O mundo ainda vive sob o impacto das profundas mudanças ocorridas na Europa Central e do Leste e na União Soviética ao longo dos dois últimos anos. Levará algum tempo para que consigamos assimilar toda a profundidade das alterações e a gravidade das suas consequências. Junto com sua dramaticidade, estes acontecimentos fornecem elementos empíricos cruciais para analisar e problematizar (auto)criticamente a caracterização que vinha sendo feita desses Estados por diferentes correntes e autores situados no campo do pensamento marxista. É este filão que pretendo explorar neste artigo, que tem um caráter mais especulativo do que conclusivo.

Os eventos dos dois últimos anos marcam o fim do primeiro ciclo de revoluções e experiências socialistas no mundo, inaugurado com o triunfo da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia.
Podemos identificar quatro levas básicas de revoluções e/ou experiências socialistas surgidas no bojo deste ciclo. A primeira se materializou na própria vitória da Revolução Soviética. A segunda, na formação do campo socialista na Europa Central e do Leste após o término da Segunda Guerra Mundial (no caso da Iugoslávia e da Albânia, em função do triunfo de movimentos de libertação endógenos contra a ocupação nazi-fascista, dirigidos por forças comunistas; nos demais países, em função do papel decisivo desempenhado pelo Exército Vermelho da URSS na derrota das forças nazistas). A terceira, na galvanização/atração para este campo socialista de revoluções antiimperialistas e/ou anticoloniais que triunfaram entre o final da década de 1940 e o final da década de 1950 (isto inclui os casos de China, Coréia do Norte, Vietnã e Cuba, além da consolidação da opção socialista na Mongólia). A quarta e última, na referência mais difusa no socialismo adotada por inúmeros movimentos populares e de libertação nacional que triunfaram nos anos 1960 e 1970 (podemos citar os casos da Argélia, dos países africanos de língua portuguesa como Angola e Moçambique, do Iêmen Democrático, da Nicarágua Sandinista, entre outros).

O gigantesco campo socialista formado ao longo destas levas chegou a abarcar mais de um terço da população e um quinto do território do Globo. Hoje ele entra em processo final de desagregação. O centro deste terremoto se localiza no próprio coração do antigo campo socialista, com a ascensão ao poder de forças abertamente identificadas com a restauração do capitalismo e da propriedade privada em grande escala, tanto no Leste europeu como na maioria das repúblicas que compunham a antiga União Soviética. Face a isto, a maioria dos países que mantinham uma orientação socialista de desenvolvimento na África, Ásia e Oriente Médio (e dependiam, para isso, do apoio econômico e militar da URSS) também mudou de referência e reorientou suas economias para a integração plena no mundo capitalista.

No fundamental, apenas os Estados oriundos da terceira leva citada acima procuram preservar alguma referência socialista e/ou conquistas dos seus processos revolucionários (e mesmo assim, com profundas diferenciações entre eles). Não por acaso, a estratégia das potências capitalistas, em especial dos Estados Unidos, se volta hoje para o cerco e aniquilamento destes regimes, sobretudo o de Cuba.

Ao longo deste primeiro ciclo de revoluções e experiências encabeçadas por forças socialistas, a caracterização da natureza das sociedades gestadas no seu bojo foi sempre tema de aguda e acesa controvérsia entre diferentes autores e correntes que se referenciam na teoria marxista. Não pretendo, aqui, fazer uma resenha da evolução dessa polêmica, que já tive oportunidade de abordar, anteriormente, em dois artigos diferentes (1). No último deles, que discute a queda dos regimes na Europa Central e do Leste em 1989, indico que esses acontecimentos serviram como uma espécie de teste empírico para as diversas interpretações marxistas sobre a natureza das sociedades que compunham o antigo campo socialista no Leste. Esta observação só é reforçada pelas mudanças posteriores ocorridas na União Soviética (bem como na Iugoslávia e Albânia).

