Propriedade Intelectual, GATT e Rodada Uruguai têm sido termos normalmente ausentes do quotidiano da opinião pública brasileira. A súbita notoriedade que o primeiro item passou a ter em anos recentes prende-se, principalmente, ao contencioso com os Estados Unidos a propósito do não reconhecimento pelo Brasil de patentes a produtos e processos farmacêuticos.

Mesmo assim, o assunto foi divulgado, episodicamente, com a natural fragmentação e superficialidade dos noticiários, os quais tendiam a enfatizar a argumentação dos reclamantes, pouco dizendo sobre a natureza e amplitude do real problema, circunscrita sua apreciação aos limites da esfera oficial.
Acabou-se criando, desta maneira, a impressão de que o episódio das patentes farmacêuticas se resumisse a um conflito comercial localizado, deixando de relacioná-lo com o problema maior em que está inserido – a pretendida mudança da legislação internacional, e das diversas leis nacionais, que regem direitos de monopólio conceituados como propriedade intelectual, da qual Patentes são uma importante modalidade.

As pretendidas mudanças, por sua vez, aparecem no cerne da reorganização capitalista em curso, que se expressa na voga neoliberal em termos que espraiam todo seu aspecto ideológico: “ajuste estrutural”, “livre comércio”, “desregulamentação”, “eficiência global”, “mercado global” etc. – uma série de conceitos erigidos à condição de artigos de fé, e que vêm de fato pautando a atuação de numerosas administrações nacionais ao sul do Equador.

Como um refluxo do período de crescimento econômico que conviveu com a guerra fria e, em parte por isso mesmo, estimulava expectativas crescentes (a elevação dos “níveis de vida”), a reorganização em curso passa pela redução de expectativas e estagnação de economias nacionais, projetando para um futuro seguidamente adiado uma hipotética “retomada do crescimento”. Fortalece, enquanto isso, os mecanismos de controle, apropriação e concentração, divisando novas fronteiras de expansão na desintegração/incorporação do Leste europeu e em um novo tipo de “administração” da periferia, ao qual está fortemente associada a retórica ambientalista. Um de seus principais pilares jurídicos é precisamente uma nova exacerbação do conceito de propriedade privada – especialmente presente nos novos padrões propostos para os direitos de propriedade intelectual em suas diversas modalidades.

“Os mecanismos do GATT mantêm a grande maioria da humanidade em posição marginal”.

Esta reorganização, que provoca fortes reações no próprio centro do sistema, vem sendo aplicada na periferia a partir das pressões associadas à dívida externa daqueles países e das vulnerabilidades, antigas e “modernas”, com que se posicionam tanto da relação bilateral com as potências econômicas como no âmbito dos organismos multilaterais de natureza econômica – o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT).

O foro multilateral onde, no momento, talvez se evidencie com maior nitidez a vontade de consagrar institucionalmente esta nova ordem, dando-lhe cunho universal, é o último dos referidos foros – o GATT, oriundo com os outros dois de Bretton Woods, e cujo oitavo ciclo de negociações (a Rodada Uruguai) se encontra, cinco anos e meio após seu lançamento em Punta del Este, em impasse persistente por desacordo entre os principais protagonistas – os Estados Unidos, a Comunidade Econômica Européia e o Japão.

Não se pode perder de vista que o GATT, produto do imediato pós-guerra, é uma criação norte-americana. E que, assim como um século antes, a hegemonia inglesa percebera no livre comércio uma harmonia universal – que de fato mais era a de seu próprio poder e domínio dos mercados do mundo – também os Estados Unidos, naquele momento detentores do monopólio nuclear e de mais da metade do produto mundial, iriam atribuir ao livre comércio harmonia semelhante.

Decorridas mais de quatro décadas, o livre comércio continua sendo formalmente a premissa ideológica em que se apóia o GATT, pressupondo seus princípios fundamentais (a chamada Cláusula de Nação Mais Favorecida e o princípio de Tratamento Nacional) uma hipotética igualdade e reciprocidade que convenientemente elude as realidades do contexto político econômico em que se pratica o comércio e que de maneira muito concreta condicionam todo o funcionamento do GATT, seu mecanismo decisório em particular. De fato, o voto nada mais sendo que simples referência no documento constitutivo da entidade, as decisões são tomadas por um consenso facilmente orientado pelas potências econômicas. Explica-se assim que os países ditos em desenvolvimento, esmagadora maioria da humanidade, lá tenham tido sempre posição marginal.

