A classe operária e a questão de gênero
Este final de século parece ter desvendado, além do esgotamento de um ciclo da experiência socialista no mundo, a existência da opressão de gênero na história da humanidade. A questão da mulher tem emergido com força em todos os campos da vida da sociedade, e mais do que nunca se tem debatido, estudado, elaborado e mesmo incorporado ao cotidiano essa questão. A situação da mulher tem evidenciado, não só seus aspectos específicos, mas também os mecanismos e processos que determinam as condições materiais e as relações econômicas entre os seres humanos, bem como suas relações no mundo das idéias e dos sentimentos em todas as suas manifestações – culturais, artísticas, éticas, científicas, políticas, ideológicas e psicológicas –, que nem sempre se dão por caminhos muito claros e diretos.
Através da análise de fenômenos gerados pela opressão de gênero, podemos penetrar nas difíceis questões da democracia, da diversidade de motivações e formas de participação do povo nos mecanismos intrincados da exploração, no papel do Estado. Enfim, analisar a questão de gênero é, em certa medida, analisar a essência de muitos dos problemas enfrentados pelo socialismo em nossos dias.
Um desses problemas está relacionado ao mecanicismo e à tendência a análises simplistas da realidade, presentes muitas vezes na aplicação e no desenvolvimento do marxismo. Engels já detectava essa maneira mecanicista de abordar os reflexos superestruturais da vida econômica e registrou isso em sua famosa carta a Bloch (1).
No que se refere à questão da mulher, ao lado dos inúmeros avanços alcançados nas últimas décadas, temos vivido, no campo da teoria marxista, o esgotamento de inúmeros modelos teóricos e práticos, construídos sem um suficiente desenvolvimento do próprio marxismo por parte de seus seguidores.
Neste artigo, pretendemos abordar algumas dessas questões, particularmente aquelas ligadas à inter-relação entre classe e gênero, buscando encontrar nos postulados do marxismo os pontos de partida que podem nos indicar os fios e teias, muitas vezes invisíveis, que ligam os problemas da produção e reprodução da vida – entendidos frequentemente de forma equivocada, apenas como aspectos do trabalho nos moldes que o conhecemos no capitalismo. Procuraremos relacionar esses elementos fundamentais da existência humana ao surgimento e à manutenção da opressão de gênero.
O marxismo-leninismo afirma – e a vida tanto do mundo capitalista como das experiências socialistas tem confirmado – que a exploração de classe é decisiva em relação à opressão de gênero. O marxismo afirma, ainda, que esta última não se resolverá sem que se resolva a exploração de classe. Ter claro essa assertiva, no entanto, não significa que a complexa relação entre classe e gênero para o marxismo-leninismo se restrinja a esses postulados.
Podemos evidenciar essa tendência reducionista, por exemplo, ao procurarmos demarcar os campos entre as concepções marxista e não-marxista. Não nos referimos aqui àquelas idéias burguesas claramente machistas, que a própria vida tem se encarregado de desmascarar, mas sim às várias concepções feministas existentes no seio da luta pelo fim da discriminação da mulher.
“O marxismo colocou por terra a tese da base natural, fatalista, da opressão da mulher”.
Se simplificarmos a questão, colocando num único bloco todas essas concepções, baseados no fato de elas não reconhecerem a opressão de classe como fator de origem da opressão de gênero, não conseguiremos abarcar as inúmeras correntes que, embora se coloquem como firmes opositoras da tese do "natural", da origem biológica da opressão, não partilham da análise materialista-histórica dessa opressão. Diga-se de passagem que aquele "sexismo feminista", de visão exclusivamente biológica, nunca teve maior expressão em nosso país e mesmo no mundo, restringindo-se a pequenos grupos radicais, sem maior projeção (veja quadro).
