A sociedade brasileira acompanha, estarrecida, o crescimento da onda de violência no campo, praticada contra dirigentes sindicais e outros lutadores pela reforma agrária e pelos direitos dos trabalhadores. O fato de maior repercussão, no período recente, foi o covarde assassinato do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, Pará e membro do PCdoB, Expedito Ribeiro de Souza. Esse acontecimento trouxe a questão da violência no campo para as primeiras páginas dos jornais e desencadeou a formação, em vários estados do país, de Comitês de Solidariedade aos Trabalhadores Rurais de Rio Maria e dos Fóruns Contra a Violência no Campo. Em Brasília, inúmeras entidades se uniram para a criação do Fórum Nacional de Luta Contra a Violência no Campo, entre as quais Ordem dos Advogados do Brasil, Procuradoria Geral da República, CNBB, CUT, Contag e Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo.

Tal fato é um indicador de que importantes setores da sociedade já não estão dispostos a ver passivamente a morte sistemática de dirigentes sindicais rurais, religiosos e militantes de partidos de esquerda.

As repercussões do assassinato de Chico Mendes e do julgamento do mandante do crime deu um impulso extremamente importante à luta contra a violência no campo. O julgamento e a condenação do assassino, intermediário e mandante do crime praticado contra a vida de Expedito deve se transformar em uma nova ofensiva na luta contra a
violência do latifúndio.

Rio Maria se transformou hoje na cidade onde a violência dos latifundiários se manifesta da forma mais agressiva e despudorada. Lá a violência contra os dirigentes sindicais rurais ganhou vulto com o assassinato, em 1985, de João Canuto, então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade.

Quando se realizava, em Marabá, o II Encontro sobre a Violência e Direitos Humanos da OAB, o presidente do Conselho Federal da Ordem, na época, Hermarm Assis Baeta, comunicou à assistência do conclave o assassinato daquele dirigente sindical afirmando que a morte de João Canuto era mais uma triste prova do índice de criminalidade violento que imperava na região e que exigia das autoridades constituídas providências eficazes e imediatas.

Tais providências não foram tomadas e os dirigentes sindicais continuaram sendo assassinados em Rio Maria. Em 3 de abril de 1990 foram assassinados, de forma bárbara, Braz Antônio de Oliveira e Ronan Rafael Ventura. Evidenciando a impunidade e a audácia dos latifundiários locais, poucos dias depois, em 22 de abril do mesmo ano, foram assassinados José e Paulo Canuto, tendo Orlando Canuto conseguido fugir baleado.

Diante de tantas atrocidades cometidas o presidente do sindicato e o padre Ricardo Rezende, acompanhados de entidades defensoras dos Direitos Humanos, fizeram denúncias desta situação ao procurador geral da República e ao ministro da Justiça. No 1º de maio do ano passado, Expedito falou no comício de São Paulo, relatando a gravidade da situação do Sul do Pará, destacando inclusive o risco de vida que ele corria.

Expedito denunciou em praça pública o risco que corria sua própria vida

O deputado Haroldo Lima esteve inúmeras vezes com o então ministro da Justiça, Bernardo Cabral, denunciando as arbitrariedades cometidas em Rio Maria e solicitando garantias de vida para os dirigentes sindicais.

Não sendo tomadas providências eficazes, no dia 2 de fevereiro deste ano foi assassinado Expedito. Poucos dias depois, numa reafirmação da ousadia dos latifundiários da região, foram vítimas de atentado à bala Carlos Cabral, que assumira a presidência do sindicato e Roberto Neto da Silva, presidente do PCdoB de Rio Maria.

Dada a repercussão nacional que ganhou o assassinato de Expedito, tanto o assassino José Serafim Sales "Barreirito", como o intermediário Francisco de Assis Ferreira "Grilo" e o mandante Jerônimo Alves de Amorim, foram identificados e presos. Hoje, aguardam julgamento. Porém, têm havido fortes pressões, inclusive de governadores, bem como tentativas de suborno para que Jerônimo seja libertado.

