Os países hoje industrializados fundamentaram com suas realidades, especialmente aquelas do século XIX, as teorias econômicas. Circunstâncias sócio-políticas e condições edafo-climáticas das regiões temperadas e frias, onde se localizam, condicionaram a natureza dos instrumentos de análise, sempre subordinados a interesses hegemônicos. O uso dessas teorias em países tropicais naturalmente provocou condicionamentos de toda ordem que impedem a compreensão de seus problemas e perturbam suas soluções.

Assim, discutir qualquer questão tecnológica, ecológica, energética, social ou política nestes países, sem levar principalmente em conta suas realidades, distintas, às vezes em extremo, daquelas das regiões temperadas e frias, é deformar essas realidades. Quaisquer estruturas produtivas sadias precisam, necessariamente, para ser entre si compatíveis e eficazes, fundamentar-se nas forças da natureza, em seus meios, recursos e potencialidades. Ao ignorá-los, como faz o “modelo” econômico em uso no Brasil que equaciona os fatores de produção fundamentando-os em meios físicos profundamente distintos aos dos trópicos, se está construindo um gigante desestruturado, sem intelecto e com pés-de-barro. Nada mais irracional se pode conceber. Tanto isto é real que ainda prolifera entre nós a despropositada e insensata afirmação da impossibilidade de desenvolvimento de civilização dos trópicos.

Evidentemente, este disparate não resiste a qualquer análise séria, por mais elementar e ingênua que seja. Somente estúpidos, no sentido vernáculo da palavra, podem repetir tal insensatez, tantas são as evidências que comprovam precisamente o contrário. Este bisonho preconceito tem por base a ignorância generalizada das leis e princípios que regem a natureza e a vida nos trópicos. Ou uma suprema perversidade intencional de natureza geopolítica.

A decisão de uma nação fundamentar sua vida futura em fontes energéticas renováveis, ou não, constitui-se na mais crucial decisão que qualquer geração pode tomar. Realmente, isto compromete de modo irreversível a evolução social e política de muitas gerações à frente. Ou seja, estabelece a natureza do próprio processo civilizatório. Fazem uma grande diferença, sob todos os pontos de vista, as formas diferentes de energia e a natureza renovável ou não de suas fontes, que fundamentam as complexas tarefas de construir civilizações.

Por tudo isso, é essencial compreender, em profundidade, o papel desempenhado por essas diferentes formas de energia, sempre naturais, na conformação, manutenção, no desenvolvimento e decadência das civilizações.

Em nosso país, “modelo” servil e barbárie são duas faces da mesma moeda

As civilizações industriais contemporâneas necessitam, para existir, prever o uso permanente de energia em forma extensiva e intensiva. Sua origem é sempre a disponível na natureza. Vimos que os países hoje industrializados, dependentes de combustíveis fósseis, aparentemente sem alternativas, estão impossibilitados de projetar suas perspectivas civilizatórias, salvo mudanças profundas em suas estruturas de demanda e oferta energética ou a subjugação a si de países que disponham de recursos energéticos abundantes e permanentes. Fora disto, resta a truculência hegemônica, suportada pela violência militar.

O elevadíssimo potencial energético que o Brasil continental representa – devido precisamente a sua grande extensão tropical, com cerca de 40% do trópico úmido do planeta – é praticamente ignorado pelas estruturas de poder nacional. Isto ocorre especialmente nas áreas financeira e econômica, onde se centralizam, de modo enfático e desproporcional, os controles desse poder. Também são causas desse despropósito, como vimos, além da natureza dependente do “modelo” de crescimento, as inadequações e impropriedades das teorias econômicas. Elas têm levado o país ao fracasso por desconsiderarem nossas realidades, seus fatores de produção e as necessidades e aspirações dos brasileiros. Elas são aplicadas por indivíduos que servem às forças hegemônicas externas que dominam a estrutura econômica-financeira nacional.

A proposta de abandono da postura servil ante a hegemonia externa, até aqui aceita pelos dirigentes brasileiros, é fundamentada em nossas realidades e aspirações. A privilegiada localização do Brasil nos trópicos e suas dimensões continentais lhe dão vantagens comparativas extraordinárias, de elevadas potencialidades e de possível realização concreta em curto prazo. Isto, entretanto, somente reverterá em nosso benefício se, mas somente se, resultar de postura decidida de seu povo, passando a controlar o próprio destino; ou seja, depende da superação da minoridade a que se refere Kant, que condiciona, na indignidade, a cabeça de dirigentes brasileiros.

