Postura de resistência, rumo revolucionário
A vaga contra-revolucionária que se abate – sem limites – sobre o mundo, em particular atingindo agudamente os comunistas, impõe reflexão e opção; investigação teórica e soluções práticas. Vive-se, sem buscar o drama trágico da repetição, de forma ampliada, um novo Termidor, os massacres pós-Comuna. É um instante que exige, como nunca, decisão firme e profunda, escolha clara e consequente.
Quando as ondas da revolução são favorecidas pelas marés e pelos ventos, é fácil ser revolucionário – grassa o baluartismo, ecoam os sons da fraseologia pseudo-diluviana. No entanto, nos refluxos e dificuldades manifestos pelas crises é que se colocam à prova as convicções, as idéias, a vontade transformadora, a certeza (mais do que esperança) no socialismo e a disposição de prosseguir por sobre todos os obstáculos, na tarefa de construção do novo mundo.
A nós, aos comunistas de hoje, coube a imensa responsabilidade de resistir e continuar na senda da revolução. Não é uma posição, nem um caminho fácil. Mas, “a humanidade não se coloca problemas que não possa resolver” (Marx).
Os comunistas que até agosto de 1991 militávamos no Partido Comunista Brasileiro, ao lado de indivíduos e grupos portadores de visão “de esquerda”, minoritários em todas as instâncias de direção, menos pela expressão das bases e mais, e na verdade, pelas permanentes manobras dos grupos parasitas do aparelho e, declaradamente, oportunistas de direita tínhamos um ponto em comum: o combate ao núcleo dirigente, por sua política e atividade contra-revolucionária.
Quanto às causas da degenerescência do tecido orgânico, das concepções ideológicas, da teoria e da prática política do PCB, as avaliações críticas e autocríticas eram múltiplas, heterogêneas e, em questões fundamentais, irreconciliáveis. Nesse contexto, caberia ressaltar a base doutrinária; o problema do Estado; o tipo de partido; o primado do centralismo democrático; o caráter da revolução brasileira; o internacionalismo; as classes e a luta de classes; o socialismo e seu processo de edificação; e, como síntese das divergências, a atualidade do marxismo-leninismo.
Desde o início dos anos 1960 ocorre a mutação do PCB numa agremiação reformista
Localizamos, no início dos anos sessenta (1960), com a implementação da política de conciliação de classe (ou de abdicação da luta de classes), expressa na essência da chamada “Declaração de Março”, a mutação radical do PCB numa agremiação reformista, no plano imediato, e caudatária das teses centrais do revisionismo, em nível mais abrangente.
Contudo, as organizações de base, principalmente após o golpe militar de 1964, inúmeros dirigentes (Mário Alves, Marighella, Câmara Ferreira) e segmentos partidários se insurgiram contra o oportunismo oficializado no 6º Congresso.
Além do mais, animava-nos – o que hoje vemos como elemento gerador de profundas ilusões – a indicação de que seria o PCB, não obstante todas as suas deformações, a face brasileira, e parte integrante, do Movimento Comunista Internacional. Passível, portanto, de uma viragem revolucionária “vinda de fora”. Essas eram fontes alimentadoras da nossa equivocada insistência militante. A vida, contra todas as fantasias e desinformações do sonho, da generosa utopia das bases, provou o contrário.
Neste quandro de luta interna ininterrupta e, vale dizer, sem princípios, consumimos três décadas da nossa vida revolucionária.
Esse curso conflitivo foi responsável pela destruição literal de organizações e quadros. Todavia é, também, verdadeiro afirmar que muitos conseguiram sobreviver, num árduo e adverso exercício, quase individual, dignos da condição de revolucionários e comunistas, de que é exemplo a figura singular de um Gregório Bezerra.
O 7º e o 8º Congressos do PCB, convocados e montados em seguida à dissidência de Prestes, culminaram em resoluções e eleições de organismos dirigentes, como produto de conspiratas, conchavos, fraudes, e chantagens, plenamente comprometidos com a “legalidade a qualquer preço” e o seguidismo à política de traição nacional intitulada “Nova República” – isso na frente eleitoral-parlamentar e, também, no movimento de massas, em especial no trabalho sindical.
Deste terreno, nada fecundo, é que nasce a candidatura presidencial do PCB nas eleições de 1989, fortalecendo a vocação carreirista do seu protagonista e abrindo caminho ao modo vergonhoso, parcialista e grupista, de como foram conduzidas as eleições de 1990.
Com a derrocada quase total do ciclo primeiro de edificação socialista, a partir da Grande Revolução de Outubro, no interior do PCB surgiram, de pronto, dois campos, ambos carentes de unidade teórica e prática, grosso modo rotulados de “renovadores” e “ortodoxos”.
Entre os primeiros, com hegemonia indiscutível dos adeptos da social-democracia, somavam-se ainda os “italianos” e, inclusive, “neoliberais”. Suas propostas, obviamente, por demais divulgadas, podem ser resumidas no rompimento com o socialismo científico e na adesão à “radicalidade democrática” (democracia como valor universal) e às teses econômicas que priorizam o papel do mercado. No 9º Congresso (junho-1991), tais proposições foram aprovadas por 54% (cinquenta e quatro por cento) dos delegados, entre estes, “com o direito a voz e voto”, não filiados ao partido.
No agrupamento denominado “ortodoxo”, unido, tão somente, no enfrentamento aos liquidacionistas instalados no aparelho da direção nacional (e da grande maioria das direções regionais), contando com o apoio da quase totalidade dos parlamentares eleitos pela legenda do PCB (espécimes que exprimem com perfeição todos os vícios e manhas do eleitoralismo e do cretinismo parlamentar), as posições variavam do marxismo-leninismo, passando pelos “marxistas puros” (não leninistas), até o trotskismo.