"Correção" do sistema socialista iniciada por Kruschev mostrou-se inteiramente falsa
Uma interpretação que sai destes eventos completamente desautorizada é a tese revisionista  de que os países do bloco soviético não vinham trilhando (sobretudo a partir do processo de denúncia ao stalinismo deflagrado no XX Congresso do PCUS em 1956) um caminho de correção radical das distorções e violações da legalidade socialista ocorridas no passado, promovendo o reencontro do socialismo com a democracia. Era essa a interpretação dominante nos partidos do movimento comunista que se alinharam com as posições assumidas pelo PCUS de Kruschev. No entanto, foi justamente a insatisfação com as restrições generalizadas aos direitos democráticos e às liberdades nos Estados do Leste (bem como as relações de corrupção, privilégios, desmandos, impunidade, burocratismo etc. que lá imperavam) que serviu de combustível para a explosão ocorrida. Não resta dúvida, portanto, de que a interpretação acima estava muito longe de refletir os processos econômicos, sociais e políticos efetivamente em curso naqueles países. Por isso mesmo, este setor da esquerda que mais a criticamente se identificou com as práticas e pregações desses governantes foi o que entrou em mais profunda crise com a sua queda, em muitos casos renegando e enterrando toda a sua trajetória anterior (vide o processo de auto-dissolução em curso no PCB do Roberto Freire).

Outra interpretação colocada em xeque pelos acontecimentos dos últimos anos, apesar de asperamente crítica da realidade nos países do Leste, é a que apresentava essas sociedades como um novo modo de produção (nem socialista e nem capitalista) com uma nova dominação de classes. Já nos anos 1920 e 1930, essa era a análise sobre a União Soviética desenvolvida por grandes expoentes do centrismo social-democrata, como Karl Kautsky, e Rudolf Hilferding, bem como de dissidentes do próprio movimento comunista, como Victor Serge. Após a formação do campo socialista no pós-guerra, essa mesma análise foi ampliada para o conjunto dos seus integrantes pelo dissidente iugoslavo Milovan Djilas, no seu famoso livro A Nova Classe. Nos anos 1970 e 1980, diferentes pensadores marxistas de renome chegaram a conclusões semelhantes, entre os quais podemos destacar Paul Sweezy, Samir Amin e a maioria dos discípulos de Lucakcs que se reuniram na chamada "Escola de Budapeste" (entre os quais Agnes Heller, Ferenc Feher e Gyorgy Markus). Outra reflexão interessante que aponta na mesma direção é a do antigo "dissidente de esquerda" da Alemanha Oriental, Rudolf Bahro, que comparava as sociedades do Leste a um modo de produção asiático, em direção inversa, com um despotismo industrial no lugar do despotismo oriental, marcando uma longuíssima transição histórica das sociedades de classes para as sociedades sem classes. O problema com todas estas formulações é que elas pressupõem um modo de produção consolidado, com leis e características próprias, que se desenvolveria por um longo período histórico. Isto, claramente, não se confirmou. Na melhor das hipóteses, este novo modo de produção, nem socialista, nem capitalista durou pouco mais de meio século (no caso da URSS). Do ponto de vista histórico, isto não representa absolutamente nada (embora, evidentemente, represente muito para as gerações diretamente envolvidas com a experiência) e não permite a sua caracterização como um modo de produção específico na história da humanidade (isto é, capaz de reproduzir, de forma independente, as suas relações sociais específicas). A tese da nova classe dominante também não dá conta da rapidez (e relativa facilidade) com que esta classe abandonou o poder. Basta lembrar que, com exceção da Romênia, pouquíssimo sangue foi derramado no vendaval político que varreu os regimes do Leste, sem qualquer paralelo histórico com experiências anteriores de alijamento de classes dominantes do poder de Estado.