Com tecnologia já dominada no país, as florestas e as culturas energéticas podem suprir parcelas ponderáveis das necessidades mundiais de combustíveis sólidos, líquidos e gasosos, bem como de eletricidade, por período de tempo praticamente limitado. Evidentemente, é descabida, por ser imoral e altamente lesiva aos interesses nacionais, a maneira como se exporta energia elétrica de Tucuruí, via alumínio e intermediários, a preços que têm alcançado menos de 30% dos custos de produção. Este é apenas um exemplo de práticas que, no global, causam ao povo brasileiro prejuízo de cerca de quatro bilhões de dólares por ano, somente na área elétrica.

Em definitivo, por suas potencialidades, a biomassa pode se constituir, em médio prazo, no principal pólo dinâmico do desenvolvimento do mundo tropical e, em mais longo prazo, em poderosa alavanca de alteração da atual estrutura de poder, retirando-nos da ignóbil posição de neocolônia, incompreensível para uma nação continente.

Sendo o vetor energético fundamental e abrangente promotor do desenvolvimento, e mesmo do processo civilizatório, garantidor, portanto, em termos físicos, de nossa permanência como nação, deve-se também levar em consideração a importância da imensa riqueza que os trópicos representam em abundância e diversidade de vida vegetal e animal. Esta característica, além de possibilitar suprir todas as necessidades básicas dos povos que neles habitam, oferta grandes potencialidades de matérias-primas para amplo espectro de setores industriais, inatingíveis, de modo autônomo, nas regiões temperadas e frias.

Essas perspectivas, acrescidas daquelas do subsolo não-renovável, estão, entretanto, sendo devastadas por meio de ações com sentido nítido de barbárie e malsã perversidade, fruto da lógica econômica de “modelo” servil e castrador.

A exploração racional da biomassa é a alternativa para preservar a cobertura florestal

Os solos tropicais da Hyléia Amazônica são muito lixiviados, profundos e pobres em nutrientes. Sobre eles, no entanto, se assenta uma imensa e variada massa de vegetação, incomparável com qualquer outra região ou clima. Esta ostensiva evidência, no entanto, leva à precipitada conclusão, resultante da postura de mimetismo cultural: “a Amazônia não se presta à produção vegetal porque o seu solo é pobre em nutrientes”. Assim, sob o fundamento dessa “lógica”, devasta-se por meio de queimadas a riqueza vegetal, para plantar capim. Destrói-se, deste modo, o equilíbrio ecológico construído em processo que se mantém há bilhões de anos. “Para plantar capim” ou para ser coberta por lâminas d’água de discutíveis hidrelétricas, ou para construir rodovias implantadas sobre o “oceano”. De fato, o trópico úmido amazônico mais se assemelha a um habitat “oceânico” do que aos continentes secos de outras regiões e climas. Somente na bacia do rio Amazonas, além de milhares de rios, riachos e igarapés em permanente mutação, existem mais de dez mil lagos. Esta imensa massa d’água em equilíbrio dinâmico é absolutamente essencial para a regulação dos gigantescos fluxos de energia que têm o seu centro motor planetário precisamente no trópico úmido. E a floresta tropical tem papel essencial nessa dinâmica. Ela funciona como um grande estabilizador e, simultaneamente, motor do processo.

Estamos falando de dinâmicas de fluxos energéticos que envolvem, por dia, volumes de energia equivalentes, em comparação simbólica à provocada na explosão de seis milhões de bombas nucleares, do porte da lançada sobre Hiroshima. Assim, 48,5% da chuva que cai na região são devolvidos pela floresta por evapotranspiração que, para tanto, utiliza 50% da energia solar ali incidentes. Esta umidade devolvida em gigantescas porções serve como veículo de transporte de energia, que irá suprir desequilíbrios energéticos em outras partes do planeta, especialmente nos pólos. Sobre esta dinâmica em equilíbrio global, se está intervindo sem avaliar seus efeitos, com brutalidade e ignorância, ao devastar essas florestas em dimensões que já alcançaram a média de dois milhões de hectares por ano.

