O grande espelho da perplexidade
“Estorvo, estovar, exturbare, distúrbio, perturbação, torvação, turva, torvelino, turbulência, turbilhão, trovão, trouble, trápola, atropelo, tropel, torpor, estupor, estropiar, estrupício, estrovenga, estorvo”, assim é apresentado o romance Estorvo, de Chico Buarque. Com grande espectativa, milhares de leitores pelo país afora esperavam por uma obra literária ao mesmo nível das músicas, poesias e peças teatrais etc., tão conhecidas do autor. Mas frustra-se o leitor que, apesar de encontrar um livro muitíssimo bem escrito, onde “o mestre da palavra da ” funciona mais uma vez. Porém deparamo-nos com uma ficção com os traços da realidade permeando o desespero e a angústia de um personagem-narrador perplexo diante da vida e do mundo. Em linguagem metafórica e absurda – quase um surrealismo, irrealizado – Estorvo conta a vida de um homem que se acredita um verdadeiro estorvo.
O objetivo do livro, bastante ambicioso, é retratar a angústia humana. Seu primeiro grande feito foi construir um grande espelho para que os leitores pudessem ver suas vidas refletidas. Assim, pegou a cabeça de fatos cotidianos, melancólicos e sem nexo descabelando-os. O resultado foi um apanhado de sensações independentes e um enredo bastante esmiuçado entre elas. As sensações vivem, entretanto. Talvez poucos segundos na cabeça do leitor. Tudo acontece como se nada acontecesse, são flashs de uma vida marginal dentro da alta sociedade.
A palavra é o forte do texto. O conteúdo fica por conta do leitor, assim como a definição de toda a obra. Com uma grande preocupação universalizante, Estorvo perde-se na falta de universo. Ele parte do geral para parte alguma. A narrativa delineia-se por detalhes percebidos por uma única ótica. Essa ótica, ou esse olho, funciona como uma câmera que registra os fatos sem deles participar. É a vida que diz “oi” ao seu espectador, aparentemente. Predomina o mito da neutralidade, da objetividade a qualquer preço. Parece o “Jornal Nacional” da literatura.
Nenhum personagem do livro é identificado pelo nome, como se isso não tivesse importância no mundo moderno. O personagem-narrador vê a sua imagem refletida como um espelho global que bem poderia ser a televisão, mas não é. É ele por ele mesmo. Nada a ver com Fernando Pessoa. Outro escritor que vem à mente é Graciliano Ramos que possui igual apuro de linguagem. Com a diferença que Graciliano parte da realidade bastante específica para retratar sentimentos e angústias humanas universais. Assim, os seus livros podem se rescritos em qualquer língua e ser perfeitamente entendidos. No caso de Chico Buarque, buscou-se o “internacionalismo pós-moderno” que, na verdade, é tudo e nada ao mesmo tempo. Também poderíamos mencionar Albert Camus e Franz Kafka, mas estes dois escritores do absurdo nunca foram perplexos e supõem caminhos para a humanidade, mesmo que absurdos. Com o tempo e espaço bastante definidos, o que não ocorre em Estorvo.
Chico Buarque, em seu livro, constrói e destrói. Tudo que nos é apresentado é-nos tirado fora. A solidão é o seu saldo final. Acaba revelando-se como uma grande crônica, de tantos detalhes cotidianos. Insinua, mas não faz. Não opina, retrata. De qualquer maneira, Estorvo consiste numa boa leitura, que não deve ser menosprezada, principalmente pelo peso que o autor exerce sobre os seus fãs. A editora Companhia das Letras tem, provavelmente, um best-seller em suas fileiras. Mas todo cuidado é pouco para não fazermos a mistura do Chico Buarque compositor-poeta com o romancista, sem mistificação.
Ana Maria Dietrich (estudante de jornalismo do IMS)
Marcos Aurélio Ruy
EDIÇÃO 23, NOV/DEZ/JAN, 1991-1992, PÁGINAS 80