Teoria de Trotsky não enfrenta problemas revelados pela crise do campo socialista
A tese trotskista, que apresentava os países do Leste como Estados operários degenerados, também enfrenta dificuldades para dar conta das mudanças dos últimos anos. Segundo esta análise, a questão de fundo que determinou esta degeneração foi o fato de as primeiras revoluções socialistas terem triunfado em países atrasados, e abandonado, em seguida, a perspectiva da revolução mundial. Sem o auxílio econômico e político de Estados socialistas oriundos de revoluções proletárias nos países capitalistas mais desenvolvidos, seria impossível construir o socialismo nessas sociedades mais atrasadas. Por isso, a degeneração burocrática. Com base nesta referência teórica, é impossível explicar como a União Soviética e os demais países do campo socialista no Leste conseguiram, efetivamente, superar o seu atraso e acumular enormes conquistas econômicas e sociais durante um período relativamente longo sem qualquer auxílio de Estados socialistas mais desenvolvidos (2).

Trotsky afirmava, ainda em 1936, que a situação intermediária da degeneração burocrática na URSS tendia a ser revertida rapidamente em uma de duas direções: ou "a contra-revolução em marcha para o capitalismo deverá quebrar a resistência dos operários", ou "os operários, dirigindo-se para o socialismo, deverão derrubar a burocracia". O drama é que os trabalhadores nos Estados do Leste, junto com amplos setores da população, efetivamente derrubaram a burocracia, mas acabaram, igualmente, respaldando politicamente a ascensão de novos governos claramente comprometidos com a restauração capitalista! Parece até que não foram apenas os Estados que degeneraram, mas os operários também (…) O fato é que a análise trotskista não enfrenta na sua profundidade os problemas da crise do socialismo evidenciados pela débâcle do antigo campo socialista. Entre as correntes trotskistas mais dogmáticas (menos propensas a analisar a evolução concreta da realidade e presas à letra dos escritos do seu mestre), isto as levou, inclusive, a saudar as mudanças dos últimos anos no Leste como "uma das maiores derrotas do imperialismo nos últimos tempos" (sic). Independente das suas intenções, esta análise equivale a um posicionamento objetivo ao lado das forças capitalistas mais agressivas e reacionárias nos embates políticos que conduziram ao gigantesco retrocesso no antigo campo socialista.

Uma (auto)crítica sobre a tese do capitalismo monopolista de Estado na URSS
A este ponto, o leitor pode estar considerando que este artigo se restringe a polemizar com as limitações das formulações dos outros, sem submeter a um exame autocrítico as nossas próprias análises e interpretações à luz das mudanças dramáticas e profundas ocorridas nos países do Leste nos últimos anos. Não é o caso. Na verdade, me parece que os processos vividos por esses Estados suscitam alguns questionamentos fundamentais para os autores e correntes (entre os quais me incluo) que caracterizavam essas sociedades como sistemas de capitalismo de Estado ou capitalismo monopolista de Estado.

A tese do capitalismo de Estado nas sociedades do Leste não é propriamente nova. Nos anos 1930, essa interpretação da sociedade soviética já era defendida pelo ex-dirigente do partido comunista alemão, Arthur Rosenberg. No imediato pós-guerra, alguns setores trotskistas, com destaque para Tony Cliff, evoluíram para esse tipo de compreensão. Após a grande polêmica que cindiu o movimento comunista nos anos 1960, o PC Chinês e o Partido do Trabalho da Albânia passaram a usar essa formulação, em 1967-68, para caracterizar o sistema econômico-social existente nos países governados por forças revisionistas, generalizando essa análise no movimento marxista-leninista que se formava em todo o mundo na polêmica com as posições do PCUS (3). Nos anos 1970, Charles Bettelheim inicia a produção da obra As Lutas de Classes na URSS, onde pretende, inicialmente, fundamentar a tese chinesa da restauração do capitalismo na União Soviética a partir de Kruschev, mas acaba por concluir que a revolução soviética foi "capitalista" desde o início. Mais recentemente, diferentes autores e analistas alinhados com a política da perestroika de Gorbachev vêm defendendo essa política com a "efetiva passagem ao socialismo", já que o "sistema stalinista" anterior não passaria de uma forma de "capitalismo monopolista de Estado" (4).

