As duas mortes de Tiradentes
D. Maria I, “A Louca”, rainha de Portugal, tomou duas medidas radicais referentes ao Brasil que, além de intimamente ligadas, evocam temas que continuam perfeitamente atuais em nosso tempo: a primeira delas foi o decreto de 1785, que proibiu o funcionamento de fábricas no Brasil, e mandou apreender as máquinas e desmontar as fábricas eventualmente existentes. A outra foi a sentença de morte contra Tiradentes, como punição exemplar por sua participação na Inconfidência Mineira, executada em 21 de abril de 1792 e que comemora, portanto, duzentos anos.
O elo que liga esses dois acontecimentos de forma indissolúvel, e os remete ao presente, é a questão nacional, independentemente da consciência ou não que os personagens históricos tivessem dela. Estas medidas de D. Maria, a Louca – ironicamente declarada incapaz de exercer o governo por ser doente mental no mesmo ano da morte de Tiradentes – tinham o sentido claro de manter o Brasil nos quadros do sistema colonial, impedindo o seu crescimento econômico autônomo. O ouro e os diamantes de Minas Gerais conseguiram manter o fôlego da economia portuguesa durante o século XVIII, mas quando a mineração começou a dar sinais de esgotamento, o reflexo de sua crise em Portugal foi o ressurgimento e aprofundamento das dificuldades econômicas. Isso numa época de mudanças internacionais importantes: a revolução industrial inglesa criou as condições para o lançamento das bases mundiais do Império Britânico, e uma nova forma de imperialismo começava a sobrepor-se ao velho colonialismo, do qual Portugal foi um dos principais representantes.
A ideologia liberal, que acompanhava a atividade dos industriais e comerciantes britânicos, dizia que os antigos monopólios comerciais – característicos do pacto colonial vigente até então – deviam ser eliminados, os entraves ao comércio internacional deviam ser destruídos, e os comerciantes deviam ter acesso a todos os portos do mundo. Foi a época da formação da teoria das vantagens comparativas, que previa uma divisão internacional do trabalho onde cada nação devia dedicar-se à atividade econômica em que sua produtividade e eficiência fosse maior, e adquirindo no mercado mundial os outros bens necessários ao consumo de seus povos. Uns produziam produtos industrializados (como a Inglaterra, que era então a “oficina do mundo”), outros produziam alimentos, outros ainda forneciam matérias-primas para o mercado mundial. E com isso, dizia essa teoria (reabilitada em nosso tempo pelos defensores da modernização conservadora), todos seriam felizes.
“Nascia a indústria moderna e, como hoje, havia profunda redefinição mundial”.
Aquela época, como agora, conheceu uma redefinição profunda do cenário mundial. Gestava-se então o mundo moderno, dominado pelo industrialismo, pela doutrina dos direitos dos homens, e pelas primeiras formas democrático-burguesas de governo. Aquelas mudanças completaram-se com dois outros acontecimentos de alcance mundial. O primeiro deles foi a revolução americana, iniciada em 1776 com a proclamação da Independência dos Estados Unidos, e completada em 1788, com o reconhecimento da independência pela Inglaterra. O outro foi a revolução francesa de 1789, onde a plebe de Paris e as massas camponesas das províncias francesas varreram os privilégios feudais, a monarquia e a aura sagrada que havia em torno dos reis, eliminada pelos golpes da guilhotina que executaram Luiz XVI e Maria Antonieta.
Essa situação internacional refletiu-se no Brasil com toda a sua complexidade. A economia mineradora criou, pela primeira vez, uma plutocracia urbana sofisticada, culta, que acompanhava de perto as mudanças mundiais. As idéias francesas tiveram forte impacto entre seus membros – principalmente as idéias dos reformistas aristocráticos que pretendiam substituir o absolutismo por alguma forma de monarquia constitucional.
