadas da sociedade de classes. O poder socialista é resultado de uma revolução que eleva o proletariado à condição de classe dominante. É um poder da classe, que não pode limitar-se a um instrumento nas mãos do Partido Comunista. Este, pelas condições já citadas, deve dirigir política e ideologicamente, exercer, por sua compreensão dos interesses gerais, da marcha e dos fins do movimento, uma função de vanguarda, sem colocar-se acima do povo.

“Questões menores podem desviar parcelas operárias do objetivo socialista”

A classe operária não é evidentemente homogênea. O processo histórico condiciona sua estratificação em camadas diferentes em relação ao grau de consciência, organização, localização, cultura. Estas camadas têm cada qual certos interesses particulares distintos, de acordo com as condições concretas de trabalho, salário etc. São questões parciais, passageiras e conjunturais, que se expressam em geral pela formação de entidades sindicais de cada categoria. Existem entretanto interesses gerais, comuns e duradouros, da classe em conjunto – mesmo que a princípio só uma minoria tenha consciência deles – que apontam para a luta contra a burguesia e a propriedade privada dos meios de produção, e pela construção de uma nova sociedade apoiada na propriedade social.

Trabalhadores que não tenham compreensão de tais interesses e objetivos maiores podem naturalmente ser atraídos por propostas intermediárias que lhes ofereçam vantagens imediatas. Propostas que, exatamente por não tomarem em conta as questões essenciais da luta de classes, não se libertam das concepções burguesas e dos velhos valores capitalistas. Propostas que, mesmo no socialismo, podem se cristalizar em partidos operários e populares com orientações vacilantes e reformistas – no fundo, de conteúdo pequeno burguês – e que podem, em determinadas condições, ser utilizadas como instrumentos da contra-revolução.

Entretanto, se a perspectiva do regime de partido único, como norma geral, representa uma distorção, temos que verificar se o pluralismo e a alternância no poder representam soluções a serem incorporadas ao socialismo como conquistas avançadas e universais.
O pluralismo partidário nas "democracias modernas" consagra o direito de todas as correntes de opinião organizarem-se politicamente em partidos e disputarem eleições para postos legislativos e executivos.

Por mais democrático que seja o país, entretanto, se a propriedade, o aparelho de Estado e o sistema de exploração da força de trabalho forem ameaçados, existem recursos constitucionais, como o estado de sítio, que justificam inclusive o cerceamento das liberdades democráticas, para garantir a "ordem". As instituições funcionam democrática e livremente enquanto cumprem sua função de administrar o sistema capitalista. O limite da democracia burguesa e das suas liberdades políticas é o interesse geral do capital.

Todos os partidos gozam de direitos legais – inclusive para denunciar as mazelas do capitalismo – enquanto não tenham condições reais de colocar em prática alterações de caráter revolucionário, enquanto não tomam medidas concretas que ameacem o Estado e suas forças repressivas, em busca de outro regime, dirigido pelos trabalhadores e o povo. Ou seja, a legalidade dos partidos revolucionários é assegurada desde que eles não possam realizar na íntegra o seu programa revolucionário.

Não se trata de diminuir a importância das liberdades democráticas conquistadas pelo povo no regime capitalista. Aqui, o importante é identificar seu caráter de classe e suas limitações – que os adoradores da "democracia moderna" não percebem, ou fingem não perceber.

Da mesma forma, não se pode passar por cima do fato de o exercício prático das liberdades depender de meios materiais. E é mais do que evidente que os partidos populares
levam enorme desvantagem em relação aos recursos financeiros, meios de comunicação, sedes, locais de reunião. apoio dos governos. Essa desigualdade em relação ao poder econômico é visível mesmo entre os partidos burgueses.

Por todo lado dois ou três grandes partidos monopolizam a opinião pública e os postos centrais dos governos. Nos EUA existe uma centena de partidos, mas apenas os democratas e republicanos têm como disputar o poder em praticamente todos os níveis – em plano nacional, os outros nem são mencionados. Japão, França, Alemanha, Inglaterra repetem a mesma realidade.