Antes de proceder à análise dos problemas empíricos suscitados para a tese do "capitalismo de Estado" pelas mudanças mais recentes nos Estados do Leste, gostaria de discutir, rapidamente, como este conceito surge e é abordado pelo pensamento marxista clássico. As bases teóricas para a formulação do conceito de capitalismo de Estado foram desenvolvidas por Engels na década de 70, do século XIX, sobretudo nos artigos que acabaram reunidos no seu livro Anti-Dühring. Aqui, o companheiro de Marx já indica a necessidade econômica, com o avanço do processo de monopolização, de o Estado capitalista moderno intervir cada vez mais nas economias capitalistas, tornando-se, inclusive, proprietário de forças produtivas.

Nesta base, diferentes pensadores marxistas no início do século XX formularam o conceito de capitalismo de Estado para se referir a esta crescente intervenção do Estado capitalista na economia, a serviço dos monopólios. Comentando esta evolução, Lênin indica, no seu texto A Catástrofe que nos Ameaça e Como Combatê-la, que o "capitalismo monopolista" havia se transformado em "capitalismo monopolista de Estado". Em inúmeros textos desta época, o dirigente da revolução soviética, indica que considerava a experiência do capitalismo de Estado alemão o que havia de mais avançado no capitalismo moderno.

Lênin, no entanto, polemizava duramente com as opiniões de outros pensadores marxistas no início do século que indicavam a tendência de o Estado capitalista se tornar, ele próprio, um gigantesco monopólio capitalista ou instrumento de uma única associação capitalista monopolista privada, que passava a dominar toda a economia. Esta era a base da formulação dos conceitos de "capitalismo organizado" de Hilferding e "capitalismo de Estado" de Bukharin que, assim, indicavam a possibilidade do capitalismo superar a concorrência e as crises cíclicas (ou seja, a anarquia na produção"), planificando consciente e racionalmente o desenvolvimento global de economias capitalistas que continuavam baseadas na propriedade privada e divididas em classes antagônicas. Contra esta visão, Lênin indicava que o processo de monopolização não eliminava a concorrência do capitalismo, que se mantinha entre empresas de diferentes ramos, entre empresas com diferentes graus de concentração de capital nos mesmos ramos, e entre os próprios monopólios no conjunto da economia (5).

O socialismo é uma etapa de transição e não um modo de produção independente
Uma segunda formulação do conceito de capitalismo de Estado é desenvolvida por Lênin para caracterizar o desenvolvimento de estruturas econômico-sociais capitalistas sob o controle de Estados proletários, após o triunfo de revoluções em sociedades onde ainda não estiveram amadurecidas as condições para a socialização do grosso das forças produtivas. Era justamente esta orientação teórica que inspirou a adoção da Nova Política Econômica (NEP) na União Soviética dos anos 1920. Para compreender esta segunda abordagem do capitalismo de Estado por Lênin é necessário distinguir entre dois tipos diferentes de transição socialista: a transição para o socialismo e a transição no socialismo.

Ao analisar a natureza da sociedade soviética após o triunfo da Revolução de Outubro, Lênin indicava a existência de cinco estruturas econômico-sociais diferentes na URSS:
1. A economia camponesa, patriarcal, isto é, natural em grau significativo;
2. a pequena produção mercantil;
3. o capitalismo privado;
4. o capitalismo de Estado;
5. o socialismo (6).

Lênin argumentava que, em função do atraso e da destruição da economia soviética, seria necessário um período de transição em que se fortalecessem, inicialmente, os setores do capitalismo de Estado e do socialismo (para se contrapor à dispersão produtiva gerada pelo predomínio da pequena produção mercantil em associação com o capitalismo privado) até criar as condições para que o setor "socialista" abarcasse o grosso da economia. A NEP correspondia justamente a este período de transição para o socialismo na União Soviética.