Tomás Antonio Gonzaga – o poeta conspirador que fazia parte da equipe de notáveis que, se a conspiração prosperasse, deveria redigir a Constituição da nova Nação e ocupar a chefia do governo provisório, por exemplo – tinha idéias políticas talvez mais atrasadas do que os constitucionalistas franceses. Na década de 1780, ele escreveu um tratado sobre a lei natural onde dizia que democracia era o pior sistema de governo: “constituem ao Rei como mandatário, obrigado a dar contas ao povo, como seu mandante”. Suas reservas à democracia tinham ainda como base o direito divino dos reis: “o Rei é um Ministro de Deus” e o fim “para que ele se pôs é a utilidade do seu povo”.
“A Inconfidência podia levar, há 200 anos atrás, à criação de uma nação moderna”.
Além disso, diz o historiador Kenneth Maxwell (de cuja obra foi extraída a referência a Gonzaga), “até onde as provas o revelam”, nem mesmo a palavra democracia chegou a ser usada pelos conspiradores.
Já naquela época, os conspiradores mineiros pareciam interessados em não perder o bonde da história, como se diz hoje, e aproveitar a conjuntura internacional para eliminar os entraves colonialistas que impediam nosso desenvolvimento político, econômico e social. O exemplo da Independência dos Estados Unidos parecia animar projeto semelhante em muitos espíritos e os conspiradores chegaram mesmo a fazer gestões para obter seu apoio ao projeto emancipatório. O apoio britânico também era esperado. Kenneth Maxwell diz que José Álvares Maciel, quando estudante em Coimbra, em 1788, discutira “a possibilidade da independência do Brasil com homens de negócios da Inglaterra, que lhe mostraram que o fato da América portuguesa deixar de seguir o exemplo dos norte-americanos era visto com surpresa, e que qualquer iniciativa contra o domínio português teria o imediato apoio dos empresários britânicos”.
Ainda não se podia falar, há 200 anos, em consciência nacional no sentido que essa expressão tem no Brasil de hoje – a consciência de se pertencer a uma pátria comum, a um mesmo povo, com uma cultura comum, a um mesmo povo, com uma cultura comum, uma nação integrada, cujo solo vai do Amapá ao Rio Grande do Sul, passando pelo Acre. Ao contrário, o sentimento regionalista era forte naquela época, embora os conspiradores pensassem que o movimento só teria êxito caso São Paulo e Rio de Janeiro aderissem.
Porém, o forte sentimento autonomista e anticolonialista dos inconfidentes, ligado à defesa de seus interesses econômicos ameaçados pela Coroa portuguesa, levou-os a definir um programa de modernização que, embora social e politicamente conservador, poderia ter iniciado a criação de uma nação moderna. E, ao contrário dos pregoeiros modernos do neoliberalismo e da modernidade, eles procuraram demarcar com clareza a distinção entre seus interesses e os interesses antinacionais das potências estrangeiras.
A maioria dos líderes da conspiração tinha motivações pessoais para sua ação anticolonialista. Alvarenga Peixoto, por exemplo, “em 1788 estava diante de uma situação crítica”, ameaçado, inclusive, por uma ação que corria contra ele na Junta do Comércio de Lisboa, pela cobrança de uma dívida de 11 mil contos de réis, uma fortuna para a época.
As dívidas também moviam à conspiração outra categoria: a dos contratantes dos dízimos. Os contratantes eram particulares contratados pelos governo para cobrar impostos. Em Minas, cabia-lhes recolher as taxas cobradas aos mineradores; posteriormente deviam prestar contas à Fazenda Real, o que não acontecia com regularidade, gerando assim suas dívidas. Eles eram particularmente interessados no rompimento com Portugal. Domingos de Abreu Vieira era um contratante intimamente ligado a muitos oligarcas mineiros e seu débito era superior a 197 mil contos de réis do preço do contrato. João Rodrigues de Macedo, cuja mansão em Vila Rica era um ativo centro da conspiração, e Joaquim Silvério dos Reis, também eram grandes contratantes, com dívidas enormes. Macedo, por exemplo, devia uma soma oito vezes superior a seu ativo.