Durante as audiências realizadas perante o juiz de Direito de Rio Maria, os vínculos políticos do mandante do assassinato de Expedito foram sendo trazidos à tona. Várias testemunhas de Jerônimo se identificaram como sendo da UDR. Uma destas testemunhas afirmou que, durante a Constituinte, 95% dos fazendeiros do Sul do Pará participavam daquela entidade, inclusive ele e Jerônimo.

Esta violência se estende por todo o Sul do Pará. Entre maio de 1980 e fevereiro de 1991 foram assassinados 174 trabalhadores e dirigentes sindicais rurais nesta região. A truculência dos latifundiários desta área foi verbalizada por um dos irmãos Carioca, frequentador assíduo da fazenda do mandante do crime de Expedito, que afirmou ao Globo Repórter no programa que foi ao ar no dia 12 de abril: "burro só desempaca na espora e posseiro só tem um remédio para ele: bala".

O país já tomou conhecimento das macabras listas dos "marcados para morrer" elaboradas em reuniões de fazendeiros e políticos indicando a existência do crime organizado na região.
Em depoimento prestado no processo que investiga o assassinato de João Canuto, o crime organizado foi denunciado pelo trabalhador João Martins, quando falou da reunião que elaborou a lista para o assassinato, de três lutadores em defesa dos trabalhadores: João Canuto (assassinado), Paulo Fontelles (assassinado) e Ademir Andrade. Martins tomou conhecimento de tal reunião por intermédio de seu cunhado, Marcondes Mendonça de Lima, que participou da mesma juntamente com Orlando Mendonça, então prefeito de Conceição do Araguaia; Adilson Laranjeiras, então prefeito de Rio Maria; Elviro Arantes, candidato a prefeito de Xinguara pelo PDS em 1982 e presidente da UDR da região; o fazendeiro Luiz Amelas e Jordão Mendonça. Outra lista de "marcados para morrer" foi denunciada pelo próprio Paulo Fontelles, quando ainda deputado. Na época, da tribuna da Assembléia Legislativa do Pará, denunciou a realização de uma reunião em Paragominas para a elaboração de uma lista com oito nomes, entre os quais estava o dele e da atual deputada federal do PCdoB do Pará, Socorro Gomes.

No Pará, a violência chegou a tal ponto que o procurador geral da República fez uma representação ao Supremo Tribunal Federal solicitando a intervenção federal naquele estado. Até hoje o pedido de intervenção federal mofa nas gavetas dos ministros do Supremo.

No entanto, a violência no campo não se restringe ao Pará, mas se espraia por todo o país. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), houve um aumento significativo de assassinatos no campo (Gráfico

1), passando de 56 em 1989, para 75 em 1990 com um crescimento de 34%. Destes, 30 formam assassinados na região Norte, 26 no Nordeste, 9 no Sudeste, 8 no Centro-Oeste e 2 no Sul. Na região Norte, houve um aumento de mais de 50% do número de assassinatos de lideranças e trabalhadores rurais, aumentando de 14 em 1989 para 30 em 1990.
A região Nordeste, que aparece como a segunda área com maior número de assassinatos no campo (26), surge como a região onde foram maiores os números dos conflitos por questões de terra (Gráfico

2). E os conflitos ocorreram principalmente no Sul da Bahia e Maranhão. Nesses dois estados ocorreram quase todos os assassinatos do Nordeste em 1990.
A violência varia por região, mas está sempre rondando o homem do campo

No Centro-Oeste a violência também está presente. Inúmeros casos de violência continuam ocorrendo. Em Goiás continuam impunes os mandantes dos crimes de Nativo da Natividade, Sebastião da Paz e outros. No Mato Grosso a violência se equipara à de 1984. O trabalho escravo é encontrado na região e a polícia realiza execuções sumárias. A região Sudeste, como indicam os números, não fica fora deste quadro de violências.

Na região Sul o número de assassinatos é bem menor. Mas a violência se manifesta sob outras formas. Há um maior endurecimento por parte da polícia e pistoleiros com os sem-terra. Ali o movimento dos sem-terra tem crescido em decorrência do processo de concentração fundiária na região e do fracionamento das pequenas propriedades com o crescimento das famílias. Os jovens, descendentes de pequenos produtores, aspiram por um pedaço de terra e representam uma importante base do movimento dos sem-terra.