Ao longo do período em que encabeçou a adoção da NEP, Lênin identificou os seguintes elementos como componentes do capitalismo de Estado na URSS:
1- As concessões, onde forças produtivas da economia soviética eram alocadas pelo Estado a capitalistas russos ou estrangeiros por prazos determinados;
2- as cooperativas que agrupavam pequenos produtores com liberdade para comercializar suas mercadorias, com o apoio do Estado;
3- as comissões pagas pelo Estado a capitalistas que atuavam como comerciantes;
4- o arrendamento (aluguel) pelo Estado de forças produtivas da economia soviética a capitalistas nacionais ou estrangeiros; e
5- a montagem de empresas mistas associando empresas capitalistas estrangeiras a empresas estatais soviéticas (7).

Em todos estes casos, tratava-se de setores capitalistas sob controle do Estado soviético, separados do setor socialista. Lênin não emprega o conceito de capitalismo de Estado para caracterizar heranças capitalistas dentro do setor socialista (embora reconheça como "concessões" adotadas nos marcos deste setor o pagamento de salários elevados para quadros técnicos e especialistas, bem como a contração, pelo Estado soviético, de empréstimos junto a bancos capitalistas estrangeiros). Isto nos remete à discussão marxista do próprio socialismo como uma etapa de transição. O fato é que os pensadores marxistas no século XX convencionaram chamar de socialismo o que Marx havia identificado (sobretudo no seu célebre texto Crítica ao Programa de Gotha) de "primeira fase" do comunismo. Nesta fase de transição, convivem elementos fundamentais da sociedade comunista (como a eliminação da propriedade privada e a socialização dos meios de produção fundamentais) com relações sociais e diferenças de classe herdadas do capitalismo que levarão um longo tempo para ser superadas (como regulação da distribuição pelo critério do "direito burguês" da remuneração segundo o trabalho, as diferenças entre trabalho manual e intelectual, entre campo e cidade, entre as tarefas de direção e de execução no processo produtivo etc.).

O socialismo, assim, não seria um modo de produção próprio e independente do comunismo, mas uma primeira fase deste onde ainda se convive com fortes heranças capitalistas, apesar de já se haver eliminado, no fundamental, a propriedade privada. A(s) sociedade(s) socialista(s) avança(m) na transição para a fase superior do comunismo na medida em que combate(m) e supera(m) estas heranças da divisão da(s) sociedade(s) em classes antagônicas. Enquanto não se completar esta transição, portanto, inclusive em escala mundial, a possibilidade do retrocesso estará sempre presente, em função das contradições da própria transição. Por isto a questão da direção política da transição é absolutamente crucial. Se esta não reconhecer a natureza contraditória que impulsiona o próprio desenvolvimento socialista, resvalará para concepções pragmáticas que acabam reforçando e consolidando as heranças capitalistas presentes na própria transição socialista.

Idealismo na relação entre o controle social da produção e o papel do Estado
Como referência nesta discussão marxista, Bettelheim argumenta ser necessário distinguir a socialização das forças produtivas no socialismo da sua mera estatização. Penso que esta distinção é correta. Mas deve-se ter o cuidado de não cair, nesta questão, no campo do idealismo e/ou do voluntarismo. A efetiva socialização da produção exige a eliminação das diferenças de classe indicadas acima. Isto é, do ponto de vista das fases indicadas por Marx, ela só se realiza efetiva e globalmente com a conclusão da transição da primeira para a segunda fase do comunismo. A "centralização progressiva de todos os meios de produção nas mãos do Estado", defendida por Marx já no Manifesto Comunista, marca o início da transição socialista, o início do processo de efetiva socialização do processo produtivo.

Assim, ao lado da superação da propriedade privada sobre os meios de produção de produto fundamentais da sociedade, outro elemento determinante para o sucesso da transição socialista é a existência de um poder político efetivamente orientado para a efetiva socialização da produção (para progressiva ampliação dos mecanismos de participação e controle democráticos da população sobre o processo produtivo) viabilizada pela superação das diferenças de classe na sociedade.

Colocar a esta como pré-condição para existência do socialismo, como faz Bettelheim, significa transferir para a primeira fase do comunismo critérios da fase comunista posterior (ou seja, do comunismo propriamente dito). Significa, portanto, negar o socialismo enquanto etapa de transição, apesar das afirmações em contrário. Por este enfoque, todas as experiências socialistas, ao herdar a base técnica da divisão social do trabalho do capitalismo, estariam condenadas a se transformar em sociedades de capitalismo de Estado. O fato é que as tentativas de abolir artificialmente esta divisão, como no caso das comunas populares maoístas (não por acaso, muito elogiadas por Bettelheim), se revelaram completamente insustentáveis.