Padres como José da Silva de Oliveira Rolim e Carlos Correa de Toledo e Melo cobiçavam as vantagens pecuniárias que anteviam com a emancipação. Rolim era um latifundiário, traficante de escravos e diamantes e usurário no Distrito Diamantino; ele “foi denunciado”, diz Maxwell, “à Fazenda pelo juiz investigador Cruz e Silva” e era apontado como exemplo da ostensiva corrupção reinante entre os influentes caixas locais do governo. Toledo também era um rico e ambicioso proprietário de terras e escravos.
Militares como Francisco de Paula Freire de Andrade ou Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, não conseguiam progredir em suas carreiras, preteridos por concorrentes portugueses que tinham a preferência nas promoções. Freire de Andrade era um oficial da Companhia dos Dragões, frequentemente deixado para trás nas promoções feitas pelo governo português. Tiradentes, por sua vez, nunca conseguiu passar do posto de alferes.
“Tiradentes tinha a postura do homem de massas, agitador e líder revolucionário”.
Tiradentes pode ser considerado um típico representante da camada urbana intermediária que se desenvolveu nas cidades da região das minas. “Joaquim José da Silva Xavier foi, em toda a conspiração de Minas Gerais, um dos únicos – se não o único – destituídos de posses e riquezas”, dizem os historiadores Ricardo Maranhão e Antonio Mendes Jr. “Pertencia à ‘classe média’ pobre da Capitania, sendo obrigado a exercer vários ofícios ao mesmo tempo, para sobreviver. Foi mascate, ‘dentista’ (o que lhe deu o apelido) e soldado do regimento de cavalaria, onde não passou do posto de alferes (espécie de sub-oficial) devido à discriminação contra os brasileiros, que chegavam ao oficialato. Também não era culto e ’letrado’, como a maioria dos seus companheiros. Mas tinha o que nenhum deles podia oferecer à conjura: a postura do grande agitador político, do líder revolucionário, do ‘homem de massas’. Sua atividade e capacidade de trabalho eram espantosas. Enquanto seus companheiros discutiam questões teóricas, ele agia, procurando aliados, fazendo propaganda, viajando para outras capitanias, sondando as possibilidades”.
O programa da Inconfidência refletia as contradições dessa composição social, prevendo a satisfação de múltiplos interesses. Refletia, por um lado, as dificuldades econômicas que haviam afastado muitos magnatas da coroa, “forçando-os no rumo da revolução”. Por outro lado, essa conjura de oligarcas catalizou o descontentamento de outras camadas a que, hoje, se poderia chamar de classe média letrada, formada principalmente de profissionais liberais, magistrados, advogados e do clero, sensíveis às idéias francesas de legalidade constitucional, e ao exemplo norte-americano de Independência e formação de uma república constitucional.
O programa previa o fim da proibição de atividades econômicas no Distrito Diamantino e, principalmente, a anistia das dívidas com a Fazenda Real. Além disso, seria criada uma Casa da Moeda, cujas emissões seriam lastreadas pelo ouro que, previa-se, seria proibido de deixar a República. Previa-se também a implantação de manufaturas, o estímulo à exploração dos depósitos de minério de ferro, a criação de uma fábrica de pólvora, a criação de uma Universidade em Vila Rica, a restrição ao direito de os padres cobrarem o dízimo (em contrapartida a essa cobrança, eles deviam prestar serviços nas áreas de saúde, educação e assistência social), o incentivo à natalidade, a abolição nas distinções e restrições no vestuário, a obrigatoriedade de uso de produtos manufaturados localmente. Do ponto de vista político, previa-se a formação de um governo republicano provisório, chefiado por Gonzaga, com a duração de três anos, ao fim do qual os governos passariam a ser eleitos a cada três anos. Os direitos políticos somente eram extensivos aos homens livres, e os escravos, evidentemente, ficavam de fora da cidadania. Cada cidade teria seu parlamento, subordinado ao parlamento principal sediado na capital, e o exército permanente seria abolido (e seu lugar ocupado por cidadãos armados que, quando necessário, deveriam servir na milícia nacional).
“A burguesia de hoje, à menor dificuldade, grita louvores às marias loucas”.