Só por estas razões, já fica em dúvida a possibilidade de tal alternância no poder. Além disto, já se viu que as regras democráticas "modernas" só valem enquanto mantêm o sistema capitalista em funcionamento. Mesmo teoricamente, é muito difícil contestar que o mecanismo de Estado é construído exatamente para impedir a substituição da classe dominante. A mudança da classe no poder representa o marco essencial da alteração de um sistema social para outro. No capitalismo domina a burguesia. E só existe socialismo sob direção do proletariado.

“Mesmo setores da burguesia dificilmente são capazes de afastar os grandes”

O máximo que alguns "inovadores" mais esforçados conseguem é uma afirmação de desejos. O deputado Roberto Freire, presidente do PCB, em artigo no Jornal do Commércio, de Pernambuco, em 9 de junho, declara: "não podemos ficar presos à tradicional teoria do Estado como mero instrumento de dominação de uma classe sobre outra (…). Esse Estado tem que ser apreendido por nós como um instrumento de disputa por hegemonia, mas essa disputa deve se dar na radical idade democrática, respeitando as questões básicas da democracia, do pluralismo da sociedade, da alternância do poder. Tem que ser, dever se dar (…) No concreto, não é”".

A análise concreta revela sérios obstáculos para modificações na composição do poder central, mesmo entre setores da burguesia. Nos países altamente industrializados, domina a burguesia financeira sem nenhuma ameaça. Onde o desenvolvimento exige, por exemplo, a substituição da burguesia agrária ou comercial pela burguesia industrial, as coisas em geral são resolvidas pelo recurso à força. Os acontecimentos em Portugal, em 1974, no Brasil em 1930, nos países da América Latina repetidamente, são conhecidos por todos.

A alternância "democrática" fica, na realidade, confinada àqueles partidos que representam divergências táticas no seio da camada dominante da burguesia. Na Inglaterra, trabalhistas e conservadores podem disputar o comando; no Japão liberais e socialistas; na França, gaulistas e socialistas; na Itália, democratas cristãos e socialistas; na Alemanha, democratas cristãos e social-democratas; nos EUA, democratas e republicanos – todos representantes incontestáveis da burguesia monopolista.

Episódios como Watergate e o assassinato dos Kennedy, nos EUA, o escândalo Nakasone, com a intromissão aberta dos grandes monopólios nas decisões governamentais no Japão, e outros casos deste tipo na Alemanha, França, Itália, demonstram que até entre os dominantes o jogo é mais bruto do que a simples conquista de votos. Além das "forças ocultas" extra-legais, é bom lembrar que o aparato do Estado envolve uma vasta rede burocrática que não pode ser mexida com facilidade. Os interesses mais gerais da burguesia são muito bem protegidos contra as oscilações e humores permitidos pela democracia.

A Nicarágua, que o deputado petista José Genoino candidamente apresenta como exemplo de alternância, é exatamente uma confirmação do oposto do que ele denuncia. "Eu acho que foi negativa a derrota do sandinistas para a Violeta Chamorro. Mas a eleição para presidente ter se realizado é um fato positivo" diz ele. Ora, depois de promover um rigoroso bloqueio econômico e financiar uma longa campanha de sabotagem e agressão armada, através dos "contra", os EUA conseguiram completar a derrubada dos sandinistas do governo com uma chantagem disfarçada em eleição, impondo ainda três mil agentes americanos para "fiscalizar" o processo. Foi uma operação anti-democrática do imperialismo obrigando pela força, o povo a engolir uma solução contra-reolucionária e um governo da oligarquia.