Na realidade, os nutrientes essenciais para a vida da massa vegetal na floresta amazônica situam-se na própria biomassa, em vez de se localizarem no solo. Além da vegetação aérea, nessa floresta, muitas toneladas de biomassa por hectare se acumulam abaixo da superfície e acima do solo. Deste modo, a dinâmica dos nutrientes ocorre entre a vegetação e essa biomassa localizada acima do solo. Nessa estrutura vital, o solo parece ter papel secundário quanto ao fluxo dos nutrientes. Tudo indica ser essencial, neste caso, a diversidade da biota. É, portanto, irracional transferir para estas condições as práticas que se aplicam aos cultivos nos climas temperados, de características completamente diversas. Assim, mais uma vez, ignorar as excepcionais condições dos trópicos é brutalizá-los com tecnologia inadequadas que vêm provocando efeitos devastadores em precioso e complexo patrimônio.
“Gigantescas corporações transnacionais, como Volkswagen, Goodyear e Nestlé, desmataram com buldôzeres milhões de hectares na bacia do rio Amazonas, a fim de criarem gado para exportação. As consequências do desmatamento dessas gigantescas áreas são certamente devastadoras. Com estes desmatamentos as evidências mostram que podem desencadear-se reações nos fluxos energéticos suscetíveis de alterar, significativamente, o clima do mundo” (1).

“A experiência brasileira mostra que a exploração racional de biomassa florestal longe de representar um fator de destruição, constitui a única alternativa para a conservação de cobertura florestal, pois dá valor econômico à floresta. Os estados de São Paulo e Paraná, que pouco desenvolveram exploração florestal, estão hoje reduzidos a uma taxa de cobertura de menos de 5%, enquanto Minas Gerais, onde se concentra a maior produção mundial de carvão vegetal, tem 37% de seu território coberto por matas e florestas” (2).

Dirigentes do poder econômico nacional condicionam o uso entre nós de tecnologias às já operacionalizadas e desenvolvidas para circunstâncias e interesses de países hegemônicos, embora a maioria esteja em conflito com a realidade dos trópicos. Isto é, na forma como aqui são aplicadas, baseiam-se no pressuposto da necessidade do domínio nacional sobre o processo tecnológico, o que corresponde a não identificar que somente pelo seu domínio se pode procurar o desenvolvimento que, para ser verdadeiro, é sempre fundamentado na realidade. Com essa atitude beócia estão desconsiderando o uso social e político de nossos recursos naturais e fontes de energia, especialmente os renováveis. Trata-se, portanto, de sistemática irracional e predadora. Com estas práticas, fica fácil identificar a origem de muitos dos graves problemas que afligem o país.

Enquanto ocorria o desenvolvimento industrial-tecnológico autônomo nas regiões temperadas e frias no Norte, os países das regiões intertropicais viviam situação diversa e adversa. Induzidos pelos industrializados a adotarem “modelos” tecnologicamente dependentes, foi-lhes retirada a oportunidade de fundamentar seus desenvolvimentos nas próprias realidades. Assim, suas estruturas produtivas não conseguem reagir ante as dificuldades, pois as tecnologias exógenas que utilizam impõem-lhes permanentes restrições ao uso das vantagens comparativas dos fatores de produção locais, uma vez que, condicionadas a outros fatores, não se adaptam às realidades que as circundam. Este estilo pouco sadio de crescimento conduz necessariamente a efeitos negativos.

É preciso, assim, ter plena consciência das estratégias dos países industrializados visando a superar suas vulnerabilidades energéticas e de recursos naturais. Evidentemente, seus caminhos não serão baseados em substituição de fontes de energia ou matéria-prima por outras, mesmo porque elas não estão disponíveis, mas algo mais profundo. Para reduzir a dependência externa de recursos naturais, especialmente os energéticos, esses países darão prioridade à substituição de recursos escassos por aqueles que lhes são abundantes internamente, como o capital, a estrutura industrial e de serviços, altamente competitivos e, principalmente, a produção tecnológica. E, quando necessário, a força militar.