O marxismo, longe de restringir a questão de gênero à mera decorrência mecanicista e colateral da questão de classe, foi e é a ciência que colocou por terra a tese da base natural e, portanto, fatalista da opressão da mulher. Mas não se limitou a isso. Indicou os caminhos para se entender a relação entre classe e gênero – o que procuraremos abordar neste artigo. No entanto, embora muito se tenha gastado de papel e tinta para provar que a teoria de Marx não consegue dar conta da questão de gênero, pouco se tem avançado no desenvolvimento desses postulados.
Uma série de mecanismos complexos – como a produção, primitivamente organizada em famílias, as características biológicas que diferenciam o homem caçador e guerreiro da mulher voltada para a reprodução, o próprio desconhecimento e idealismo, entre outros fatores – desempenha um papel até mesmo decisivo nas formas e nuances que as diversas sociedades vão adquirindo em suas relações, não só de gênero, mas de etnia, de idade, de nacionalidade, de localização na produção etc. No entanto, isso não desmente o fato de esses elementos terem um elo comum, fatores que, em última instância, são os determinantes principais da desigualdade: a propriedade privada e a exploração de classe.
Mas o marxismo vê a questão em sua complexidade e não se esgota aí. Uma das idéias centrais do materialismo, várias vezes repetida por Marx e Engels, é a de que, "segundo a teoria materialista, o móvel essencial e decisivo, ao qual obedece a humanidade na história, é a produção e a reprodução da vida imediata" (2). Procuremos refletir sobre essa afirmação no que se refere à origem da opressão e à relação entre a produção de bens materiais e a produção da vida.
Já nas primeiras diferenciações surgidas no trabalho – a divisão sexual do trabalho, chamada por Engels de espontânea –, essa relação entre produção de bens e gênero se manifesta e cria as condições para o surgimento, a partir da atividade masculina, do excedente, da escravidão e do acúmulo de riquezas na produção (pecuária e agricultura) e, mais que isso, cria a necessidade de incluir nessa propriedade os membros da família, para garantir a manutenção das posses através da herança.
Uma diferenciação importante, no entanto, é que, se a divisão sexual do trabalho, surgida espontaneamente, precede a propriedade privada e as classes, a divisão sexual do trabalho por sua vez, é submetida à propriedade privada aos interesses das classes dominantes, sofrendo as consequências das mudanças ocorridas num meio que acabou se tornando externo às relações familiares – o da produção social, agora inteiramente dominada pelos homens proprietários e não mais pela família, de forma coletiva.
A mulher passa, progressivamente, a produzir apenas para a família, que vai se tornando monogâmica, nuclear, patriarcal. Na medida em que avançam as sociedades, a produção doméstica cada vez mais se distancia dos caminhos por onde passa a produção social, e a reprodução – problema antes coletivo, como a decisão dos casamentos, destino das proles em função do alimento disponível etc. – vai se tornando questão privada, de domínio do patriarca.
Como a propriedade não é algo abstrato, de uma classe de possuidores abstrata, suspensa no espaço e no tempo, mas pertence a pessoas, em determinadas condições históricas essa propriedade se manifesta, ao longo da história, através de famílias patriarcais, monogâmicas, que passam seus bens de geração a geração. Não se pode negar que a propriedade é privilégio de uma classe, mas principalmente dos machos dessa classe, na medida em que é na forma de organizações familiares patriarcais que as pessoas acumulam riqueza.
“Os interesses de classe estão intimamente ligados à questão de gênero”.
A família, que já havia deixado de ser o núcleo de produção e reprodução coletiva da sociedade, passa a ser, então, o núcleo econômico de caráter privado, que realiza a propriedade privada, e seus membros, submetidos ao dono dos meios de produção o patriarca. A mulher na condição de esposa é proprietária apenas nos domínios do lar e enquanto reprodutora de futuros proprietários.
Mas, se situamos nas classes e na propriedade privada os fatores determinantes, em última instância, da opressão de gênero e assim visualizamos qual o caminho para o fim dessa opressão, isso também coloca para a classe operária a correta dimensão da questão de gênero e da opressão da mulher: aspecto intimamente ligado aos seus interesses de classe, não sendo apenas um problema de solidariedade entre os oprimidos.