Além dos assassinatos, prisões e sequestros, os trabalhadores rurais são vítimas de inúmeros outros tipos de violências tais como: saque e destruição das casas, destruição de benfeitorias através da queima ou da invasão das roças pelo gado, roubos de animais, fechamento de caminhos, abusos sexuais contra mulheres de trabalhadores, extermínio de animais domésticos, cobranças ilegais de foro e renda pelo uso da terra, além de espancamentos. Tudo isto é feito com um só objetivo: expulsar o trabalhador da terra onde vive, em vários casos, há muito tempo.

Outra forma de violência no campo é o trabalho escravo encontrado sobretudo na região Norte do país. Vítima deste tipo de violência o trabalhador José Pereira dos Santos denunciou que na fazenda do Sr. Silva, em Curionópolis, PA, os pistoleiros "prendem os trabalhadores num barracão acorrentando-os pelos pés" e que "durante o dia eram obrigados a trabalhar acorrentados pela cintura". Os trabalhadores são levados para estas fazendas em decorrência de promessas mirabolantes. Lá chegando são mantidos no cativeiro, sob a vigilância de pistoleiros armados. A fuga representa um grande risco de vida.

Para a prática de tais atos de violência os latifundiários, há muito tempo, utilizam pistoleiros e formam grupos armados. Os novos latifundiários-empresários não abandonaram tais métodos, particularmente nas regiões Norte e Centro-Oeste. Mais recentemente alguns adotaram o expediente de contratar "empresas de segurança" geralmente contando com a presença de militares reformados. Além disto os latifundiários dispõem de forte armamento, inclusive daqueles privativos das Forças Armadas.
A ação armada do latifúndio contra os trabalhadores rurais vem de muito tempo. No entanto, eles agiam sem muita organicidade.

O lançamento do Plano Nacional da Reforma Agrária foi o sinal que desencadeou sua ação organizada, com a criação da UDR. Com isto a violência cresceu no campo. Porém, com o passar do tempo, a violência generalizada foi cedendo lugar para a violência seletiva, de lideranças.
A impunidade é uma das causas realimentadoras da violência no campo. Os mandantes dos crimes agem acintosamente e de forma agressiva por saberem que não serão objeto de qualquer tipo de sanção por parte do Estado.

Em mais de 1.500 casos de morte, apenas três assassinos foram condenados

Pela Constituição Federal cabe aos estados a repressão e o combate à violência. Porém, na prática, em nível de município, a polícia e o judiciário são instituições diretamente ligadas e dependentes das prefeituras. E os prefeitos nas regiões agrárias são, normalmente, representantes dos latifundiários. O resultado disto é que, com raras exceções, a justiça e a polícia fazem "vistas grossas" para os crimes cometidos contra os trabalhadores rurais. Exemplo gritante desta situação é o que acontece em Rio Maria. Sendo uma das localidades onde ocorreram o maior número de assassinatos de trabalhadores e lideranças sindicais, até hoje não se realizou ali nenhum Júri Popular.

No Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio, realizado em 1988, chegou-se à conclusão de que dos mais de 1.500 trabalhadores rurais, índios, religiosos, advogados e outros profissionais assassinados deste 1964, somente 6 casos tiveram julgamento na Justiça, sendo que em 3 houve condenação dos executores dos crimes e em outros 3 houve absolvição. Em nenhum dos casos os mandantes foram levados às barras dos Tribunais e, na maioria absoluta, sequer indiciados.

Foi necessário ocorrer o assassinato de Chico Mendes, com toda repercussão que teve, para se conseguir apurar alguma coisa. Mesmo assim paira a dúvida se não existiriam outros mandantes por trás daquele assassinato.

Com a morte de Expedito Ribeiro de Souza, novamente as atenções voltaram-se para a questão da violência no campo. Neste caso, travava-se uma luta para que o julgamento seja feito em Belém e não em Rio Maria para evitar pressões locais que impedirão um veredito com um mínimo de isenção.