Com base nesta discussão teórica sobram os dois conceitos de capitalismo de Estado e transição socialista, surgem alguns questionamentos cruciais sobre a correção da caracterização desses Estados (antes da débâcle dos últimos anos) como sociedades de capitalismo de Estado ou capitalismo monopolista de Estado.

Em primeiro lugar, será que esta caracterização não resvalava, na verdade, para formulações de tipo "hilferdinguista" ou "bukharinista" ao conceber a possibilidade de se viabilizar a direção planificada global de economias organizadas em bases capitalistas (possibilidade negada explicitamente por Lênin). Basta ver que, até os eventos dos últimos anos, a economia soviética, em particular, desconheceu o fenômeno das crises cíc1ícas e periódicas que caracteriza o capitalismo, tendo a sua crise econômica assumido a forma de uma tendência progressiva à estagnação. Isto pode ser visto no Gráfico 1, que compara a evolução anual do Produto Material Líquido da URSS (que equivale ao PIB menos o setor de serviços) de 1956 a 1988 com a evolução do PIB dos Estados Unidos, Japão e da ex-Alemanha Ocidental no mesmo período.

Note-se que a economia soviética não é atingida da mesma forma que as principais economias capitalistas pelas crises cíclicas de 1974-75 e 1981-82.

Pode-se afirmar que isto se deve ao caráter particular do capitalismo de Estado gestado na URSS (e demais Estados do Leste), oriundo da degeneração do socialismo que, por isso mesmo, preservou um elevado grau de estatização e planificação da economia. O caráter capitalista destas economias estatizadas, assim, se materializaria na apropriação privada (via privilégios/manutenção de elevadas diferenças salariais controle real sobre o processo de produção), por parte de uma nova burguesia burocrática instalada na direção do Estado e do seu partido dirigente. Além do problema conceitual/teórico de equiparar uma camada social (a burocracia) a uma classe (a burguesia), o fato é que estas relações identificadas com uma suposta extração de mais-valia estão presentes desde o início (e, em alguns casos, de forma mais acentuada) no setor socialista da economia soviética, e não apenas após Kruschev.

Pela discussão teórica que fizemos acima, é inevitável que seja assim! Caracterizá-los como capitalismo de Estado implica cair no mesmo erro idealista e voluntarista que identificamos acima em Bettelheim.

A segunda transição, liquidando pilares do socialismo de volta ao sistema capitalista
Outra questão fundamental que surge da experiência do Leste é a seguinte – como é possível, após décadas de uma transição gigantesca e difícil para o socialismo (isto é, para criar as condições para a generalização do setor socialista na economia), esse setor poder se transformar em capitalismo sem qualquer indício mais forte de crise ou ruptura na economia? O fato é que o conjunto das economias do Leste vive hoje justamente a crise da liquidação do setor socialista, crise da restauração da propriedade privada (em geral, capitalista). Como já argumentei em diferentes artigos, o atual colapso econômico desses países (ilustrado pelo Gráfico 2) é provocado justamente pela inexistência (dado o processo histórico anterior de abolição da propriedade privada na transição para o socialismo) de capital privado endógeno acumulado em proporções suficientes para sustentar os programas de privatização global dessas economias. Trata-se, portanto, da crise da transição do socialismo para o capitalismo. Esta já é a interpretação predominante nos artigos publicados na revista Princípios em relação à crise do Leste. Entendo, no entanto, que devemos extrair dela todas as suas consequências teóricas e políticas. Isto implica reconhecer que o processo em curso anteriormente nos Estados do Leste de retrocesso se verificava nos marcos da transição do socialismo (a segunda transição discutida acima), isto é, nos marcos de sociedades que ainda preservavam os pilares fundamentais do setor socialista no grosso das suas economias, apesar de serem dirigidas politicamente por forças (revisionistas) que não se orientavam para o enfrentamento dos desafios da própria transição socialista.