Não se porá fim à propriedade privada dos meios de produção, e aos fatores que a geram continuamente, se não dermos combate também às suas manifestações e aos desdobramentos no terreno da reprodução e da família, nesse tipo de família que perdura até os nossos dias – a família patriarcal, mantida como unidade econômica da sociedade. E isso não será possível sem uma orientação nova e libertária nas relações de gênero.
Voltemos à afirmação de Marx e Engels: "O móvel essencial e decisivo ao qual obedece a humanidade na história é a produção e a reprodução da vida imediata e, por sua vez, estas são de duas classes: a produção dos meios de existir, de tudo o que serve de alimento, vestuário, domicílio e utensílios; e, por outro lado, a produção do homem mesmo – a continuação da espécie" (3). Esta formulação sobre a produção e a reprodução da vida não deixa dúvida sobre o que Marx e Engels entendiam por produção, sendo descabidas as conclusões de que na concepção “produtivista" de Marx não existe espaço para a questão de gênero, ou que em suas categorias e leis não se inclui a capacidade reprodutiva das mulheres, e assim por diante. Críticas, nesse sentido, parecem mais lamúrias do tipo: por que Marx não escreveu um outro O Capital, só para tratar desse tema e desta maneira nos poupar o esforço de pensar, por nós mesmos, sobre a questão?! Embora seja verdadeiro o fato de esse postulado situar também uma outra ordem de problemas – pouco tem sido abordado, pelos continuadores do ciência do socialismo, o papel da reprodução da espécie ou, como Marx afirma, "a produção da vida mesma", cuja importância é ressaltada com tanta ênfase na citação acima.
As classes e a propriedade privada dos meios de produção, que atingem seu estágio mais avançado no capitalismo – estando, portanto, maduras para serem superadas, através da revolução socialista – condicionam diretamente o conjunto das relações humanas e a maneira como a humanidade resolve seu problema central – produzir e reproduzir a vida.
E quais as formas de produção e reprodução da vida que correspondem a essa estrutura social de classes? Colocando a questão de maneira bastante resumida e quase simplista, pois não é objetivo deste artigo abordar o tema, sabemos que os homens produzem organizados em classes que, no capitalismo, se traduzem numa minoria que não trabalha e apenas detém a propriedade dos meios de produção, apropriando-se dos bens produzidos, e numa imensa maioria que produz e gera as riquezas, recebendo em troca um salário que mal repõe sua existência e não resolve sequer a reposição da mão-de-obra, uma vez que, de forma crescente, a imagem do operário e de sua família vai sendo substituída pela do trabalho individual de homens, mulheres e crianças.
A essa estrutura social, no que se refere à questão de gênero, corresponde, a nosso ver, uma forma de organização que transforma a "produção do homem mesmo", que passaremos a chamar aqui de reprodução (sexualidade e geração dos filhos), em questão ligada aos interesses da classe que domina. Essa classe exploradora em sua essência inclui a mulher e os filhos no rol de suas propriedades e impõe ao conjunto da sociedade sua forma de organização familiar de controle da reprodução – uma organização que mantém seus laços com os antigos sistemas pré-capitalistas, nos seus aspectos mais retrógrados, mas cujo papel central, cuja razão de ser, liga-se aos seus interesses de lucro, de controle das riquezas, à manutenção e reprodução de suas formas de dominação.
A "produção dos meios de existir" – que passaremos a chamar de manutenção da vida (comer, vestir, morar, criar os filhos e cuidar dos doentes e idosos) – em vez de ser problema de sobrevivência de toda a humanidade, passa a ser resolvida na espera de cada família, pelo patriarca-provedor e sua esposa-reprodutora. Assim como a humanidade chegou a uma situação de contradição antagônica entre a produção social e a apropriação privada dos meios de produção, também a reprodução – que deixou de ser questão coletiva, como nas sociedades primitivas, para se tornar um assunto gerido segundo os interesses da classe dominante e da manutenção da vida – deixa de ser problema coletivo, passando a ser uma questão privada. Ao assumirem o controle econômico, político e ideológico da sociedade, as classes impõem também o seu modelo de produção e reprodução da vida, segundo seus interesses e necessidades.