Finalmente, encontraram uma solução de compromisso para a questão da escravidão, tema de controvérsia entre os conjurados. Tiradentes declarava-se abolicionista, enquanto outros conspiradores temiam o comportamento dos escravos. Maciel, por exemplo, disse em seu depoimento: “sendo o número dos homens pretos e da escravatura no país muito superior ao dos brancos, toda e qualquer revolução que aqueles pressentissem nestes seria certo motivo para que eles mesmos se rebelassem” (citado por Clóvis Moura). A solução que o sargento Luis Vaz de Toledo pregava para isso era a abolição. “Um negro com uma carta de alforria na testa se deitava a morrer”, disse ele. “O certo, porém”, diz Clóvis Moura, “é que a abolição da escravatura não figurou como ponto programático na Inconfidência”. Segundo Kenneth Maxwell, a solução de compromisso a que se chegou, equacionando os interesses dos proprietários de escravos com segurança do Estado, foi a liberdade apenas para os negros e mulatos nascidos no território da nova república.
A conspiração, contudo, não chegou a sair dos planos. Sua história é por demais conhecida. Joaquim Silvério dos Reis, a troco do perdão de sua dívida para com a Fazenda Real, delatou seus companheiros. As prisões se sucederam, os conspiradores foram processados, e as autoridades coloniais prepararam um grande espetáculo público para o enforcamento de Tiradentes, no dia 21 de abril de 1792. Pretendiam uma grande demonstração de força para eliminar, pela raiz, qualquer veleidade autonomista e toda oposição não só ao pacto colonial, mas também ao regime monárquico em Portugal. Seu êxito, entretanto, foi precário. A própria dinâmica dos acontecimentos europeus, conjugada com a luta dos nacionalistas brasileiros, levaria poucas décadas mais tarde à Independência do país. “A revolta planejada não se materializara”, diz Maxwell, “mas isto não escondia o fato de que um importante segmento do grupo social em que o governo metropolitano devia confiar para exercer seu poder em nível local, numa das mais importantes, populosas, ricas e estrategicamente bem situadas capitanias brasileiras, tinha tido o atrevimento de pensar que podia viver sem Portugal. (…) Jamais o status quo anterior seria restabelecido”.
As contradições de classe que existiam entre os conspiradores, e que provavelmente explodiriam se de fato chegassem ao poder, tiveram uma ocasião menos nobre para manifestar-se. Elas tornaram-se visíveis nas declarações de júbilo e de fidelidade à Rainha quando os condenados tiveram conhecimento da comutação das penas de morte de todos os conjurados ricos em degredos perpétuos para a África. Em contrapartida, Tiradentes, o lado popular da articulação, teve mantida sua cruel pena de enforcamento, esquartejamento e exposição pública dos pedaços de seu corpo nos locais onde pregou a possibilidade e a necessidade de o país livrar-se do jugo português. Teve um comportamento heróico diante da morte, como até mesmo testemunhas oficialistas como o padre confessor que o acompanhou nos últimos momentos tiveram que reconhecer. Esse comportamento, eivado do misticismo próprio da época, criou a lenda que, depois da Monarquia, quase cem anos após sua morte, transformou-o em Patriarca da Independência e herói máximo do ideal republicano.
Aquela foi sua primeira morte. Hoje, duzentos anos depois, Tiradentes correria o risco de sofrer sua segunda morte, quando o governo e grande parte das elites brasileiras impõem ao povo um programa que se diz “de modernização”, mas que, ao contrário do ideal autonomista de 200 anos atrás, amplia a dependência do país em relação às potências capitalistas, agindo contra o desenvolvimento independente e contra o bem-estar e a segurança do povo brasileiro.
Gente que fala em modernização, espelhando-se em ideologias geradas há duzentos anos, para legitimar o expansionismo britânico sobre o planeta e eliminar a concorrência industrial que poderia competir com aquela nação na disputa pelo mercado capitalista. E gente que esquece que o programa de desenvolvimento autônomo do país também tem pelo menos duzentos anos, e já era defendido pelos Inconfidentes de Minas Gerais. A elite republicana que hoje homenageia a figura de Tiradentes, porém não consegue levar às últimas consequências seu programa, vacila e, à menor dificuldade, canta louvores às marias loucas estrangeiras de nosso tempo. Com uma elite dessa, não há projeto de modernização que deslanche, seja hoje, seja há duzentos anos.