Isto nos ajuda a entender por que, apesar de romper com o revisionismo, a economia da Albânia reproduziu, no fundamental, o mesmo tipo de contradições e limitações econômicas (que se traduziram, em seguida, num processo análogo de crise política e retrocesso). E também por que as sucessivas tentativas de introduzir reformas econômicas (como as chamadas "reformas de Kossiguin" na URSS) instituindo a concorrência e autonomia das empresas em oposição ao planejamento centralizado nos países "revisionistas" fracassaram e acabaram sendo revertidas até os acontecimentos dos últimos anos (com as possíveis exceções da Hungria e Polônia).

Acredito que a crítica marxista-leninista ao revisionismo contemporâneo acertou na mosca ao identificar que a revisão de conceitos políticos fundamentais da teoria marxista (como o caráter de classe do Estado e dos partidos, a natureza agressiva e belicista do imperialismo, a necessidade da ruptura revolucionária com o capitalismo etc.) significava a materialização de uma orientação revisionista que teria consequências fatais para o socialismo nos Estados do campo socialista que o adotassem. Mas, penso que erramos ao transplantar automática e mecanicamente esta crítica para a caracterização dos sistemas econômico-sociais existentes nessas sociedades como capitalismo monopolista de Estado, sem considerar o caráter necessariamente prolongado, complexo e contraditório do processo de retrocesso vivido por essas sociedades. Afinal, afirmar (como o fazemos hoje, após o impacto das mudanças recentes no Leste) que esses Estados viviam até aqui um processo de transição em direção ao capitalismo é muito diferente de caracterizá-los como sociedades de capitalismo monopolista de Estado.

Seria correto dizer que a URSS se tornara um país de tipo social-imperialista?
Acredito que isto implica, igualmente, uma reavaliação da caracterização que fazíamos da União Soviética como "potência social-imperialista". É fato que ela desenvolveu relações de hegemonismo e grande potência no interior do bloco que comandava, expressas de maneira cristalina na chamada "Doutrina Brejnev" sobre a soberania limitada dos integrantes do campo socialista. É fato que ela seguiu um curso belicista e agressivo na sua atuação internacional, materializada de maneira trágica nas invasões da Tchecoslováquia e do Afeganistão (cuja condenação pelas forças marxistas-leninistas foi absolutamente correta). É fato, também, que ao adotar uma política de reintegração no mercado capitalista mundial, ela procurou explorar as vantagens a ela oferecidas pela divisão internacional do trabalho, cristalizada nesse mercado na era do imperialismo, como Estado industrializado, nas relações com os países em desenvolvimento.

Isto tudo, porém, é insuficiente para caracterizar a antiga URSS como uma potência imperialista, pois a definição do "imperialismo" por Lênin tem um sentido muito claro e preciso – se refere à tendência expansionista impulsionada pela formação de capital excedente nos países capitalistas centrais, que é forçado a procurar aplicações mais lucrativas no exterior em função do predomínio completo dos monopólios capitalistas nas economias centrais. O que fica claro, hoje, é que esse processo não havia ocorrido na URSS ou em qualquer dos Estados do seu bloco. A equiparação feita entre o imperialismo norte-americano e o social-imperialismo soviético, portanto, não me parece hoje correta. É importante ressaltar ter sido a exploração das diferenças na inserção internacional e nas práticas de relacionamento econômico de ambos que deu alento para a preservação de conquistas revolucionárias (e socialistas) em países como Cuba, Coréia do Norte e Vietnã, além de um desenvolvimento capitalista mais autônomo em relação às potências imperialistas em países como a Índia.

A análise desenvolvida neste artigo tem importantes implicações e consequências, tanto teóricas quanto políticas. Infelizmente, não tenho tempo, nem espaço para explorá-las aqui. Esta discussão se insere em todo o processo de renovação, reavaliação e realinhamento em curso na esquerda brasileira e mundial, à luz da crise do socialismo. Gostaria, no entanto, de indicar, ainda que "telegraficamente", alguns terrenos possíveis de discussão e reflexão.