Vemos os exemplos máximos desse controle no casamento civil, que nada mais é do que uma regra estabelecida pelas classes dominantes sobre como os indivíduos devem se acasalar e ter filhos, nas prescrições da igreja, que impede o casamento de seus representantes para evitar herdeiros, no direito à pernada dos senhores feudais, no “uso” das escravas pelo senhor e, hoje, nas políticas de controle da natalidade e das novas tecnologias na área da reprodução humana, entre outros.
“Através do casamento civil, os dominantes regulam como se deve acasalar e ter filhos”.
Marx afirma em O Capital: “Cada uma das épocas históricas da produção social tem suas próprias leis de população, que só se aplicam a ela e que têm um valor histórico. Somente as plantas e os animais têm leis de população abstratas e imutáveis, se não contarmos aí com a influência humana”. Essa afirmação pode ser uma importante pista a nos levar – fazendo frente aos alarmistas malthusianos de nosso tempo –
Correntes feministas
Podemos situar três vertentes principais, entre aquelas, que convivem pacífica ou litigiosamente com a visão emancipacionista, no cotidiano da luta contra a opressão em nosso país: a primeira, sem ordem de importância, embora reconheça a questão de classes, subestima-a em detrimento das questões de gênero (os partidos são machistas, não são instrumentos para resolver a opressão de gênero; as mulheres, por serem as mais oprimidas, são sempre mais revolucionárias que os homens; e, somente quando prevalecer a maneira feminina de ver o mundo, será possível uma sociedade igualitária etc). Esta visão, embora defenda a necessidade de participação nas lutas políticas não específicas, o faz de forma guetizada, sem a perspectiva dos inimigos a combater, privilegiando lutas intestinas contra os homens dentro do movimento geral. Termina por ser agente de divisão e preconceito. Não obstante tenham o dom de não secundarizar a questão da mulher, perdem a perspectiva de classe e terminam, na prática, negando o socialismo, na medida em que lhe atribuem tantos defeitos machistas que o tornam "inviável".
A segunda nega simplesmente as classes, reconhecendo apenas a questão de gênero (nem capitalismo nem socialismo, o feminismo somente é a solução; o que domina o mundo é o patriarcado, e não a exploração de classes). Bastante em voga com a crise do socialismo – mais um sistema patriarcal, segundo suas seguidoras –, esse movimento dedica-se apenas ao exclusivamente feminino, rejeita a atuação política e partidária, definha o movimento num beco sem saída, restrito (felizmente) a um grupo de eleitas. Sua perspectiva acaba sendo carregada de existencialismo e misticismo, encerrados no alcance da vida de cada um – viver prazerosamente.
Finalmente, a terceira vertente nega a questão de gênero e vê apenas a luta de classes, negando a especificidade e a necessidade estratégica da luta feminina (é só resolver as questões econômicas, a miséria e a fome, o resto é mera decorrência, mera questão de hábitos que virão automaticamente etc.). De tradição histórica entre nós, de uma época em que a luta feminina era vista de forma utilitarista para aumentar os contingentes numéricos de lutadores, ela tem fôlego curto, restrito aos períodos de grandes mobilizações, diluindo-se no conjunto das lutas populares ou caindo no fisiologismo dos interesses imediatos, despolitizados. Seu arcabouço de idéias não consegue resistir ao contato com o cotidiano de opressão vivido pelas mulheres, na medida em que não responde às suas expectativas de libertar-se definitivamente dessa opressão específica.
