“A derrota do socialismo não se deu pelo enfrentamento direto com a burguesia. Esta tentou inúmeras vezes liquidar pela força o regime proletário. Particularmente, com a agressão da Alemanha de Hitler. Nada conseguiu, fracassou sempre. O socialismo foi esmagado por corrente que atuava no seio do movimento revolucionário” (1).

No estudo da derrota do socialismo, muito se tem falado sobre o papel do revisionismo. Mas a observação acima diz respeito às condições que permitiram ao revisionismo predominar no partido comunista e no poder, na URSS e em todo o Leste europeu. Tais causas têm raízes objetivas: a sobrevivência de vasta camada pequeno-burguesa durante a construção do socialismo.

Com a revolução, a burguesia é logo afastada do poder e dos meios de produção. No choque frontal com as massas, é alijada de suas posições, suas idéias são ostensivamente combatidas e desmascaradas, perde a capacidade de ludibriar a sociedade através dos meios de comunicação. Suas tentativas de voltar ao poder resultam em confrontos abertos – perigosos evidentemente. Mas, uma vez frustradas estas manobras, resta aos antigos dominadores uma reserva: a atividade sutil da pequena-burguesia, que confunde-se com os trabalhadores, atua no movimento popular, infiltra-se nos aparatos estatais e no partido comunista, exerce significativa influência sobre o proletariado.

Politicamente, a pequena-burguesia adota posturas de esquerda. Mas “objetivamente, opõe-se ao projeto do proletariado de construir uma sociedade de trabalhadores, de indivíduos iguais em direitos, sem classes, uma comunidade livre de privilégios e de parasitas. Orienta-se no sentido de amainar a luta revolucionária do proletariado (…) e dirigi-la pelo caminho das reformas” (2).

A base de tal comportamento reside no fato de a pequena-burguesia ser uma camada intermediária. Não é propriamente possuidora dos meios de produção, mas, indiretamente, usufrui de parte da mais-valia produzida pela classe operária. Não participa diretamente do processo produtivo, mas é sempre empurrada para o proletariado e, cada vez mais, obrigada a viver assalariada.

Por sua situação no processo produtivo, encontra-se entre o proletariado e a burguesia, oscila sem um projeto próprio. Ora adota posições ultra-radicais, ora cai no desespero e no desânimo. Embora com outra faceta, permanece existindo no socialismo. Na Rússia, “os democratas pequeno-burgueses (incluindo os mencheviques) vacilam inevitavelmente entre a burguesia e o proletariado, entre a democracia burguesa e o regime soviético, entre o reformismo e o revolucionarismo, entre o amor aos operários e o medo da ditadura do proletariado” (3).

“Oposição a todo tipo de controle, tanto no capitalismo como na edificação socialista”.

No socialismo, a pequena-burguesia sobrevive, por longo período, ligada à pequena produção, ao pequeno comércio e agarrada nos aparatos burocráticos. À medida que encontra brechas no controle dos trabalhadores sobre o poder e a administração, trata de expandir seus privilégios e interferir nos rumos da construção do novo sistema.

O camponês, dono de um reduzido pedaço de terra, é uma expressão da pequena-burguesia. Mesmo quando associado em cooperativas, mantém-se vinculado à pequena propriedade. Tem objetivos gerais diferentes do proletariado. Apóia a revolução em função da pressão que sofre dos latifundiários. Mas desconfia, e teme, do avanço da socialização. Em determinadas situações, pode ser arrastado para posições contra-revolucionárias. Aqui no Brasil, é conhecida a forma como a UDR manipulou parcelas camponesas em sua campanha reacionária durante o funcionamento da Constituinte.

Também nas cidades, os proprietários de pequenas oficinas e fabriquetas de fundo de quintal, os artesãos, os trabalhadores autônomos, constituem uma camada imensa que, depois da revolução, sobrevive com sua atividade individual, mas recebe os benefícios do socialismo.