Face a possibilidade de realização ali do primeiro Júri, foi elaborada uma lista de 131 jurados. Em sua composição percebe-se o caminho para inocentar o mandante do crime. Isso porque foram indicados para compor a lista 43 fazendeiros, esposas ou filhos de fazendeiros, 61 comerciantes (diversos são também fazendeiros), 4 dos seis médicos da cidade, com o detalhe de que estes são também fazendeiros. Numa cidade composta por 50% de trabalhadores rurais foi indicado para compor a lista somente um trabalhador rural. Foram indicados, também, um comerciário e 4 professoras de uma rede pública de 200. O caráter tendencioso da lista é tão evidente que o Promotor de Justiça da cidade entrou com uma representação contra a mesma.

Analisando a questão da violência no campo e da impunidade o advogado José Carlos Castro afirmou: "tais conflitos têm como fundamento a divisão de classes. De um lado estão os grandes proprietários rurais que representam o latifúndio; de outro, o lavrador, posseiro, o homem sem terra para cultivar, que é oprimido pela estrutura social. A classe rica controla a ação da polícia através da corrupção e o poder do judiciário, que se dobra à vontade dos poderosos".

A razão maior da impunidade é que o Estado brasileiro é burguês-latifundiário. Os latifundiários ou seus representantes ocupam postos relevantes na máquina estatal, no legislativo e no judiciário. Os instrumentos de poder, portanto, estão influenciados, por seus interesses. Por isto mesmo as autoridades, com raras exceções, procuram não enxergar, são coniventes com a ação criminosa do latifúndio. Tal conivência se expressa não somente através da impunidade dos responsáveis pelos crimes praticados contra os trabalhadores rurais, bem como pela falta de qualquer iniciativa do Estado de desarmar os latifundiários.

Mesmo nos limites de um Estado burguês latifundiário há condições de avançar em sua democratização através da ampliação da representação política dos setores populares e a consequente redução do papel dos latifundiários e da burguesia. É evidente que uma transformação profunda deste quadro só é possível através da alteração do caráter de classe do Estado, somente obtido através de um processo revolucionário.

A concentração da terra é a raiz principal dos violentos conflitos no campo

A luta tomando por base a denúncia de fatos concretos que mostrem à opinião pública os crimes do latifúndio e a omissão e conivência dos poderes públicos, é importante aspecto do processo de democratização do país. A pressão política sobre os aparelhos de Estado os obriga a atuar de forma mais objetiva. E cada prisão de assassino e, principalmente, de mandante, termina levando os latifundiários a pensarem inúmeras vezes antes de cometer as atrocidades que têm cometido.

O advogado Miguel Pressburger no Tribunal dos Crimes do Latifúndio afirmou: "é preciso fazer com que a justiça puna exemplarmente os criminosos e, principalmente os mandantes, porque essa é a única forma de reduzir esta prática que se tornou exaustivamente abusiva em todo território nacional, sobretudo no interior".

Se a impunidade tem sido um fator de estímulo à violência no campo, a causa principal dos conflitos agrários está relacionada com a estrutura latifundiária da propriedade da terra, com a brutal concentração da propriedade das terras em mão de poucos, enquanto milhões de trabalhadores não têm um pedaço de terra para trabalhar. Os métodos violentos dos latifundiários para ampliar seus domínios e a luta dos camponeses por um pedaço de terra estão na raiz dos conflitos existentes no campo.

O quadro da estrutura agrária existente no país é dramático. Evidencia o caráter antidemocrático e concentrador da propriedade e do poder do latifúndio.

Conforme indica a tabela 1, as propriedades de até 100 hectares representam 77,7% do total das propriedades, detendo 14,27% da área total, enquanto as propriedades de mais de 1.000 hectares, representando apenas 1,83% do total das propriedades, detêm o controle de 56,9% da área total. Mas a gravidade da situação não está somente nesta grande concentração da propriedade em mãos de poucos. Está, também, na existência de extensas áreas não exploradas das grandes propriedades, caracterizando um verdadeiro crime praticado contra a economia do país e contra o seu povo carente de terra para trabalhar e produzir.

Enquanto as propriedades de até 10 ha. têm uma área explorada de 4.395.763,5 ha. sua área não explorada é de 1.737.691,8 ha. Já as propriedades de 10.000 a menos de 100.000 ha. têm uma área não explorada de 26.707.874,2 ha., pouco menor do que a área explorada que é de 26.882.087,5 ha. O absurdo maior está nas propriedades de mais de 100.000 ha. onde a área não explorada (13.199.344,8 ha.) é quase três vezes maior do que a área explorada (4.688.065,5 ha.). Além disto, é sabido que mesmo as áreas ditas exploradas das grandes propriedades são constituídas por latifúndios de baixa produtividade.