* Jornalista.
Bibliografia
MARANHÃO, Ricardo e MENDES Jr., Antônio, “Um Homem do Povo na Forca”, Jornal Bloco, n. 1, 1º de maio de 1979.
MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa – A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808, RJ, Paz e Terra, 1977.
MOURA, Clóvis. “Inconfidência Mineira, Uma Utopia Republicana”, in Movimento, n. 95, 25 de abril de 1977. Últimos momentos dos Inconfidentes
(pelo Frade que os assistiu de confissão)
O texto a seguir é um extrato do documento publicado da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, volume 44, 1881, páginas 161 a 185. Sua autoria, segundo os especialistas, é atribuída ao Frei Raimundo de Penaforte, um dos confessores dos conjurados, e testemunha dos momentos finais de Tiradentes. Trata-se de um depoimento de um representante do oficialismo que, mesmo assim, não consegue disfarçar a comoção que o espetáculo do enforcamento provocou entre o povo; daí seu interesse (JCR).
“Residem no coração do homem uns certos pressentimentos cujas causas não nos são ocultas; porém, se quisermos ser fiéis à nossa fé, ela nos ensina que entre as nossas almas e as secretas disposições da Providência há um mútuo comércio, donde resultam aqueles presságios que nós mesmos chamamos batimentos de coração. Seja o que for, contudo, o mais esperançado foi o mais eloqüente persuasor de uma irremediável morte. Sim, Alvarenga levantou a voz e falando aos principais culpados, disse: ‘Meus Amigos, aquela exceção não se entende comigo, nem com Vms., apenas Vidal e Salvador escaparão do laço’.
Quando pela meia hora apareceu o mesmo ministro, o seu rosto vinha como transformado e ninguém empregava nele os olhos que não respeitasse a terrível majestade da Justiça. Abriu os autos, e leu: Não são admitidos os últimos embargos pelas razões expedidas nos primeiros (…)
Um mortal suor os lavou e tragaram a gota do fel (…) mas vista a carta da Rainha, nossa Senhora, tornaram à vida (…) Comuta-se aos réus, exceto Tiradentes, a pena de morte em degredo perpétuo para os lugares da África, e se tornarem à América, morrerão irrevogavelmente morte natural da forca para sempre (…)
A pena não pode pintar os extremos de alegria que se deixaram ver tanto nos réus como nos outros presos da cadeia e na infinita gente que estava esperando pela última e fatal decisão! Os gritos, ou louvores, e as ações de graças se elevaram ao céu. Uns admirados celebravam tão inaudita piedade da soberana, outros mil vivas repetiam; qual perguntava ao outro: que é isto que ouço! É verdade? (…) Tal exclamava: quem tal dissera! (…) Os presos com toda efusão de seu coração entoavam a Salve Rainha e prosseguiram o terço de Nossa Senhora, finalmente todos a uma só voz diziam: que clemência! Que piedade! Só vós, Senhora, nascestes para governar! Que felicidade a nossa sermos vassalos de uma Rainha tão cheia de comiseração pelo seu povo! Governai-nos, Senhora, vós nos cativastes (…) Em verdade, este perdão firmou muito mais o direito de vassalagem nos corações de seu povo, do que a Justiça, ainda que revestida da clara luz do dia, que castigaria delito semelhante. Resplandece nesta clementíssima providência o inato amor, que consagra a soberana aos seus vassalos; qual o terno amor da mãe para com seus filhos, não menos em jogo de política, tão necessária aos príncipes, com o qual pretende atrair a si os corações de seus colonos, já aterrando-os, já confundido-os e concutindo-lhes os ânimos, como para lhes mostrar evidentemente a infidelidade de alguns, já com o horror dos últimos castigos, já finalmente com mitigar estes mesmos castigos até chegar ao excesso de dispensar nas leis ordinárias.