Existem também outras maneiras, menos evidentes, das concepções individualistas e pequeno-burguesas se fazerem presentes. Os hábitos e costumes, a mentalidade forjada durante séculos pelos exploradores, que penetram em todas as camadas sociais, não se desfazem imediatamente com a tomada do poder pelo proletariado e com as mudanças na base material. A ideologia individualista, enquanto prevalece, conduz o proletariado a tomar muitas atitudes que, mesmo inconscientemente, vão contra os seus interesses fundamentais, dificultam a eliminação das heranças capitalistas e a construção da nova sociedade. Em particular, a norma de “levar vantagem em tudo” é um vício pequeno-burguês que solapa a disciplina no trabalho, escapa ao controle revolucionário, dificulta o planejamento.

Lênin, ao falar da pequena-burguesia, assinala que ela, para manter suas regalias, “opõe-se a toda intervenção por parte do Estado, a todo inventário, a todo controle que emane de um capitalismo de Estado ou de um socialismo de Estado” (4). Esse modo de agir influencia, inclusive, a classe operária.
O predomínio da nova maneira de pensar, de acordo com os ideais revolucionários, é tarefa para várias gerações. “É preciso convencer das novas tarefas” – diz Lênin – “centenas de milhões de homens que viveram de geração em geração na escravidão e na opressão, sendo esmagada toda sua iniciativa: milhões de operários, que são membros dos sindicatos, mas ainda inconscientes politicamente, que não estão habituados a sentirem-se como donos” (5).

Nos órgãos da administração e de gestão das empresas socialistas, o novo regime é obrigado a contar com antigos capitalistas e elementos da intelectualidade burguesa. Lênin observa que “se não queremos cair em posições do utopismo puro e da fraseologia oca (…) devemos ter homens que dominem a técnica da administração, que tenham experiência estatal e econômica, e esses homens só podemos ir buscá-los na classe que nos precedeu (…) é necessário tomar a ciência e a técnica e pô-las a serviço de círculos mais largos, mas elas só podem ser tomadas à burguesia” (6).

Estes homens que dominam a técnica – especialistas em vários terrenos – encontram-se, nos primeiros passos do novo regime, em posição privilegiada. Trabalham para o proletariado em troca de certas condições vantajosas. “Não é possível obrigar toda uma camada social a trabalhar sob o regime do cacete. Os salários (elevados) representam um compromisso imposto pela luta de classes e não a aplicação do princípio de a cada um segundo seu trabalho” (7).

Esse compromisso tem seus riscos, evidentemente. Permite mobilizar em favor do progresso econômico um capital humano importante. Mas tem implicações ideológicas: dá força ao anseio de “levar vantagem”, alimenta a tendência de sentir-se superior ao coletivo e fugir de suas regras e controles, facilita aos especialistas manterem sua influência sobre grande massa de trabalhadores com poucos conhecimentos – herança do regime de exploração.

“Brechas no controle de poder e na administração das empresas no período de transição”.

Além dos técnicos especialistas, “muitos latifundiários infiltraram-se nas explorações agrícolas soviéticas, e os capitalistas, nas diferentes ‘direções gerais’ e nos ‘organismos centrais’ como empregados, estão atentos para aproveitar, a cada instante, os erros do poder soviético e suas debilidades, com o objetivo de derrubá-lo” (8). Lênin diz ainda, em 1919, que “os grandes latifundiários e capitalistas não desapareceram na Rússia, mas foram totalmente expropriados e derrotados no terreno político como classe, e seus restos foram esconder-se entre os empregados da administração pública do poder soviético” (9).

Aqui é preciso compreender bem a realidade do regime de transição. A propriedade dos meios de produção nas mãos do Estado socialista é parte do processo de socialização desses instrumentos. Só quando toda a população participar na administração será possível evitar que esses elementos burocráticos façam o jogo das velhas classes dominantes. Enquanto isso, durante longo tempo, os controles serão exercidos por uma representação do proletariado. E aparecerão certas brechas inevitavelmente. Lênin mostra que os sovietes, “sendo por seu programa órgãos da administração exercida pelos trabalhadores, são, na prática, órgãos da administração para os trabalhadores, exercida pela camada de trabalhadores que constitui a vanguarda e não pelos trabalhadores em seu conjunto” (10). Na direção das empresas, o mesmo fenômeno se repete.