A comparação entre os dados de 1978 e 1987 (tabelas 1 e 2) indicam um crescimento significativo da empresa rural que sobe de 3,7% do total das propriedades para 10,6% e de 5,6% da área total para 23,73%. Houve evidentemente, neste período, um crescimento do número de empresas agrícolas. No entanto, tal número certamente não corresponde à realidade já que muita propriedade latifundiária foi "maquiada" em empresa rural para fugir da possibilidade de vir a ser desapropriada para fins de reforma agrária.

A análise da tabela 2, comparada com a tabela 1, mostra o processo de concentração da propriedade da terra verificada neste período. Tal fato se dá de forma acentuada nos extremos. Enquanto há um redução da área das propriedades de menos de 10 ha. e de 10 a menos de 100, há um crescimento expressivo da área das propriedades de 10.000 a menos de 100.000 e nas de mais de 100.000 ha. Os dados mais recentes indicam uma queda no processo de concentração fundiária nestas duas faixas.
Entre 1978 e 1987, as propriedades de 10.000 e menos de 100.000 hectares tiveram uma queda de 17,5% para 16,64% na participação da área total, enquanto as com mais de 100.000, 7,5% para 6,02%. No entanto, neste período houve uma concentração maior nas propriedades da faixa entre 1.000 e 10.000 hectares, com um aumento de 32% para 34,33% do total da área.

O capital penetra no campo sem levar em conta a presença de antigos posseiros

O grau de concentração da propriedade da terra no país fica mais gritante quando se sabe que enquanto 1.433.208 propriedades (30,53% do total) detêm o controle de uma área equivalente a 6.524.698,9 ha. (1,06% da área total), somente 136 latifúndios controlam 36.917.889,2 ha. O caráter frontalmente antidemocrático desta estrutura agrária fica mais realçado ainda quando se identifica no quadro 1 que apenas 27 propriedades controlam 25.547.539 ha. Somente a Manasa (Madeireira Nacional S/A) tem propriedades que atingem 4.140.767 ha, com um território superior ao da Bélgica. A análise do quadro 2 indica que a penetração capitalista no campo levou a que grupos industriais, financeiros e agropecuários se tornassem proprietários de grandes extensões territoriais.

Nos grupos industriais que possuem vastas extensões de terras, destacam-se a Manasa, Antunes/Caemi, Votorantim, Klabin, Ometto, Camargo Correia, entre outros. Entre os grupos financeiros destacam-se Aplub, Bradesco, Bamerindus e Bueno Vidigal.

O quadro 2 indica, também, a existência de grandes propriedades em mãos de grupos estrangeiros. Entre eles estão Manasa, Belgo-Mineira, ENI, Calcetruzzi e Manesmann.
Além do tamanho destas propriedades, a análise do quadro 2 mostra um baixíssimo índice de aproveitamento destas áreas. Tais propriedades foram adquiridas, evidentemente, como investimento em decorrência da grande valorização das terras.

Durante a ditadura militar procurou-se colocar em prática um projeto de "colonização dirigida", através do Projeto Integrado de Colonização (PIC). O objetivo deste projeto era fazer uma migração dirigida, sobretudo do Nordeste para a Amazônia. No entanto, a migração espontânea ganhou grandes dimensões com o deslocamento de um elevado número de trabalhadores rurais para a região Norte. Em julho de 1973, o então presidente do Incra sugeria ao ministro da Agricultura inibir a migração interna e "reordenar a ocupação da Amazônia" privilegiando os grandes empreendimentos agropecuários, com a colocação à "venda de lotes de 50 mil hectares.

Aí estavam lançadas as bases para as imensas propriedades existentes hoje no país e para o agravamento dos conflitos fundiários particularmente nas regiões Norte Centro-Oeste. Os grandes empresários e fazendeiros compraram terras a preços de banana e lá encontraram posseiros que residiam na região há muito tempo. Ou mesmo posseiros chegados mais recentemente que ocupavam terras que nada estavam produzindo.