Neste contexto, os países tropicais ficarão expostos ao seguinte dilema: embora relativamente ricos em recursos naturais, ao persistirem servis com seus “modelos” dependentes, ficarão submetidos aos instrumentos de poder que lhe serão impostos pelos pacotes tecnológicos externos. Assim, tendem, cada vez mais, a aumentar sua dependência em relação a fatores de produção de que não dispõem e a inviabilizar a exploração racional e a valorização relativa dos seus próprios recursos. Estes, embora estratégicos, passam a ser, intencionalmente e de modo crescente, desvalorizados, em contraste com aqueles recursos que têm por origem os países hegemônicos. Forma-se, assim, uma rígida dinâmica de dependência, em que todos os caminhos para superar essa situação estão bloqueados. Para a manutenção desta dinâmica trabalha um exército de economistas, com os instrumentos “lógicos” de suas teorias.

Imitação de modelos de outras realidades é inviável em médio e longo prazos

“A superação do subdesenvolvimento exige que os recursos abundantes sejam canalizados para a criação de uma estrutura de produção que, gerando novos recursos de maior valor agregado, torne o processo auto-sustentado e capaz de renovar, adaptando-se à própria evolução da sociedade. Assim, o ‘modelo’ atual, que tenta reproduzir, por imitação, modelos de outras realidades, é, em princípio, basicamente inviável, em médio e longo prazos, pois exige a mobilização prévia de recursos financeiros, tecnológicos e industriais não disponíveis” (3).

Embora as estruturas produtivas devessem se fundamentar na valorização do que as teorias econômicas chamam de fatores de produção, isto não é viabilizado devido a modelos dependentes no campo tecnológico. Este é mais um dos paradoxos no discurso dos economistas. Ademais, essa concepção necessita ser abrangente de modo a incluir o conhecimento da natureza desses fatores e das dinâmicas que lhe deram origem e que garantem sua existência e evolução. Trata-se de algo muito mais complexo do que essas teorias bisonhamente consideram. Assim, as forças da natureza, resultantes dos potenciais energéticos naturais, estão sempre em condições peculiares e, em geral, exclusivas das regiões onde se configuram, em conjunto com múltiplos parâmetros físicos e químicos do solo, do subsolo, da atmosfera, dos rios, dos mares, das florestas, entre outros, e, especialmente, da cultura dos povos que nelas habitam, às vezes há milênios, fruto em grande parte desse convívio com a natureza e suas forças. Tudo isto é ignorado pela estrutura conceitual que rege as teorias que fundamentam o processo de crescimento econômico em nosso país.

Além disto os pacotes tecnológicos importados resultam sempre dos interesses dos seus agregadores externos. Deste modo, os meios, recursos e potencialidades locais, regionais ou nacionais não são, em geral, naturalmente, levados em conta. A estrutura produtiva brasileira, tendo a dependência como norma, resulta em um largo espectro de incompatibilidades com a realidade nacional, especialmente naqueles setores em que predominam as características dos trópicos. Seus componentes, tendo como origem regiões temperadas ou frias, contêm condições profundamente distintas das locais. Essas irracionalidades são as causas que fundamentam a falsa afirmação acerca da impossibilidade de uma civilização dos trópicos, a que nos referimos anteriormente. Falsa e irresponsável suposição que leva a tratar sua complexa natureza de modo absurdamente inadequado, violentando-a e destruindo seus potenciais de riqueza. Outra seria a concepção do crescimento, se o “modelo” econômico se fundamentasse em processo tecnológico auto-sustentado, o que evidentemente entraria em confronto com o status de neocolônia.

Está ficando cada vez mais evidente a incompatibilidade entre a dinâmica de ação imposta pelo sistema financeiro falsamente simbólico e a valorização da riqueza real, representada aqui pelos patrimônios naturais.

A moeda para ser legítima necessita reportar-se ao mundo real, possibilitando assim operacionalizar o processo econômico, cuja parte essencial, necessária mas não suficiente, é representada pelos recursos naturais, entre os quais, evidentemente, de modo vital, as fontes energéticas. Ao atribuir valor intrínseco à moeda sem qualquer referência a patrimônios naturais, fonte crucial de riqueza, se está construindo um sistema econômico que se assemelha a uma bolha de sabão. Assim, nas condições atuais, as regras econômicas predominantes impõem ao financeiro valores e poderes intrínsecos que extrapolam em muito os que poderiam representar. Este inconsciente sistema levará necessariamente ao colapso, bastando para isto que as estruturas de poder que suportam esse arbítrio sejam enfrentadas no propósito de resgatar os princípios que dão consistência histórica e seriedade ao processo econômico.