Alguns, vendo as coisas de forma mecânica, negam que o socialismo tenha sido implantado na URSS. Consideram um desvio do socialismo o fato de não se proceder a um controle direto imediato das massas sobre o poder e a administração, e de existirem especialistas com salários superiores ao do trabalhador médio. Desconhecem assim o essencial do socialismo, que é o seu caráter de transição. A separação entre o trabalho manual e o intelectual, entre as tarefas de direção e de execução, assim como as formas de separação entre os produtores diretos dos seus meios de produção não desaparecem por mágica. O poder socialista existe exatamente para dirigir o processo e eliminar essas heranças da divisão de trabalho capitalista.

Lênin mostra que, após a revolução, existiam na Rússia cinco modos de produção: a forma patriarcal, a pequena produção mercantil de camponeses e artesãos, o capitalismo privado – no campo e na cidade –, o capitalismo estatal e o socialismo. Esta era a realidade e não a vontade dos comunistas ou de quem quer que fosse. Transformar esse intrincado de relações exigia medidas práticas, que permitissem alimentar o país e implantar o novo modo de produzir, e não apelos abstratos em nome de um socialismo puro.

Uma vez que o controle e a regulamentação da produção ainda não estavam efetivamente nas mãos do conjunto dos trabalhadores, existiam espaços – e existirão certamente nas mais diversas experiências – para certas práticas que favoreciam os especialistas burgueses e os elementos das antigas classes dominantes escorados nos aparatos administrativos e das empresas – com muita experiência acumulada e com laços de dominação estabelecidos há séculos.

Indiretamente, esses elementos conseguem certos mecanismos para se beneficiarem ainda do sobreproduto resultante do trabalho operário. Para isto, a velha “intelligentsia” esmera-se em exercer pressão sobre os operários e comunistas ocupados na administração – com pouca experiência e conhecimentos técnicos reduzidos.

“Uma intrincada rede burocrática neutraliza comunistas que ainda não sabem dirigir”.

Isso se agrava porque, nos primeiros tempos, principalmente, enormes contingentes da vanguarda têm que se ocupar das funções administrativas – enfraquecendo em parte seus vínculos diretos com as massas, ponto forte do partido comunista na mobilização revolucionária. Em 1919, 60% dos membros do partido comunista trabalhavam na administração e apenas 11% nas indústrias – quer dizer, muitos operários tiveram que se afastar de suas bases para colocar a máquina estatal em movimento.

Também neste terreno, Lênin observou: “Falta cultura na camada de comunistas que governa (…) Os comunistas responsáveis da República Socialista Federativa da Rússia (RSFR) e do PC(R) poderão compreender que não sabem dirigir? Que julgam dirigir os outros quando, na realidade, eles é que são dirigidos?” (11).

Ao analisar a relação desses dirigentes revolucionários com a intrincada rede de interesses mesquinhos e armadilhas, constituída pelos especialistas e burocrata saídos das velhas classes dominantes, Lênin faz analogia, no XI Congresso do Partido bolchevique, com casos da história em que, devido às desvantagens culturais, um povo conquista o outro e o povo conquistado é o vencedor, enquanto o conquistador é o vencido.

É claro que esta batalha feroz se trava na surdina. Envolvida em fraseologia revolucionária – “para dar mais eficiência ao trabalho”, “para obedecer às condições concretas”, “para atuar com mais ciência e menos emoção”, “para poupar forças da revolução” – visa a diminuir os ritmos, desviar ou adiar certas atividades, amainar alguns controles. Além evidentemente de alguns convites camuflados – e às vezes descarados – para vantagens pessoais em detrimento do coletivo.