Parece-me que a discussão feita implica uma (re)avaliação da nossa posição e política diante dos Estados oriundos da terceira leva de revoluções socialistas entre o final dos anos 1040 e o final dos anos 1950, na verdade, Estados formados a partir do triunfo de revoluções antiimperialistas e/ou anticoloniais que foram galvanizados pelo campo socialista. Igualmente, me parece, que ela implica desenvolver uma compreensão mais ampla, aberta e política da transição socialista, sem querer enquadrar a discussão dessa transição unicamente nos moldes do modelo assumido pela experiência soviética dos anos 1930 aos anos 1950. Do ponto de vista metodológico, ressalta-se a necessidade de analisar as sociedades fundamentalmente a partir das contradições materiais dos processos sociais no seu interior, e não do exame isolado das proclamações e/ou orientações dos seus governantes (mesmo porque estas muitas vezes esbarram nas contradições materiais). Em suma, mais do que nunca é necessário ter coragem para romper com o dogmatismo, sem perder a referência revolucionária do marxismo.* Cientista político, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorando do IUPERJ.

Notas
(1) Esses artigos são "O Marxismo e a Discussão sobre a Natureza da Sociedade Soviética", in Comunicação e Política, nº 7, de janeiro de 1987, e "Leste Europeu: A Direita Comemora Cedo Demais" in Ciência e Movimento, nº 1, de setembro de 1990. Sugiro, também, a leitura do texto de Massimo L. Salvatori, "A Crítica Marxista ao Stalinismo", in E. Hobsbawn (org.), História do Marxismo, vol. 7, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
(2) No caso da URSS, ela se transformou na segunda potência do mundo justamente com base no processo de abolição da propriedade privada interna e de ruptura com o mercado capitalista mundial. Descrevo, em linhas gerais, este processo no artigo "Perestroika – Nova Fase de Integração no Mercado Capitalista Mundial", in Princípios, n. 17, de junho de 1989.
(3) O PC Chinês fez publicar uma série de artigos e documentos a este respeito na época, entre os quais se destacam os textos: “Como os Revisionistas Soviéticos Levam à Restauração Completa de Capitalismo na URSS” e “Leninismo ou Social-Imperialismo?”. O PTA publicou, na mesma época, o texto de Enver Hoxha A Classe Operária dos Países Revisionistas Deve Travar a Batalha para Restabelecer a Ditadura do Proletariado, desenvolvendo raciocínio idêntico.
(4) Ver, por exemplo, as reflexões a este respeito da socióloga e assessora de Gorbachev, Tatiana Zaslavskaia, no texto "Perestroika e o Socialismo", in L. Pomeranz (org.), Perestroika: Desafios da Transformação Social na URSS, São Paulo, Edusp, 1990.
(5) Ver as reflexões de Lênin a este respeito em O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo e também as suas críticas a Bukharin no VIII Congresso do Partido Comunista da Rússia (bolchevique), em 1919, por ocasião da discussão sobre a modificação do programa do partido.
(6) Ver a sua discussão a este respeito no texto "Sobre o Imposto em Espécie", in V. I. Lênin.  Obras Escolhidas, vol. 3, op. cit.
(7) A caracterização destes elementos como componentes de capitalismo de Estado na NEP encontra-se espalhada ao longo de diversos escritos de Lênin do início dos anos 1920. Sobre a sua polêmica com Trotsky e Bukharin em relação a esta caracterização do capitalismo de Estado, ver a interessante coletânea organizada por Antônio Roberto Bertelli, A Nova Política Econômica (NEP) Capitalismo de Estado, Transição e Socialismo. São Paulo, Global, 1987.
Bibliografia
TROTSKY, L. A Revolução Traída, São Paulo, Global, 1980, p.176.

EDIÇÃO 23, NOV/DEZ/JAN, 1991-1992, PÁGINAS 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16