Um caso ímpar, que poderia dar algum alento às esperanças de alternância, foi a eleição presidencial de 1989, no Brasil. Criou-se uma situação muito especial em que a unidade do povo ameaçou vencer as elites numa disputa nacional. Logo ficou claro, todavia, como funcionam os mecanismos para assegurar a vitória dos poderosos; corrupção, utilização desavergonhada dos meios de comunicação, manobra com um seqüestro mal esclarecido para intimidar o eleitorado, promessas mirabolantes, mentiras, interferência flagrante do poder econômico. Tudo foi mobilizado para impedir a votação na Frente Brasil Popular.

Ressalte-se que esta foi uma experiência muito particular. Nas mais "modernas" democracias não se permite um "acidente" popular como este. E cabe também perguntar: caso as forças de esquerda tivessem vencido, qual seria a possibilidade real de colocar em prática seu programa? No Chile de Allende, em 73, a prática não foi propriamente um exemplo de tranqüilidade democrática.
No fundo, o que se verifica é que o pluralismo e alternância, apregoados pelo pensamento liberal, permitem no máximo uma plasticidade ao sistema de dominação burguês. Servem para acomodar as diversas facções das classes dominantes e, até certo ponto, anestesiar o descontentamento das classes oprimidas. Afinal, por este processo, os trabalhadores podem até conquistar postos eletivos em diversos níveis – só não podem mudar o caráter do Estado e das instituições capitalistas. Ou seja, só não podem realizar a prometida alternância no poder.

A Articulação, principal tendência no interior do PT, quando., na sua tese para o primeiro Congresso desse partido, defende o socialismo "como estágio de radicalização do próprio conceito de democracia", e que os mecanismos democráticos conquistados no interior da própria sociedade capitalista "não serão superados e sim ampliados" revela nitidamente o desconhecimento do caráter de classe do Estado e o fundo idealista que informam os defensores da tal alternância.

O Estado não surgiu por artes diabólicas de algum político mau caráter. Foi uma imposição da divisão da sociedade em classes com interesses irreconciliáveis. A burguesia construiu o Estado capitalista de forma adequada a preservar e desenvolver o seu sistema de dominação e exploração. Por mais democrático que seja, este instrumento serve para fazer funcionar o capitalismo.

Em contrapartida, na luta pela passagem para uma sociedade sem classes, o proletariado necessita, de igual modo, conquistar o poder. Nas experiências até agora, este Estado de transição deformou-se e permitiu que o capitalismo voltasse a dominar. Tirando lições desta realidade, para cumprir seu papel de vanguarda, a classe operária deve promover modificações no processo de edificação da ditadura do proletariado. Não se pode, porém, transformar ou aperfeiçoar o socialismo entregando este poder à burguesia.

E ilusão pretender ignorar a vinculação entre classes e sistemas sociais. Se um dia o Estado pudesse ser neutro e permitir a rotatividade das classes no poder, é porque as diferenças de classes teriam sido suprimidas e, portanto, as próprias classes teriam deixado de existir, tomando o próprio Estado sem razão de ser.

A passagem do capitalismo ao comunismo deve, portanto, ser realizada necessariamente por uma democracia diferente, com outro caráter daquela construída pela burguesia. Deve ser uma democracia de conteúdo proletário e não uma radicalização do sistema burguês.

Se é justo criticar a fórmula de partido único como linha geral, não há porque imaginar que o princípio inverso seja o modelo universal. O regime democrático proletário não pode se resumir a uma definição por um novo modelo, pelo pluripartidarismo. O essencial é encontrar mecanismos para que os trabalhadores tomem efetivamente em suas mãos o poder, as decisões e a administração da sociedade, e para que as contradições quanto ao processo de construção do socialismo se expressem livremente. E estabelecer relações que facilitem, cada vez mais, a interferência organizada dos trabalhadores no aparelho estatal. E mais, a passagem progressiva das tarefas do Estado para as organizações de massas.