A luta de concepções tem base objetiva e é um processo permanente. Mas, em épocas de “desenvolvimento pacífico”, perpassa a atividade diária sem manifestações ostensivas. Nas situações de viragem, nas crises, nos saltos a uma nova fase do desenvolvimento, nos momentos de dificuldades é que a disputa se intensifica. Pode então ocasionar a consolidação de plataformas distintas e provocar rupturas. Sensibiliza parcelas da opinião pública e reflete-se no interior do partido comunista. A luta tende a cristalizar-se em torno de indivíduos concretos ou de grupos, despontam lideranças que contestam os rumos do poder socialista e da direção do Partido.

Vale lembrar que na própria educação dos operários, durante um bom tempo, as limitações materiais obrigam o poder proletário a ceder para velhos hábitos. É sabido que grande parte da indústria russa foi destruída durante a Primeira Guerra e nos três anos seguintes de guerra civil. Quando os trabalhadores vêem desaparecer essa base material, diz Lênin: “há incerteza, desesperança, falta de fé, que podem ser exploradas”. E diz que, nessas condições, “o decreto estabelecendo prêmios para os operários, dando-lhes uma parte dos produtos fabris, constitui uma concessão a esse estado de espírito (…) Não se pode esquecer um instante sequer que fizemos e estamos fazendo uma concessão indispensável do ponto de vista estritamente econômico, do ponto de vista dos interesses do proletariado” (12).

Esses incentivos materiais – conquanto necessários em determinadas condições – não se enquadram na norma de “a cada um segundo seu trabalho”. Conquistam a dedicação do trabalhador com base em seu interesse individual. Constituem uma concessão ao individualismo. Não se coadunam com a concepção de trabalho comunista, que é, “no sentido mais rigoroso e estrito da palavra, um trabalho não remunerado em benefício da sociedade (…) sem ter em conta qualquer recompensa, um trabalho por hábito de trabalhar para o bem geral e pela atitude consciente – transformada em hábito – perante a necessidade de trabalhar para o bem comum, um trabalho como exigência de um organismo são” (13).

Tudo isso é parte da luta de classes. E, em relação ao assunto que estamos abordando, implica três frentes concretas: as transformações na base material que limitem o campo da pequena produção e ampliem o da grande produção socialista; a revolução cultural que possibilite o controle direto das amplas massas sobre o processo produtivo e o poder político; a atividade ideológica propriamente dita, que incentive o novo modo de pensar apoiado no coletivo em lugar do pensamento individualista.

O enorme esforço para dotar a URSS de uma indústria pesada moderna fez parte desse processo. Paralelamente, a prática dos planos quinquenais reduzia o terreno da influência da propriedade individual e o espaço de manobra da burguesia.

Foi realizado também um enorme esforço para forjar uma nova intelligentsia, dar conhecimentos científicos aos trabalhadores e promover novos técnicos às funções de comando.
Desde 1926 iniciou-se a formação de operários de choque, mobilizados para abolir os velhos métodos de trabalho, inovar e obter maior produtividade. Em 1933 já estavam em ação 5 milhões desses trabalhadores de vanguarda.

“A formação ideológica não mereceu o cuidado necessário para preparar o Partido”.

Ao lado disso, investiu-se pesadamente na formação técnica. Entre 1928 e 1931, milhares de trabalhadores passaram a frequentar escolas de engenharia e outras de nível superior. De 1930 a 1933 chega a 1,5 milhão o número de novos engenheiros, técnicos e diretores que formaram-se em cursos de especialização.

A partir de 1928, diretamente sob a direção de Stalin, inicia-se uma campanha de promoção operária aos postos administrativos – os “especialistas vermelhos”. Até 1933 cerca de 140 mil, na maioria sem partido, são promovidos e mais de 400 mil vão estudar. O movimento stakhanovista (iniciado por Stakhanov, destacado operário de vanguarda) – para renovar os métodos de trabalho, racionalizar e modernizar a produção – mobilizava 100 mil trabalhadores em janeiro de 1936 (dados citados por Charles Bettelheim).