Nos casos concretos em que assim foi do interesse de seus principais mentores, aqueles princípios foram adequadamente “flexibilizados” através de “waivers” ou derrogações, mecanismo inscrito, aliás, nas próprias normas do Acordo Geral. São exemplos disto o fato de ter ficado o comércio agrícola fora do GATT por décadas sucessivas (o desacordo quanto às condições em que se deva dar agora sua incorporação está no cerne do momentoso impasse), bem como de terem sido “regulamentados” os produtos têxteis oriundos do Sul a partir de 1961 (“desregulamentação” progressiva está sendo também objeto de discussões na Rodada Uruguai). Tampouco impediriam naturalmente a proliferação de outras barreiras e “proteções” além das tradicionais tarifas.

À medida que foi se modificando, ao longo da década de 1970, a configuração do comércio mundial (em grande medida por obra da crescente transnacionalização do capital norte-americano) e que, embora aliados políticos, Comunidade Européia e Japão emergiam como concorrentes da superpotência capitalista, enquanto um grupo de países periféricos se transformava em exportador de produtos industrializados, foram se tornando evidentes para seus idealizadores as limitações do Acordo Geral primitivo na tarefa de “harmonizar” a complexidade do comércio internacional, em contexto político igualmente modificado, onde a supremacia econômica da principal superpotência aparecia sensivelmente diminuída.

Fortaleceu-se, de fato, a tendência a novas racionalizações e pressões protecionistas para justificar desvios ao hipotético princípio da “não-discriminação”. São disto conhecidos e extremos exemplos as “restrições voluntárias à exportação”, bem como as “retaliações cruzadas”, algumas das quais motivo de considerável atividade diplomática em anos recentes em torno da informática brasileira.

Neste quadro, a oitava rodada do GATT singulariza-se em relação às anteriores pela abrangência de sua agenda e o alcance das propostas do capitalismo avançado, que em muito ultrapassam os limites do que fora até aqui considerado comércio entre países. Lá está a abertura de mercados no comércio de bens tangíveis, universo tradicional do Acordo Geral. Está igualmente o projeto de um “novo“ GATT, fortalecida a sua relação orgânica com BIRD/FMI, extraordinariamente ampliado seu raio de ação e virtualmente erigido em tribunal para todas as áreas que passa a incorporar. E lá está finalmente objetivo primordial da Rodada – os chamados Novos Temas: Propriedade Intelectual, Investimento Direto Estrangeiro e Serviços, intimamente interligados, por onde se consagra o ajuste estrutural e virtualmente se invalida o conceito tradicional de “desenvolvimento nacional”.

“A tendência é de ampliar mais o conceito de propriedade intelectual no GATT”.

Ao englobar toda a atividade econômica transnacional dentro do conceito de comércio, os fluxos “livres” – isto é, sem qualquer condicionante ou “regulamentação” governamental – passam a incluir também o investimento estrangeiro, em todas as suas formas e em todos os segmentos da atividade econômica, inclusive no vasto espectro de setores genericamente denominados Serviços, abrangendo entidades tão portentosas como Telecomunicações e Serviços Financeiros e tão sensíveis quanto os hoje chamados “serviços” de Ciência e Tecnologia.

A proteção à chamada propriedade intelectual em suas múltiplas formas, nos padrões propostos, aparece no esquema ideal de abertura delineado pela Rodada como meio de consolidar a liberdade “protegida” de tais fluxos.

O conceito de propriedade intelectual abrange hoje múltiplas modalidades, algumas de aparição recente, cuja aplicação ainda não se universalizou como, por exemplo, a proteção específica para semicondutores, na área de informática. Um tratamento técnico da matéria estaria fora do escopo destas notas. Registre-se apenas que a amplitude do conceito engloba tanto situações puramente comerciais (marcas), como industriais (principalmente patentes, tanto de produto como de processos); atinentes à produção considerada eminentemente científica (por exemplo, Patentes em Biotecnologia/Engenharia Genética) ou ainda relativas à criação intelectual, artística ou literária (que hoje abrange o extenso leque audiovisual, incluída a televisão) ou à que progressivamente lhe vem sendo assemelhada, como no caso dos programas de computador.