Lucros como frutos de destruição de fontes de energia e de vida e ativos patrimoniais

Além disto, os manipuladores desses falsos símbolos, ao dar-lhes arbitrária equivalência com o real e ao atribuir-lhes valor de renda intrínseca, como se isso fosse possível nessas condições, estabelecem impedimentos insuperáveis, tendo em vista possíveis retornos econômicos compatíveis com o uso dos patrimônios naturais. Estes, pela própria natureza, têm limitações, pois seus parâmetros estão sujeitos às leis e aos princípios da física, da química e da termodinâmica. Sua flexibilidade elástica não pode ser ultrapassada, sob pena de o patrimônio ser destruído para fins de utilidade para o homem, como estipula o 2º Princípio da Termodinâmica. Ou seja, o alto custo do dinheiro, manipulado pelos controladores dos sistemas financeiros, nacional e internacional, é incompatível com os lucros possíveis de ser extraídos da utilização desses patrimônios, quaisquer que sejam as eficiências ou produtividades das tecnologias envolvidas. Estas evidências implicam não admitir processos de produção predadores, por serem inadmissíveis em sociedades civilizadas.

Entretanto, isso é o que ocorre, cada vez com mais frequência, quase como norma, e os lucros resultantes passam a ser frutos não de respostas à utilização da natureza, mas da destruição de ativos patrimoniais físicos e fontes de energia e de vida. As dinâmicas que levam a esses feitos são, em muitos casos, curiosamente estabelecidas com o objetivo de combater a inflação.

As consequências dessas manipulações estão levando o processo econômico a provocar rupturas irreversíveis no equilíbrio ambiental, superando as faixas de elasticidade das variáveis naturais. Estas práticas, sustentadas pela lógica das teorias econômicas, destroem paradoxalmente os patrimônios sobre os quais se fundamenta a atividade econômica. E torna impossível a sobrevivência dos povos não hegemônicos que habitam as regiões do planeta onde se concentram parcelas ponderáveis desses patrimônios naturais. Além disto, se cria um gigantesco ônus para as futuras gerações, herdeiras históricas legítimas dessas riquezas que lhes são essenciais à vida e base da evolução civilizatória.

Em síntese, os modernos sistemas hegemônicos de natureza econômico-financeiro-militar configuram modo apenas distinto de escravidão que aquele que, de maneira marcante, sujou a história do homem.
Originalmente, excluídos os casos de vingança inconsequente entre povos, a escravidão quase sempre resultava da prática hedionda do uso da força muscular dos escravos no processo econômico em toda sua extensão. A ausência de tecnologias que viabilizassem a utilização das fontes naturais de energia tornava justificável, à luz das culturas de então, tal prática. Esses indivíduos, em princípio, eram bem tratados e alimentados, pois isto era do interesse do escravocrata, com o objetivo de retirar-lhes o máximo trabalho

útil. Evidentemente, esta lógica era condicionada à garantia de mantê-los como escravos.
O processo de escravidão moderna, entretanto, não se dá mais pela utilização da força muscular, embora, por longo período, se tenha justificado a intervenção estrangeira nos países dependentes pela possibilidade de uso extensivo de mão-de-obra barata, silogismo que confirma certo tipo de escravidão, ainda atual em algumas economias.

Com o desenvolvimento da automação, o interesse dos países hegemônicos se concentra no uso predador e intenso dos patrimônios naturais, cada vez mais escassos e artificialmente desvalorizados dos países do Terceiro Mundo. Assim, não é necessário preocupar-se com a alimentação dos indivíduos que habitam essas regiões depredadas; pelo contrário, eles se constituem em estorvo a esses interesses. Daí o genocídio em marcha. Ademais, eles se constituem apenas em recursos, objetos a serem utilizados e consumidos, em nome da eficiência do processo, em benefício dos sujeitos da história, do chamado Primeiro Mundo.

O imenso ônus da depredação deses patrimônios naturais, porém, terminará revertendo, em efeito bumerangue, sobre os povos hegemônicos. O sinal mais evidente dessa dinâmica de reversão é o processo inflacionário.