Não há por que fixar proibições prévias à existência de vários partidos. Assim como não existe nenhuma razão para dourar a pílula. Se as condições reclamarem, e quando existir, o pluralismo socialista tem como limites essenciais os interesses gerais e fundamentais do proletariado e dos trabalhadores. É a liberdade socialista. Não pode ser instrumento de coação dos trabalhadores. É uma alavanca para facilitar e promover a aliança entre operários e camponeses, sobretudo, para mobilizar as grandes massas na construção do novo sistema social e para impedir todas as ofensivas burguesas visando a restaurar a exploração capitalista.

A existência de vários partidos pressupõe conflitos de idéias e interesses de classes. O partido revolucionário da classe operária cumprirá sua função dirigente com propostas e medidas práticas que mobilizem as massas populares na marcha rumo ao comunismo. Os partidos que só compreendem os interesses menores e particulares dos trabalhadores, assim como os que representam objetivos de camadas intermediárias, como o campesinato e a pequena-burguesia, oscilam entre o caminho revolucionário e a defesa das heranças capitalistas. Podem, em determinadas condições, oferecer resistência às transformações sociais.

Saber travar a luta ideológica com estas forças visam a elevar a consciência dos trabalhadores sob sua influência e, ao mesmo tempo, estabelecer com elas alianças política para combater o caminho burguês são questões essenciais durante todo o período de transição que o socialismo representa.

Os comunistas devem saber incorporar tudo que serve ao progresso

O partido comunista não pode desconhecer, entretanto, que não basta ser marxista para ser vanguarda ou possuir soluções acertadas para tudo. A ciência se forja incorporando tudo de progressista que a humanidade produz. Organizações não comunistas podem adotar posições avançadas a favor do socialismo e criar idéias que servem ao proletariado na sua luta.

Na medida em que as transformações sociais e a luta ideológica avançam, e que as massas trabalhadoras assimilam seus objetivos maiores, reduz-se o terreno das organizações operárias, populares ou pequeno-burguesas. presas a conceitos e interesses de curto alcance. As idéias e propostas de vanguarda do proletariado e de seu partido comunista são incorporadas por contingentes cada vez mais amplos da sociedade.

Convém ainda recordar a atitude dos bolcheviques em relação a outros partidos na revolução de 1917. Como diz Rosa Luxemburgo (3), "o partido de Lênin foi, assim, o único na Rússia que compreendeu os verdadeiros interesses da revolução neste período, foi o seu elemento-motor e, nesse sentido, o único partido a praticar uma política verdadeiramente socialista". Os demais partidos, acrescenta, "após um longo período de oscilações, tendo-se recusado com unhas e dentes a tomar o poder e assumir suas responsabilidades, sem glória foram varridos da cena".

Apesar desta evidente posição de vanguarda, quando tais partidos vacilantes retiram-se do Congresso dos Sovietes, Lênin declara, em 29 de outubro de 1917, numa reunião com representantes do regimento de Petrogrado: "Não é por nossa culpa que os socialistas revolucionários e mencheviques partem. Nós lhes propusemos partilhar o poder, mas eles preferem esperar que a luta com Kerenski termine". Mesmo assim, em 12 de dezembro foi formado um governo de coalizão com 11 bolcheviques e 7 socialistas revolucionários de esquerda, que durou até fevereiro de 1918.

Vanguarda não é posto nem motivo de vaidade ou desprezo de outras forças

Também em relação aos partidos burgueses e sua imprensa, a atitude do poder soviético baseou-se na situação concreta e não com definições absolutas. Elementos do partido Cadete, ainda em 1921, atuavam abertamente, aproveitando-se de uma campanha internacional de solidariedade a regiões pobres. Foram alvo de repressão quando tentaram organizar um governo burguês paralelo. O jornal burguês Svoboda Russii só foi fechado em 1818 quando, em plena guerra civil, tornou-se porta-voz da luta armada contra o socialismo. A revista liberal Ekonomist circulou até 1922.