É portanto vasta – e crescente – a incidência de direitos de propriedade intelectual sobre a atividade econômica, em simetria com a própria abrangência do conceito de tecnologia, ao qual estão em geral associados. Considere-se ainda que uma mesma inovação tecnológica (sobretudo nas chamadas tecnologias “de ponta”, especialmente em Biotecnologia e Informática, muito mais nesta última) pode ter aplicação direta, ou fortes implicações para diferentes e numerosas atividades ou setores econômicos. Por outro lado, diversas formas de propriedade intelectual podem incidir em uma mesma operação econômica.

Verifica-se hoje a tendência – posta no GATT – de ampliar e generalizar o conceito, bem como de enrijecer os termos em que tais direitos são concedidos, isto é, ampliando sua área de aplicação e tornando-os mais absolutos. Paralelamente, pressões no mesmo sentido estão presentes na relação entre as potências econômicas e outros países, principalmente os endividados da periferia intermediária, seja diretamente ou através das condicionalidades dos organismos financeiros internacionais.

Naturalmente, a alta concentração deste tipo de propriedade acompanha a concentração do capital e da apropriação do avanço tecnológico em nível mundial, ou seja: nos países do centro capitalista – e principalmente em seus grandes conglomerados transnacionais (que são também os principais protagonistas do comércio internacional) – para quem a propriedade intelectual é o principal de seus ativos e base para sua estratégia de mercado.

Propriedade Intelectual aparece, portanto, como o ponto onde melhor se evidencia o caráter contraditório da Rodada Uruguai – como de resto de todo o discurso neoliberal – na medida em que o argumento da liberdade e do crescimento do comércio internacional é invocado para fortalecer o controle de mercados, vale dizer de economias nacionais, a partir de uma lógica que se pretende “global”.

Olhando mais de perto a modalidade “Patentes”, vê-se que os “padrões de proteção” propostos tocam precisamente em pontos internacionalmente reconhecidos e aceitos há mais de um século como prerrogativas de governos nacionais. Em linhas gerais, os novos padrões procuram:

a- Ampliar a duração do monopólio investido nas patentes;
b- reduzir significativamente o grau de descrição técnica (ou disclosure) da inovação, requerida ao solicitar seu patenteamento;
c- proibir a exclusão de áreas econômicas à patenteabilidade, tradicional prerrogativa a que invariavelmente recorreram todas as potências industriais de hoje no processo histórico de construção de sua pujança econômica;
d- ao amparo do ponto anterior, ampliar a patenteabilidade a seres vivos (em princípio plantas e microorganismos), produto de manipulação genética; e
e- retirar ainda ao Estado o poder da licença compulsória, ou seja, a de tornar obrigatória a fabricação do produto patenteado dentro dos limites de seu território, faculdade também utilizada pelos países hoje no centro do sistema sistematicamente.

“O enrijecimento de direitos só pode acentuar o processo de desindustrialização”.

No intuito de torná-las mais assimiláveis, estas mudanças têm sido apresentadas aos mais avançados dentre os países ainda ditos em desenvolvimento, com o invariável argumento de que elas lhes trarão as seguintes e principais vantagens: aumento do fluxo de tecnologia através de contratos de licenciamento; estímulo aos investimentos diretos estrangeiros, pois o fato de observarem tais países as mesmas normas que os industrializados tornaria seus mercados mais atraentes; estímulo à pesquisa tecnológica por empresas estrangeiras e nacionais e, finalmente, a possibilidade de importação de bens de alta tecnologia. Parte-se daí para compor a justificativa, incessantemente repetida, de que a adesão às novas regras permitirá o desenvolvimento industrial em bases “modernas e competitivas”.

Apesar da argumentação de patrocinadores e adeptos, os padrões postos no GATT parecem acenar justamente no sentido oposto. De fato, reduzir o grau de disclosure; considerar que a exploração da patente está sendo atendida com a importação do produto, não sendo obrigatória sua fabricação dentro da jurisdição concedente, além de – e aqui está outra variante de proteção – estender direitos de propriedade intelectual à informação não revelada (“undisclosed information”) parecem agir nitidamente no sentido de favorecer o controle sobre a produção e o comércio; restringir a difusão da informação tecnológica (de que os documentos de patente têm sido tradicionalmente fonte potencial), sendo esta uma das formas de coibir o surgimento de produtos/processos concorrentes, e favorecer a importação vis-à-vis o licenciamento para fabricação, assim controlando a capacidade instalada em nível mundial, restringindo-a se assim julgado conveniente. Acentua-se ainda a vulnerabilidade do licenciado face ao titular da tecnologia.