Os economistas ao tentar revertê-lo, sempre por medidas no campo financeiro, onde estão centradas suas habilidades, ignoram o real, e terminam agindo exclusivamente sobre os efeitos. Estes, ao serem parcialmente atingidos, reduzem momentaneamente seus estragos, para ressurgirem depois com mais pujança. Isto porque as causas persistem em sua integridade. Ou seja, o processo inflacionário é basicamente centrado na falsa simbologia do financeiro que desqualifica os patrimônios reais, os quais sustentam as atividades econômicas. Como consequência do sistema neocolonial, a essas causas é adicionado, nos países dependentes, um largo espectro de outras, todas suportadas pela lógica de teorias econômicas.

Depauperação cada vez maior pode transformar-se em explosivo estopim mundial

Na primeira fase, os países hegemônicos transferem para os periféricos, através do sistema financeiro, os efeitos de sua própria inflação. Assim, esses países vivem permanentemente com grandes dificuldades e, dentro dessas dinâmicas, os problemas inflacionários parecem insolúveis. Ignorando esses fatos, cria-se a imagem de que todos os males provêm do processo inflacionário, sem elucidar as suas causas reais e mantendo o sistema econômico sob a égide quase exclusiva do financeiro. Ao identificar o “vilão”, por meio de uma meia verdade, concentram-se todos os esforços na redução de efeitos. Nunca ocorre, porém, a solução do problema, evidentemente, pois as causas reais continuam incólumes. Nesta “caça às bruxas”, que ocorre sempre pelo fortalecimento do financeiro e, consequentemente, de seus agentes, mantém-se o status quo que leva a um processo repetitivo, de garantia de continuidade.

Essas dinâmicas, entretanto, não podem ser sustentadas para sempre. Reações podem surgir, e estão surgindo, de origens insuspeitas, em grande parte como consequência da inconstância e da vulnerabilidade do processo. Também há razões que podem levar os países periféricos, em situações de desespero, a ações vitoriosas de enfrentamento ante forças hegemônicas. Como consequência da questão energética e da própria vulnerabilidade criada por sistema financeiro inconsistente, essas forças estão em evidente declínio. Também, o processo crescente de depauperação, que já envolve elevadíssima proporção da humanidade e que vem se transformando em explícita dinâmica de genocídio, como consequência natural das ações econômico-financeiras, pode se transformar em explosivo estopim mundial.

A economista inglesa Hazel Henderson do Worldwatch Institute de Washington e do Centro Americano de Assessoria Tecnológica, assim se refere a esses temas: “A nova palavra-de-ordem de luta contra a inflação é uma mistificação econômica. Aquilo que chamamos de inflação é, na verdade, o conjunto de todas as variáveis sociais, psicológicas e ecológicas que os economistas ignoram ao fazerem seus modelos econômicos, que posteriormente retornam a nós sob a forma de descomunais pesadelos. Eu me pergunto se existe qualquer tipo de lucro que não seja obtido à custa de uma dívida de igual volume, apenas não contabilizada, contraída junto a alguma camada social ou ambiental ou que não seja repassada às gerações futuras”.

“Todas as variáveis externas que os economistas classificam como inflação acabarão ultrapassando as fronteiras artificiais da economia – prossegue Henderson – inundando-a de custos sociais, sejam os que decorrerão dos desastres ecológicos até os custos dos programas de saúde destinados a controlar uma eventual epidemia de “aids”. Isto sem falar nos custos de conflitos externos, alguns dos quais provocados anteriormente por nós mesmos, como é o caso da situação iraniana” ( escrito antes de agosto de 1990). “Os economistas têm (…) aquelas formas simplistas e lineares de ver o mundo, de modo que qualquer outra coisa que aconteça será encarada como variável externa. Esses modelos bem arrumados do mundo estão divorciados das leis básicas e princípios da física, da biologia, da bioprodutividade; enfim do mundo real”. “Um dos problemas da macroeconomia é o nivelamento de dados. Perde-se toda noção do real quando a política é baseada nessa maneira maluca de tirar a média e de fazer abstrações. Quero dizer que os políticos e os economistas que perceberam esse tipo de formação obviamente não conseguem entender como se planta um repolho ou como se realiza qualquer outra atividade onde seja necessário saber lidar com o mundo real”. E conclui Hazel Henderson: “Por tudo isso, acho muito perigoso que essas pessoas continuem no comando. É por isso que tenho assumido como missão a necessidade de excomungar esta casta que dirige o processo de canalização de recursos na maioria dos países industrializados. Os economistas precisam ser expostos à execração pública como charlatões.