Percebemos hoje que isto não foi acompanhado da atenção merecida no terreno ideológico. A promoção dos operários de vanguarda não assegura automaticamente o avanço das novas concepções. Ao se depararem com um corpo de funcionários viciados com as marcas pequeno-burguesas, muitos dos novos trabalhadores se deixam contaminar pela burocracia, se sua promoção não estiver escorada numa mobilização ideológica permanente.

As mudanças políticas e de concepções não avançam sem a atividade consciente e dirigida pelo partido comunista. Caso contrário, os vencedores podem ser solapados e dominados pelas idéias de classes derrotadas, mas resolvida a lutar por seus privilégios.

Desde 1936, existia no Partido bolchevique a idéia de que, na URSS, as classes dominantes já não existiam, e que a sociedade era composta de operários e camponeses, “com interesses amistosos”, como afirmava Stalin no informe sobre o Projeto de Constituição.

Não se levou em conta que, no período de transição socialista, “as classes permanecem e modificam-se, e a luta entre elas ganha outras formas”, como advertia Lênin (14). E subestimou-se o fato de a burguesia, embora desprovida de meios de produção, poder continuar sua atividade de sapa através da pequena-burguesia.

Pode-se falar em interesses amistosos no terreno político em determinado período. Em torno desses interesses comuns estabelecem-se alianças. Mas no terreno ideológico, não há como conciliar os conceitos comunistas da classe operária com o individualismo, seja dos camponeses, seja da pequena-burguesia urbana. Desconhecer essa realidade é concretamente desarmar a classe operária e seu partido para os embates. E a realidade da URSS demonstra que, depois de alguns anos, depois de avaliar que só existiam classes amistosas, o proletariado se viu arriado do poder pela pequena-burguesia, encabeçada por Kruschev, com a bandeira do revisionismo.

“Em 1956, o alvo era desarmar o poder proletário, atacando o chamado stalinismo”.

A pequena-burguesia foi, concretamente, o veículo para que a contra-revolução liquidasse o poder proletariado – a qual, a princípio, não tinha um programa nem um projeto definidos. Seu alvo central era desarmar a ditadura do proletariado. Por isso, aproveitando-se de erros e da incapacidade de renovação do poder socialista, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1956, investiu contra o que denominou “stalinismo”. E nessa categoria foi sendo incluído tudo que representasse controle operário, punição às sabotagens, iniciativa revolucionária. O mote do combate eram as deformações – que, de fato, em boa parte ocorreram – mas o objetivo era desmontar o poder estabelecido pela classe operária com a revolução socialista de 1917.

Com o tempo, no XXI e XXII congressos, a plataforma do novo (velho) poder foi sendo traçada: Estado de todo o povo em vez de ditadura do proletariado; Partido de todo o povo em vez de partido do proletariado; um novo conceito de coexistência pacífica; competição pacífica e transição pacífica, em vez de revolução. A Perestroika e a Glasnost, de Gorbachev, representam um produto mais refinado dessa pequena-burguesia no poder, e o passo mais avançado no sentido de restaurar abertamente as relações burguesas. Não por acaso esses apelos causaram tanta simpatia mesmo entre forças de “esquerda” orientadas por concepções pequeno-burguesas – mesmo as que proclamam posições aparentemente radicais, como os trotskistas.

Esse resultado não era inevitável, conquanto não se pudesse evitar o confronto de idéias. Ocorre que depois da tomada de poder, em 1917, a corrente proletária, representada pelo Partido bolchevique, soube analisar a realidade e oferecer soluções mais avançadas para cada situação. A partir do instante em que os comunistas não conseguiram desenvolver a teoria marxista e abordar adequadamente os novos problemas para assegurar a revolucionarização da sociedade, o poder e o partido tornaram-se vulneráveis. A perspectiva revisionista encontrou meios de empolgar contingentes do povo soviético e assaltar o Comitê Central do PCUS. Os trabalhadores e os militantes encontravam-se ideologicamente debilitados e sem capacidade de reagir.