Ampliando-se este tipo de direitos, tanto no tempo quanto em termos de áreas econômicas, ampliando-se consequentemente o efeito restritivo global das medidas que se pretende consagrar na Rodada Uruguai, efeito que se faria sentir não apenas sobre os países do Sul mas, igualmente, sobre os setores mais “nacionais” – principalmente pequenas e médias empresas – das próprias potências industriais.

Este enrijecimento dos direitos de propriedade industrial, aliado à abertura de mercados – tarifária e não-tarifária – que a maioria endividada dos países do Sul já vem de fato praticando nestes últimos anos, independentemente dos resultados no GATT; à crescente e geral “desregulamentação” de suas economias; à permanente pressão de sua dívida externa; à longa ausência de vontade política para consolidar um nível crítico de desenvolvimento tecnológico e, sobretudo, convivendo com o progressivo enfraquecimento de sua instituições, do aparelho governamental em particular, tal enrijecimento de direitos torna altamente improvável que a Nova Ordem favoreça o desabrochar tecnológico-industrial “moderno e competitivo” com que se procura justificar as mudança propostas.

“Conflitos entre EUA, Japão e CEE paralisam atualmente a Rodada do Uruguai”.

A probabilidade é, ao contrário, que continue a acentuar-se o processo de desindustrialização – observável principalmente na América Latina, em graus e a partir de momentos diferentes, ao longo da última década – mantendo na periferia indústrias altamente consumidoras de energia ou poluentes (em ambos os casos com tecnologias dos países do centro).

Mesmo acentuando-se a desindustrialização, não necessariamente cessará o fluxo de remessas ao exterior a título de remuneração de tecnologia em suas diversas formas. Este fluxo poderá, ao contrário, até ampliar-se em função de previsíveis investimentos na extensa gama de serviços; no setor agrícola; em mineração; ou ainda em novo filão de negócios associado ao “setor ecológico”. Afloram aqui as várias implicações que é lícito antecipar, a partir do reconhecimento de patentes no setor de manipulação genética, para a produção agrícola, bem como para o controle da estratégica biodiversidade do trópico úmido.

Curiosamente, as grandes divergências/resistências em torno de pontos centrais da Rodada Uruguai vêm hoje das principais potências econômicas, inclusive dos próprios Estados Unidos, grande mentor da negociação. A Comunidade Européia recusa-se a modificar sua política agrícola nos moldes exigidos; o Japão reitera que não abrirá seu mercado de arroz e que não pretende diminuir ainda mais seu grau de auto-suficiência alimentar; os Estados Unidos, cujas vantagens comparativas em serviços financeiros parecem ter-se modificado, principalmente vis-à-vis o Japão, desde 1982 quando a idéia de um novo ciclo de negociação foi concebido pela administração Reagan, então reticentes diante de uma liberalização generalizada neste setor. Mesmo Propriedade Intelectual, que se poderia considerar o tema da divisão Norte/Sul por excelência, é objeto de divergências dentro do Norte, entre os quais a não aceitação pela CEE do reconhecimento de patentes para seres vivos.

Os mais avançados entre os países “em desenvolvimento” resistiram, por algum tempo, à não inclusão dos Novos Temas (Propriedade Intelectual, Investimentos Estrangeiros e Serviços) na negociação, pois pressentiam no projeto de mundo que neles estava contido um potencial cerceamento de seu futuro. Vencida, porém, a primeira resistência, as demais o foram sem grandes dificuldades, situação naturalmente propiciada pela absorção das premissas neoliberais em sua própria administração interna. Na posição de expectativa em que agora se encontram, procuram concentrar sua atuação em Genebra no sentido de defender, na medida do possível, o que identificam como seus interesses exportadores mais concretos e imediatos.

O impasse atual da Rodada Uruguai – face a fortes reações “nacionalistas” no centro do sistema e ao período pré-eleitoral por que passam alguns e o principal daqueles países – promete prolongar-se. Não por isso serão mais brandas as pressões sobre os países mais vulneráveis.
Fica a constatação de que “o mercado global” não constrói países. Muito ao contrário: nutre-se deles, principalmente dos mais fracos e complacentes. E uma pergunta: É possível ser ativamente internacional sem ser antes conscientemente nacional?

* Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.

EDIÇÃO 25, MAI/JUN/JUL, 1992, PÁGINAS 20, 21, 22, 23, 24