No meio de tão vivos transportes de alegria, só o Tiradentes estava ligado de mãos e pés, que justamente foi por último declarado sedutor; testemunhou esta não esperada metamorfose, mas tão coraçudo como contrito, respondeu ao diretor *, que o confortava até aqui, ‘que agora morreria cheio de prazer, pois não levava após si tantos infelizes, a quem contaminara: que isto mesmo intentara ele nas multiplicadas vezes que fora à presença dos ministros, pois sempre lhes pedira, que fizessem dele só vítima da lei’. (…)
Amanheceu o dia 21 de abril, que lhe abriria a eternidade. Entrou o algoz para lhe vestir a alva e pedindo-lhe de costume o perdão da morte, e que a Justiça é que lhe moveria os braços e não a vontade; placidamente, voltou-se a ele e lhe disse: ‘a meu amigo, deixe-me beijar-lhe as mãos e os pés’; o que foi feito com demonstração de humildade com a mesma despiu a camisa e vestiu a alva dizendo “Que o seu Redentor morrera por ele também nu”.
Então vieram aqueles, que talvez tratavam de bagatela este fato, qual foi o peso em que o tomaram os que devem vigiar sobre os sagrados direitos dos reis; fazer temer e respeitar a sua suprema autoridade e conservar o sossego público. Soaram com alegria os instrumentos bélicos; de uns quartéis marcharam os regimentos, que guarneciam esta praça, com os seus respectivos uniformes maiores, e foram portar-se nos lugares determinados. O regimento de Moura bordava toda a rua da Cadeia de uma a outra banda, continuava o regimento de artilharia até o largo da barreira de Santo Antonio, chamado o campo da Lampadoza; avulsas patrulhas demandavam continuadamente este largo, apartando o indizível concurso do povo, que cada vez mais se apinhava. Os demais regimentos estavam postados em figura triangular, deixando uma praça vazia, na qual estava a forca elevadíssima, de sorte que a escada, por onde se subiria a ela tinha mais de vinte degraus, e as colunas dos regimentos reforçavam-se ao depois das outras, que bordavam a dita rua e marcharam na retaguarda de todo o acompanhamento, que seguia o réu. Dava a tropa as costas ao patíbulo; as cartucheiras estavam providas de pólvora e bala.
Comandava este campo o brigadeiro Pedro Alves de Andrade, que tinha dado o risco desta postura em ordem aos respectivos chefes do regimento. Em soberbo e bem ajaezado cavalo, o brigadeiro percorreu todo o campo, observando o alinhamento da tropa. Ao lado do brigadeiro ricamente montado ia D. Luiz de Castro Benedito, como Exmo, ajudante-de-ordens do Vice-Rei, seu pai; a sua guarda de respeito era de dois soldados de cavalaria, e dois sargentos-mores, igualmente bem montados, acompanhavam o ajudante-de-ordens para as expedições que fossem necessárias. (…)
Abria o caminho por entre o desfilamento dos regimentos, que bordavam a rua, a primeira companhia do esquadrão; seguiu-se o clero, a irmandade e os religiosos, que rodeavam o padecente, repetindo os salmos próprios para estas ações.
Causava admiração a constância do réu, e muito mais a viva devoção que tinha aos grandes mistérios da Trindade e da Encarnação; de sorte que, falando-se-lhes nestes mistérios, se lhe divisavam as faces abrasadas e as expressões eram cheias de unção: o que fez que o seu diretor não lhe dissesse mais nada se não repetir com ele o símbolo de S. Atanásio. O valor, a intrepidez e a pressa com que caminhava, os solilóquios que fazia com o Crucifixo, que nas mãos levava, encheram de extrema consolação aos que lhe assistiam.