O Estado serviu de alavanca para um vigoroso processo de acumulação

É prática comum no Brasil, particularmente em regiões de expansão da fronteira agrícola, o latifundiário adquirir uma área bem menor e grilar um território mais abrangente. Com o título de propriedade de uma parte da terra ele termina por conseguir liminares na Justiça de reintegração de posses que, na verdade, não são suas.

Esta política de ocupação da fronteira agrícola por meio da grande propriedade, ignorando a existência anterior de posseiros na região conduziu ao agravamento dos conflitos no campo. Para defender suas "propriedades" os fazendeiros passaram a organizar milícias armadas, a contratar jagunços e empresas de segurança, praticando todo tipo de violência e arbitrariedade.

Com o desenvolvimento capitalista no país, a estrutura agrária organizada com base no latifúndio cada vez mais criava obstáculos à expansão das forças produtivas.

Assim havia uma pressão objetiva para liquidar ou transformar a estrutura agrária brasileira. Abriam-se dois caminhos para o desenvolvimento da agricultura brasileira: ou a "via Norte-Americana", com base na pequena propriedade, ou a "via Prussiana", com base no aburguesamento do latifúndio.

Os trabalhadores rurais ao levantarem a bandeira da reforma agrária fortalecem a primeira alternativa. Os latifundiários ao combaterem-na e exigirem uma política agrícola que beneficie os grandes proprietários de terras, jogam na segunda alternativa.
Com o golpe militar o segundo caminho se consolida. No entanto, a alteração mais profunda do sistema produtivo no campo brasileiro deu-se com a introdução da cultura da soja. Aí se desenvolve, em ritmo mais acelerado, o desenvolvimento capitalista no campo brasileiro.

Este processo tem seu marco na década de 1970, com o Estado funcionando como alavanca no processo da acumulação capitalista no campo através da concessão de subsídios, incentivos e, sobretudo, crédito para os grandes e médios proprietários de terras.

A tabela 3 mostra que em 1970, 38,6% dos financiamentos foram destinados para as propriedades de 0 a 99 ha., enquanto em 1980 o volume dos financiamentos para esta categoria de propriedade decresceu para 34,4%. Já as propriedades de mais de 100 ha. que obtinham em 1970 o montante correspondente a 61,4% dos financiamentos, em 1980 tinham evoluído esta participação para 65,6%. Tais dados revelam a pouca importância dada pela política agrícola do governo aos pequenos proprietários, produtores de alimentos para o mercado interno.

O processo de desenvolvimento capitalista no campo, ao lado de estimular a concentração da posse da terra, determinou uma grande concentração da renda. Entre 1970 e 1980, enquanto os 5% mais ricos dobravam sua participação na renda agrícola, passando de 23,7% para 44,9%, os 1% mais ricos triplicavam sua renda passando de 10,5% para 29,5%. Neste mesmo período os 50% mais pobres diminuíram sua participação na renda de 22,4% para 14,9%.

O desenvolvimento capitalista já atingiu vastas áreas do país, introduzindo novas técnicas agrícolas e mecanizando a lavoura. No entanto, o latifúndio aburguesado convive com o velho tipo de latifúndio que adota ainda métodos arcaicos de produção. Tomando o país no conjunto o latifúndio do velho tipo predomina em termos de extensão. Porém, economicamente é o novo tipo de latifúndio que tem o papel preponderante. Mas, o novo latifúndio, principalmente em áreas de fronteiras agrícolas, adota os mesmos métodos violentos do latifúndio antigo.

As alterações ocorridas no campo brasileiro, além de aguçarem os conflitos agrários, produziram um processo de diferenciação de classes no campo, criando um grande contingente de bóias-frias e sendo responsável por um êxodo rural de grandes proporções.

Entre 1960 e 1980 houve um êxodo rural de 28,5 milhões de pessoas, o equivalente à população da Argentina. Somente na década de 1970 aproximadamente 16 milhões de pessoas saíram do campo para morar na cidade, provocando o "inchaço" das cidades e agravando os problemas urbanos no país. A solução da questão agrária hoje está diretamente relacionada e é, em certo sentido, parte integrante do correto equacionamento da questão urbana tão agravada nos últimos anos.