Tais atitudes prendiam-se ao esforço concreto de somar forças e incorporar as massas à revolução. Durante anos os bolcheviques traçaram uma política de negociar e neutralizar as vacilações desses partidos e dos anarquistas, ao mesmo tempo, recorriam inclusive ao uso da força para impedir que várias tentativas de insurreição contra-revolucionária destes grupos prosperassem.

Se os socialistas revolucionários e mencheviques optaram pelo caminho da atividade anti-socialista, as massas operárias e camponesas avançaram resolutamente para o trajeto que os revolucionários bolcheviques lhes indicaram.

Quando foram suprimidos os direitos políticos dos exploradores, Lênin, em 1919, explicou: "Em futuro próximo, o fim da invasão estrangeira e a expropriação dos exploradores podem, em certas condições, criar um estado de coisas que o poder do Estado proletário pode escolher outros meios para esmagar a resistência dos exploradores e introduzir o sufrágio universal sem qualquer restrição" (4). Parece que não foi este o pensamento dominante a partir de 1936, embora esta frase tenha sido citada no informe de Stalin.

O modo de pensar unilateral, tendendo a absolutizar o Partido como vanguarda, influenciou, de maneiras variadas, o movimento comunista em plano mundial. Espalhou-se, uma certa auto-satisfação com a adesão ao marxismo-leninismo e com o "posto" de vanguarda que isto presumidamente deveria garantir. Durante muito tempo uma característica dos pronunciamentos dos comunistas eram afirmações enfáticas acerca do caráter histórico e científico de qualquer resolução adotada. E, em muitas ocasiões, um certo ar de menosprezo por quem discordasse delas. Não é, portanto, inteiramente sem fundamento que a burguesia fez, e ainda faz, campanha contra os comunistas tachando-os de donos da verdade.

Aqui no Brasil, esta prática levou a que o Partido Comunista fosse apontado em certa época, jocosamente, como "O glorioso" – adjetivo repetidamente usado nos documentos comunistas. Embora o Partido tivesse glórias, e muitas, esta afirmação sobre si mesmo a cada momento, além de desnecessária, revelava uma vaidade antipática às outras correntes.

Tudo isto dever servir como aprendizado. Transformar em princípio questões conjunturais só leva ao afastamento do povo e à paralisia do próprio Partido. A classe operária precisa, para dirigir o processo revolucionário, construir o seu partido revolucionário de vanguarda. As relações deste partido com outras correntes de pensamento, durante a luta pelo poder e no desenvolvimento do socialismo, dependem das condições concretas e não de opiniões apriorísticas. A existência de contradições é o terreno onde a vida e as transformações sociais se operam. Neste mar revolto é que se testam e se provam as teorias científicas e os partidos que as defendem e aplicam.

Rogério Lustosa é editor da revista Princípios.

NOTAS

(1) LÊNIN, V. I., A Economia e a Política no Período da Ditadura do Proletariado.
(2) LÊNIN, V. I., Teses do informe sobre a tática do PCR ao III Congresso da Internacional Comunista.
(3) LUXEMBURGO, Rosa, A Revolução Russa.
(4) LÊNIN, V. I., Projeto de programa do PCR.

BIBLIOGRAFIA
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
LÊNIN, V. I., Os Sindicatos, a situação atual e os erros de Trotsky; A economia e a política no período da ditadura do proletariado; As eleições para a assembléia constituinte; X Conferência do PCR; Sobre o papel e as tarefas dos sindicatos nas condições da Nova Política Econômica; Relatório sobre o programa do Partido – 8º Congresso do PCR; Uma grande iniciativa; Projeto de programa do PCR.
STALIN, J. Informe ao 8º Congresso Extraordinário dos Sovietes.
LUXEMBURGO, Rosa, A revolução russa.
BETTELHEIM, Charles, A luta de classes na URSS.
SAES, Décio, Democracia.
Jornal do Congresso (nº 2) do PT.
Teses Constituição da URSS, 1936.
Constituição da RPS da Albânia – 1976.

EDIÇÃO 22, AGO/SET/OUT, 1991, PÁGINAS 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37