Analisando a coisa deste ponto de vista, fica mais claro o desenrolar da luta no Partido bolchevique. Com a vitória em 1917, o proletariado se viu diante da tarefa de obter a paz para reconstruir o país e dar uma trégua ao povo, exausto e faminto. Seguiu-se um período turbulento, onde eram exigidas muitas flexões, muitos avanços e recuos. E cada nova orientação gerava divergências.

A pequena-burguesia entrincheirou-se em posições pretensamente radicais e, no próprio interior do partido comunista, seus apelos puristas tiveram eco. Formou-se uma oposição “de esquerda” aos acordos da paz de Brest-Litovski, com a Alemanha. Trotsky era o principal porta-voz dessa tendência no Partido.

Logo a seguir, também se ergueram as vozes ultra-esquerdistas para condenar o recuo organizado, empreendido através da Nova Política Econômica (NEP). Bukharin em particular, interpretou esse sentimento no Partido.

As concepções pequeno-burguesas se expressaram ora pela defesa prematura da ofensiva contra os kulaks, ora pela condenação dessa ofensiva quando as condições a exigiam. Pela negativa das concessões aos capitalistas num momento e pelo chamamento de “enriquecei” feito aos camponeses no instante seguinte. E pelo apego à NEP quando era ocasião de ultrapassar essa fase.

Em meados da década de 1920, essas contradições caminharam para a formação de plataformas irreconciliáveis, que resultaram na expulsão de Trotsky do partido comunista. E, com o agravamento da situação internacional, desembocaram, depois do assassinato de Kirov, em 1935, nos processos de Moscou e na condenação de Bukharin, Zinoviev etc. Pode-se estudar melhor como os comunistas conduziram essa luta e identificar, em certas situações, uma intransigência excessiva. Stalin reconhece: “não se pode afirmar que a depuração se levou a cabo sem sérios erros.

Desgraçadamente, houve mais erros do que se podia supor. Indubitavelmente, não haveremos de empregar mais o método da depuração em massa” (15).

“No Brasil, a partir de 1962, fortalece-se núcleo proletário no interior do PCdoB”.

Mas o que fica claro é o processo de confronto sistemático entre a corrente proletária, representada pelo partido bolchevique, e que as concepções pequeno-burguesas, que ali e acolá – em momentos que colocavam em pauta novas definições – cristalizavam-se numa tendência organizada, provocando a formação de grupos antipartido, levando à ruptura.

O processo de luta interna, às vezes mal conduzido, sem esclarecer e mobilizar devidamente o coletivo partidário, deu lugar a um problema ainda mais grave. Subestimou-se a luta ideológica, desarmou-se o partido comunista em relação à pequena-burguesia e, em 1956, o XX Congresso consolidou a vitória dessa corrente na direção do partido comunista.

No Brasil é possível identificar a trajetória dessa luta em todo o processo de construção do Partido Comunista. Devido às condições concretas do país, a pequena-burguesia sempre teve papel de destaque nas lutas políticas. E, durante décadas, exerceu enorme influência sobre as fileiras comunistas. O próprio Luis Carlos Prestes, formado pelo movimento tenentista, de cunho eminentemente pequeno-burguês, nunca conseguiu desvencilhar-se de tais concepções. Sob seu comando, por longo período, o Partido oscilava, muitas vezes assumindo posturas reformistas e, em outras, tendendo ao esquerdismo.

Só em 1962, quando se forma um núcleo proletário mais sólido e estável, foi possível romper com a longa trajetória de ziguezagues e com a direção prestista, que enveredara pelo revisionismo. Mas, mesmo com o Partido reorganizado, surgiram reflexos das concepções pequeno-burguesas no seu interior.

A facção de Tarzã de Castro, em 1966, que tratou de articular, dentro do PCdoB, uma auto-intitulada Ala-Vermelha; a tentativa, pelo grupo de Ozeas Duarte e Nelson Levi (ao qual se ligou José Genoíno) de assaltar a direção do Partido, em 1979, aproveitando-se da desorganização da direção e do exílio forçado de alguns dirigentes, foram manifestações concretas de formação de grupos com acentuada conotação pequeno-burguesa.