Claro está que o documento “Fomos, Somos e Seremos Comunistas”, produzido pelo frentismo oriundo do aguçamento da luta interna, bem como a chapa que obteve 36% (trinta e seis por cento) dos votos dos delegados, ao referido Congresso, caracterizava-se pelo ecletismo e, no entendimento dos marxistas-leninistas, mesmo tendo sido vitorioso, não seria capaz de colocar o PCB em sintonia com a politica de classe e com os princípios fundamentais informadores e norteadores do pensamento e da ação de um partido comunista. Como sempre, no interior do 9º Congresso surgiu uma terceira via (“contra o dogmatismo e contra a social-democracia”) de fato, o famoso pântano, a que se refere Lênin. Na primeira reunião do Comitê Central, eleito no Congresso, a chapa 3 (que obteve 10% dos sufrágios) foi “cooptada” pelos “renovadores”.
Em suma, frente à crise do socialismo, antes e durante o 9º Congresso do PCB eivado das mesmas distorções dos três que o antecederam, afastando os que enveredaram pelo centrismo, definiram-se com nitidez, dois pólos: a capitulação social-democrata; a resistência revolucionária marxista-leninista.
Caem as máscaras. Ofensiva geral para enterrar símbolos e nome: o que restava
Antes da realização do 9º Congresso, ainda na fase da preparação das teses, e nas discussões iniciais, frente às manipulações do grupo dirigente, organizações de base, direções intermediárias e alguns membros da direção nacional – tendo como ponto de partida a autocrítica concreta da negativa experiência orgânica e política, além da falência ideológica, do PCB, com base no marxismo-leninismo, no socialismo científico – articulam-se para traçar os passos posteriores ao 9º Congresso, sem dúvidas quanto ao seu resultado: favorável ao anticomunismo e desastroso para a revolução.
Os acontecimentos mundiais precipitavam-se num ritmo a não permitir acompanhamento e previsões seguras. No entanto, enquanto comunistas, devíamos por obrigação resistir.
No Brasil, com todas as pressões e debilidades, visíveis e previsíveis, tínhamos não apenas uma alternativa, mas o dever revolucionário de contribuir, com nossas possibilidades, na defesa, preservação e no fortalecimento do único partido cuja concepção de mundo, forma de organização e linha política se aproximavam, no fundamental, de idéias que nos reuniam e direcionavam dispostos à resistência revolucionária. Esse partido era, e é, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Findo o 9º Congresso, insistimos em viabilizar a opção acima exposta. Não tínhamos tempo a perder, não podíamos, por motivos meramente sentimentais psicológicos, ou por questões do passado, ficar, no presente, coonestando a traição de classe que se consumava no seio do PCB, imposta pela ala majoritária da direção e diante da perplexidade desorganizada da militância.
Esta maioria distingui-se pela antinomia entre a falácia de um discurso “humanista”e “democrático”, de um lado, em contraste, de outro, com uma ação golpista, visceralmente oposta à democracia, aliada ao anti-humanismo profissional. Não passa de um agregado de pessoas, em torno de interesses subalternos.
Com os fatos de agosto de 1991, na ex-URSS, a direita social-democrata tornou-se mais agressiva, passou às iniciativas que não conseguiu levar a cabo no 9º Congresso, marcou local e data para a eliminação e o enterro do que restava (nome e símbolos). Agora privatizados, reduzidos à condição infame de propriedade particular de Freire & Cia. Todas as máscaras caíram.
Insistir em revolucionar o PCB, por dentro, passou a ser, para ingênuos, uma miragem; para arrivistas, uma forma de, com palavras altissonantes, preservar cargos, vislumbrar o acesso ao parlamento e, ao mesmo tempo, manter com a contra-revolução a promiscuidade de relações inexplicáveis e inconfessáveis.
Por tudo isso, no começo de agosto de 1991, nós marxistas-leninistas que militávamos no PCB-RJ resolvemos ingressar no Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Ao ingressarmos no PCdoB, depois de fraternal e correto processo de discussão, de conformidade com o Programa e os Estatutos do Partido, ingresso que foi marcado por memorável Ato de Defesa do Socialismo, na ABI, com a presença de centenas de comunistas, democratas e patriotas, o fizemos com o propósito de participar dos esforços voltados para a realização de um 8º Congresso vitorioso. Por tal entendemos, em consonância com o que escrevemos na Tribuna de Debates, a revolucionarização ascendente do Partido, sem a falsa dicotomia entre o partido de quadros e partido de massas; a reafirmação do marxismo-leninismo como nossa ideologia; a defesa da natureza científica do socialismo; a luta de classes como motor da história; o caráter de classe do Estado; da necessidade do partido revolucionário da classe operária; da nova qualidade que deve assumir o princípio do internacionalismo proletário; da luta antiimperialista e da solidariedade aos povos em batalha por sua libertação nacional e social; da participação militante nas lutas nacionais, democráticas e populares do povo brasileiro; da organização e elevação do nível de consciência da classe operária para que possa, com o seu Partido, dirigir nossa Pátria ao futuro socialista.
Tomando de empréstimo as palavras do grande poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht quando, após a Segunda Guerra Mundial, foi perguntado por que escolheu mirar e trabalhar na parte (então) socialista da Alemanha, diríamos que: não pensamos assim porque estamos no Partido Comunista do Brasil; estamos no PCdoB porque pensamos assim.
* Militante do PCdoB/RJ, diretor do Senalba-Rio, advogado e sociólogo.
EDIÇÃO 24, FEV/MAR/ABR, 1992, PÁGINAS 52, 53, 54