Precisamos de modelos políticos-econômicos muito mais complexos e interdisciplinares e estes não surgirão enquanto os economistas continuarem nos dizendo que são eles que sabem o que tem que ser feito”.

Nesse contexto, as ações resultantes da economia moderna não foram ainda mais devastadoras porque parcela crescente da população mundial vem conseguindo viver fora da economia formal, quase sem usar moeda. Isto só é possível, porém, quando os meios naturais não são destruídos ou os habitantes não são desalojados das localidades que habitam. Segundo Henderson, na totalidade da economia mundial, cinquenta por cento das atividades produtivas, de consumo e de serviços, estão fora do sistema monetário. Nada disso jamais é registrado nos mapas econômicos. Esta quantia soma cerca de 300 bilhões de dólares, por ano, só nos Estados Unidos, caso fossem monetarizados.
“Pessoalmente – acrescenta Henderson – desconfio que a maior parcela deste total se deve ao fato de que as pessoas estão sendo afugentadas da economia monetária pelo absurdo que resulta acompanhar as regras de seu jogo, preferindo uma forma comunitária de subsistência e o comércio de trocas”.

Obsessão em busca de crescimento exaure os parâmetros sociais humanos e físicos
Além das inadequações e ineficiências criadas pelo sistema da dependência tecnológica, há ainda as deformações resultantes de política de injunções, às vezes de natureza cultural, do próprio sistema econômico que, em geral, visa exclusivamente a objetivos imediatistas. Assim, grande parte das tecnologias externas é dissipadora de recursos naturais, de baixa eficiência e estruturada em sistemas fortemente centralizadores. Muitas levam a efeitos antiecológicos, inflacionários e são perniciosas à saúde individual e coletiva; isto é, são nocivas às sociedades e inadequadas às condições e circunstâncias dos locais de uso.

A obsessão pelo crescimento econômico indiscriminado, obedecendo a bisonhas extrapolações lineares, mantém o status quo por meio do sistemático aumento das desigualdades e iniquidades sociais e humanas. Esta dinâmica fomenta a deterioração de complexa natureza física, retirando-lhe a necessária flexibilidade e levando-a à exaustão. Trata-se de processo semelhante à exaustão física de organismos vivos, que podemos identificar como estresse ecológico.

Desse modo, são inutilizadas parcelas ponderáveis do patrimônio nacional, assim como são desmantelados sensíveis mecanismos institucionais, cujos principais objetivos são a promoção da harmonia e do avanço social e que exigiram longos períodos de construção. Os efeitos dessas dissipações nas áreas humanas, social e ambiental terminaram, como diz Henderson, revertendo sobre a sociedade, sob a forma de colossais pesadelos. Em síntese, trata-se de processo com características eminentemente predatórias. Em sua globalidade, formam consistente base estrutural para o processo inflacionário.

As teorias econômicas, entretanto, jamais os qualificam identificando-os como causas e os afastam de suas análises ao caracterizá-los, com desdém, como externalidades.

Nesta mistificação pode-se identificar uma das misteriosas razões por que os profissionais que aplicam essas teorias têm extrema dificuldade de localizar e atingir as origens inflacionárias. Sempre procuram atacar, às vezes com grande vigor, os efeitos do processo ou suas vítimas, preservando intocadas, com cuidadosas cautelas, as causas.

Ademais, como o econômico está cada vez mais centrado no financeiro, em sistema submetido a centros imperiais, é fácil transferir o ônus dessa sistemática estrutural para as economias dependentes. Os efeitos dessas transferências, realizados pelos usuais instrumentos financeiros internacionais, como taxas de câmbio, moeda de referência, relações de troca, dívidas externas etc. se acumulam com suas próprias mazelas, também de natureza inflacionária.

Evidentemente, em longo prazo, essas práticas podem ter perigoso efeito de bumerangue, como ao que assistimos, a partir do segundo semestre de 1990, no Oriente Médio. Os descomunais custos da mobilização militar e da guerra não puderam ser suportados pela superpotência econômica que comanda o sistema financeiro internacional e que, para tanto, pressionou seus próximos aliados a compartir esses cursos. Ademais, a eles se sobrepõem na natureza hedionda da ação de matança de um povo que resistiu a entregar seu patrimônio nas condições que interessam ao mercado de potências hegemônicas. No Brasil, mantendo os preços de US$ 40,00 do barril de petróleo, alcançado no início do conflito, os aumentos da despesa das importações de petróleo em 8 meses representariam, em dólares, 150% dos custos globais, em cruzeiros, da implantação do Pró-álcool, ocorrida num prazo de dez anos. Enquanto isto, os preços internacionais do petróleo continuam sendo intensamente manipulados. Até quando poderá se manter essa situação forjada? Enquanto isto, como consequência da guerra, centenas de poços estarão em chamas por muitos meses…