Recentemente, na própria preparação do 8º Congresso, quando o PCdoB tratava de se contrapor à ofensiva mundial anticomunista, a ex-deputada Lídice da Matta, que fazia parte da direção nacional, se deixou encantar pelo canto da sereia de uma revolução amena, pela “ampliação de espaços democráticos" e de um partido sem centralismo democrático – como revelou em carta dirigida à direção regional da Bahia – e desligou-se do Partido Comunista.

Segundo avaliação aprovada pelo plenário, na caminhada para o 8º Congresso não surgiu nenhuma tendência organizada, mas no debate foram identificadas concepções desse tipo, com certas marcas de ecletismo e de democratismo. Esse foi um dos assuntos que polarizaram as intervenções na reunião dos comunistas.

Aqui não cabe detalhar os exemplos. Apenas citá-los para revelar que o Partido Comunista se forma em luta permanente contra tais idéias que, refletindo a luta de classes na sociedade, manifestam-se, objetivamente, no seu interior.

A luta ideológica, ligada aos problemas práticos do cotidiano, é, assim, questão vital da luta de classes – tanto para a construção do Partido do proletariado como para a edificação da nova sociedade socialista.

* Editor da revista Princípios.

NOTAS
(1) João Amazonas. Informe ao 8º Congresso do PCdoB.
(2) Idem.
(3) LÊNIN, Vladimir. Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, 1920.
(4) LÊNIN, Vladimir. Sobre o Infantilismo de Esquerda – 1918.
(5) LÊNIN, Vladimir. Informe ao VIII Congresso dos Sovietes de toda a Rússia – 1920.
(6) LÊNIN, Vladimir. Relatório do CC ao IX Congresso do PC(R) – 1920.
(7) LÊNIN, Vladimir. VII Congresso do PC(R) – 1919.
(8) LÊNIN, Vladimir. Carta aos operários e Camponeses por Motivo da Vitória sobre Koltchack – 1919.
(9) LÊNIN, Vladimir. Informe sobre a Tática do PC(R) no II Congresso da IC – 1921.
(10) LÊNIN, Vladimir. Sobre o Programa do Partido – VIII Congresso do PC(R) – 1919.
(11) LÊNIN, Vladimir. Relatório do CC ao XI Congresso do PC(R) – 1922.
(12) LÊNIN, Vladimir. Sobre o Imposto em Espécie – 1921.
(13) LÊNIN, Vladimir. Da Destruição de um Regime Secular à Criação de um novo Regime – 1920.
(14) LÊNIN, Vladimir. A economia Política na Época da Ditadura do Proletariado – 1919.
(15) STÁLIN, Joseph. Informe ao XVIII Congresso – 1939.

BIBLIOGRAFIA

LÊNIN, Vladimir. Resposta à Carta Aberta de um Especialista – 1919.
LÊNIN, Vladimir. A Economia Política no Período da Ditadura do Proletariado – 1919.
LÊNIN, Vladimir. Tarefas Imediatas do Poder Soviético.
LÊNIN, Vladimir. Reunião dos Funcionários de Partido de Moscou: Informe sobre a Posição do Proletariado diante da Democracia Pequeno-Burguesa – 1918.
STÁLIN, Joseph. Informe ao XVIII Congresso do PCUS – 1939.
STÁLIN, Joseph. Relatório à XV Conferência do PCUS – 1926.
BETTELHEIM, Charles. A luta de Classes na URSS.
LEWIN, Moshe. “Para uma Conceituação do Stalinismo” – Na coletânea A História do Marxismo, organizada por Hobsbawn.
MCNEAL, Robert. As Instituições da Rússia de Stalin – na mesma obra.

EDIÇÃO 25, MAI/JUN/JUL, 1992, PÁGINAS 14, 15, 16, 17, 18, 19