Os ministros da Justiça formavam um respeitável e majestoso ajuntamento. Os meirinhos guardavam o réu executor; após estes ia o juiz de fora montado em brioso cavalo; era de prata a ferragem dos arreios e as clinas iam trançadas e rematadas com laço de fita cor-de-rosa. Apostava o ouvidor da comarca no asseio, riqueza e melindre de sua cavalgadura com o juiz de fora. Sobre todos aparecia o desembargador ouvidor geral do crime; os arreios de seu vistoso cavalo eram de prata dourada, de veludo escarlate e franjas de ouro as gualdrapas e os estribos dos arreios. Fechava este acompanhamento a 2ª companhia do esquadrão: no coice desta procissão vinha o carretão, que traria os quartos, depois de feita a execução, puxado por galés. (…)
Ligeiramente subiu os degraus e sem levantar os olhos, que sempre conservou pregados no Crucifixo sem estremecimento algum, deu lugar ao carrasco para preparar o que era necessário, e por três vezes pediu-lhe que abreviasse a execução. Não desistiram os sacerdotes de dirigir a Deus os auxílios tão necessários para avivar a fé, a esperança e a caridade em transe tão arriscado.
O guardião do convento de Santo Antônio, que também acompanhava a seus súditos, inflamando-se desmarcadamente em caridade e justiça, subiu a escada e daí admoestou os espectadores que não se deixassem possuir só pela curiosidade e do assombro, mas que implorassem a Deus a última graça para quem tão constante ia pagar o seu delito, e que assim mesmo tinha servido de objeto da clemência da soberana, que não o punia mais gravemente, e não menos da iluminada justiça de seus ministros, que não lhe agravaram a pena.
Repetido pelo mesmo padre guardião o credo, viu-se suspenso de uma das traves da forca o corpo do infame réu, cuja alma em paz descanse. (…)
As janelas das casas estão vindo abaixo de tanto mulherio, cada uma apostava com a outra o melhor asseio. Não permitiu a Providência que a curiosidade roubasse a maior parte deste espetáculo; foi tal a compaixão do povo da infelicidade temporal do réu, para que lhe apressarem a eterna, ofereceram voluntariamente esmolas para dizerem missas por sua alma: e só nessa passagem tirou o irmão da bolsa cinco doblas. Era impossível que este fato com as suas circunstâncias, não tocasse vivamente os corações dos bons e fiéis vassalos, e que vassalos cristãos não descobrissem nele uma particular providência, e que não adorassem! Assim o sentiu a câmara dessa cidade, que determinou que se pusessem as luminárias nas três noites seguintes, e se fizesse uma ação de graças; para o que escolheram a igreja dos Terceiros Carmelitas.
Por convite da mesma fez pontifical de manhã o Exmo. e Rvmo. Bispo diocesano, e de tarde repetiu o muito reverendo padre-mestre Sr. Dr. Fernando Pinto, carmelita, uma nervosa oração fundada sobre três pontos dados pelo Ilmo. e iluminado juiz da alçada e chanceler, para que não se misturassem com os transportes do povo os verdadeiros, que deviam surpreender os ânimos e corações dos bons e fiéis vassalos, e foram: 1o. – Render graças a Deus pelo benefício que fez aos povos de Minas Gerais em se descobrir a infame conjuração a tempo que foi dissipada e sem que fosse posta em execução, e se seguissem as perniciosíssimas consequências que dela resultariam; 2º – Por não ser contaminada esta cidade do contágio da dita infame conjuração; 3º – Persuadir ao povo fidelidade, amor e lealdade a uma soberana tão pia e tão clemente e rogar a Deus que lhe conserve a vida e o Império. (…)
Finalmente, a pena não pode pintar o contentamento, a alegria e o prazer que se divisavam no rosto de todos, e a voz comum, que por muitos dias se ouviu, dizia: nunca se viu tanta clemência. Esta universal e sincera expressão formará para sempre a fidelidade deste povo à nossa augusta, pia e fidelíssima Rainha, que Deus conserve por dilatados anos”.
* Diretor era sinônimo, na época, de sacerdote, de guia espiritual.
EDIÇÃO 25, MAI/JUN/JUL, 1992, PÁGINAS 33, 34, 35, 36, 37, 38