A luta contra a violência no campo se transformou numa importante bandeira do movimento democrático. Como falar em sociedade democrática, em respeito aos direitos do cidadão se trabalhadores rurais, no limiar do terceiro milênio, são assassinados, agredidos e têm suas roças destruídas? Isto é a expressão da barbárie, inaceitável numa sociedade que queira avançar no sentido de uma verdadeira democracia.

A luta contra a violência e a luta pela reforma agrária são indissolúveis

E já que as autoridades públicas são omissas, coniventes, cabe à sociedade civil se organizar para pressioná-las, para lutar contra a vergonhosa impunidade que predomina em nosso país. A exigência do andamento dos processos, do julgamento e prisão dos assassinos e, principalmente, mandantes dos crimes é uma forma altamente eficaz para conter a mão assassina dos latifundiários. Por isso, os Fóruns Contra a Violência no Campo devem se ampliar por todo o país. Contudo, a luta não pode ficar nestes limites porque aí estaremos combatendo somente as conseqüências e não as causas determinantes desta situação. Daí toma-se necessário a retomada da luta pela reforma agrária como solução capaz de extirpar as raízes determinantes da violência no campo.

A vitória das forças de direita na Constituinte, no capítulo da reforma agrária, coloca a necessidade de ampliarmos a base desta luta nesta nova fase. Naquele momento, setores importantes dos pequenos e médios produtores foram ganhos para a luta contra a reforma agrária. E a experiência de outros países já demonstrou que, sem o apoio destes setores, não há como fazer reforma agrária. Foi com esta preocupação que os setores progressistas incorporaram à Constituição o dispositivo constitucional que torna as pequenas e médias propriedades não passíveis de reforma agrária. É necessário exigir a regulamentação deste dispositivo e propagandear não somente o fato de tais propriedades não serem objeto da reforma agrária, mas também defender uma política agrícola que atenda a seus interesses como forma de atrair os pequenos e médios proprietários para uma aliança em defesa da reforma agrária.

É necessário, também, neutralizar os grandes produtores agrícolas, deixando claro que o objeto da reforma agrária é o latifúndio, a propriedade improdutiva ou com baixa produtividade. Daí a definição do que seja propriedade produtiva passa a ser questão importante. Pois para a UDR, na Constituinte, terra produtiva era toda aquela que "tinha condições de vir a produzir".

Nesta luta devem ser incorporadas, também, as populações urbanas. A reforma agrária tem não somente uma dimensão social de incorporar milhões de trabalhadores à terra, desafogando as cidades, como tem uma dimensão econômica. Com sua realização estaremos abrindo condições para a ampliação da produção de alimentos no país, e ativando o mercado interno.

Sem liquidar com o latifúndio, não somente com sua base econômica, mas com seu poder político, tornam-se impraticáveis maiores avanços no processo de democratização do país. Portanto, a questão da reforma agrária é uma das peças-chave na construção de um país verdadeiramente democrático.

Aldo Arantes é membro da Direção Nacional do PCdoB e advogado da família de Expedito Ribeiro de Souza.

Bibliografia
CPT. Espinhoso Caminho para a Liberdade – Conflitos no Campo, Edições Loyola, 1990.
GÖRGEM, Frei Sérgio. Uma Foice Longe da Terra – Repressão aos sem-terra de Porto Alegre. Vozes, 1991.
IANNI, Octávio. A luta pela Terra. Vozes, 1988.
IBASE. Os Donos da Terra e a Luta pela Reforma Agrária. Editora Codecri, 1984; Violência no Campo. Vozes, 1985.
IAJP, Em Julgamento a Violência no Campo. Vozes, 1988.
LISBOA, Teresa Kleba. A luta dos sem-terra no Oeste Catarinense. Editora da UFSC – 1988.
MARTINE, George e GARCIA, Ronaldo Coutinho. Os Impactos Sociais da Modernização Agrícola. Caetés, 1987.
OAB – Conselho Federal. Violência no Campo, 1985.
WAGNER, Alfredo. O Estado, os Conflitos Agrários e a Violência na Amazônia (1965-1989).

EDIÇÃO 22, AGO/SET/OUT, 1991, PÁGINAS 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26