Assim, além da dilapidação da riqueza natural por destruição do patrimônio ecológico, as sociedades dependentes estão sendo submetidas a aumento crescente do que designaremos por estados de entropia, cujos efeitos são semelhantes aos causados pelo atrito excessivo nas máquinas, dissipador de sua energia motora. A obsessão pelo crescimento econômico indiscriminado e sem limites, leva a forçar, por longos períodos, parâmetros sociais, humanos e físicos, delicados e complexos, de forma linear, o que termina por superar seus níveis naturais de flexibilidade, levando-os à exaustão. Neste escopo, se colocam os prolongados períodos de desenfreada especulação financeira, afastando a poupança nacional das atividades produtivas e promovendo a criação de grandes fortunas, frutos dessa pilhagem; os gastos desperdiçados em gigantescas máquinas tecnocráticas, especialmente manipulando o financeiro; a montagem de complexas estruturas de controle do crime, resultado de graves desníveis sociais; os desgastes e os desperdícios de uma sociedade esbanjadora por parte da pequena minoria e os desequilíbrios decorrentes de uma maioria sem educação e sem saúde; a desmedida concentração da população em megalópoles, absorvedoras e dissipadoras de riqueza e cercadas por massas humanas de milhões de desamparados e marginais; as escandalosas transferências de renda para cobrir ineficiências produtivas resultado da natureza dependente do “modelo”econômico, além de políticas de exportação a qualquer custo, visando a garantir a estabilidade financeira das nações hegemônicas; os gigantescos serviços da dúvida, verdadeira sangria arterial da poupança nacional; a corrupção generalizada e impune; os grandes escândalos financeiros; a falta de objetivos nacionais das nossas universidades e do sistema de ciência e “tecnologia”, o crescente desencontro de falsos intelectuais, alguns chafurdando nas mistificadoras falsidades da modernidade; a ignorância arrogante e tantas outras nefandas práticas; a ingovernabilidade das grandes cidades; a marginalidade econômica de 70 milhões de brasileiros; a miséria absoluta de 40 milhões; e, para culminar, a orquestrada e sistemática destruição da auto-estima nacional, promovida de modo amoral e ostensivo pelos meios de comunicação de massa, especialmente pela televisão.

As mudanças profundas que se fariam necessárias para superar este estado de alta entropia encontraram reação organizada. Os defensores incondicionais e beneficiários de dinâmicas lineares que se fundamentam nas teorias econômicas e que servem ao poder hegemônico externo, dominam os destinos do País. Deste modo, congelam arbitrariamente estruturas que abrigam poderes quase absolutos, impedindo alterações desse status quo, essenciais à adaptação dessas dinâmicas a práticas que permitissem à sociedade brasileira sadia evolução. Até mesmo as correntes consideradas mais progressivas tendem a ser, nesses aspectos, reacionárias e estagnantes, por faltar-lhes instrumentos de análise e conhecimento específicos em multiplicidade de setores de natureza e da vida.

A crise econômica brasileira tem, como vimos, sua origem primeira no “modelo” de crescimento econômico dependente, adotado por indução de países hegemônicos predadores. Neste contexto, grande parte das tecnologias externas em uso é dissipadora de recursos naturais, de baixa eficiência e estruturada em sistemas fortemente centralizados e concentradores.

As consequências desse “modelo”, alienado e servil, extrapolam em muito o âmbito do econômico para atingir de modo brutal e sinistro a vida humana e a sobrevivência de nosso povo.

* Do livro Soberania e Dignidade; Raízes da Sobrevivência, Vozes, dezembro de 1991.
** Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Brasília.

Notas
(1) CAPRA, Fritjof, O ponto de Mutação.
(2) STI/MIC. A Biomassa Energética.
(3) BAUTISTA VIDAL, J. W. Op. cit.

EDIÇÃO 24, FEV/MAR/ABR, 1992, PÁGINAS 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44