É necessário lembrar ainda que, embora todas elas, em última instância, possam ser reduzidas a uma análise biologicista da origem da opressão, isso é verdadeiro apenas em última instância, pois na prática, em suas propostas de luta e em suas formulações, apresentam características que trazem importantes desdobramentos no campo da ação política e no campo teórico. Isso se expressa tanto nas diversas propostas organizativas existentes no movimento, como no grande arsenal de textos e livros produzidos para defender a tese de que é preciso construir uma teoria inteiramente nova para fazer avançar o feminismo, pois todas as existentes, e logicamente o marxismo é o mais visado, não dão conta da questão da mulher. ao desvendamento das leis populacionais próprias de cada modo de produção e, mais do que isso, identifica quais as leis próprias do crescimento populacional, na atual fase do desenvolvimento capitalista. Mas, sejam quais forem as consequências desse desvendamento, certamente encontraremos a opressão de gênero e o controle das classes dominantes sobre a reprodução, como um mecanismo fundamental de atuação dessas leis, nas sociedades baseadas na opressão de classe e gênero.
Certamente, já poderemos adiantar que nessas sociedades não existe qualquer indício de se adequar o crescimento populacional aos interesses de homens e mulheres produtores, tampouco à preservação do planeta e da humanidade, apesar do alto desenvolvimento tecnológico e científico alcançados. O que existe é a tentativa de submissão desse crescimento aos interesses do modelo dominante – o imperialismo neoliberal.
No que concerne à manutenção da vida, embora a produção se amplie enormemente – o suficiente para atender às necessidades antigas e novas de toda a humanidade –, o acesso a essa produção é barrado, não só pelo impedimento de acesso à renda, como também pelos mecanismos da opressão de gênero, que mantêm as tarefas ligadas ao uso dessa produção – alimentação, vestuário, moradia, criação e formação das crianças – como responsabilidades a serem assumidas de maneira privada. A liberação da mulher desses encargos é condicionada às possibilidades de compra de bens ou serviços que os substituem – o que é barrado em grande parte às classes exploradas, além dos mecanismos adicionais de exploração serem baseados na opressão de gênero, com a entrada da mulher no mercado de trabalho em condições de desigualdade.
As condições de desenvolvimento industrial, tecnológico e científico aqui, como na reprodução, já permitem a solução dos problemas de manutenção da vida, no âmbito da grande indústria, em grande escala socializada, mas não podem ser resolvidos dessa forma pelas classes dominantes, cuja ideologia – reflexo de seus interesses – necessita encarar esse aspecto da vida como questão privada, sujeita a seu controle direto, assim como suas posses (casa, filhos, escravas domésticas, esposas etc). Para o capitalismo, bem mais interessante do que produzir grandes máquinas
Opinião de Marx
Se quisermos enfrentar o desafio de deslindar as relações entre a luta pela construção do socialismo e a emancipação da mulher, o caminho para isso deve começar pela busca do que disseram, a esse respeito, aqueles que pela primeira vez afirmaram que a aventura humana de alcançar o comunismo era uma aventura possível.A Ideologia Alemã é um dos textos de Marx que melhor expressa seus estudos sobre o materialismo histórico, por isso não será demais nos estendermos um pouco na exposição das idéias nele contidas, ao procurarmos abordar as origens da opressão e a localização da questão de gênero no conjunto de suas análises:
Ao afirmar: (…) "Ali onde termina a especulação, na vida real, começa também a ciência real" e: no lugar de uma filosofia independente da vida real, "surge um compêndio dos resultados mais gerais, abstraídos do estudo do desenvolvimento histórico dos homens" Marx relaciona algumas dessas "abstrações", começando pela história, e aí chegamos à questão de gênero. "O primeiro fato histórico", diz Marx, "é a produção dos meios indispensáveis à satisfação das necessidades" (comer, beber, morar, vestir-se etc.), (…) "O segundo é que a satisfação desta primeira necessidade (…) conduz a novas necessidades." (…). "O terceiro fator que aqui intervém de antemão no desenvolvimento histórico é que os homens que renovam diariamente sua própria vida, começam ao mesmo tempo a criar outros homens, a procriar: a relação entre o homem e a mulher, entre pais e filhos, a família. Esta família, que a princípio constitui a única relação social" (…). E Marx conclui: "Estes três aspectos da atividade social não devem ser considerados como três fases distintas, senão que intimamente ligadas, como três aspectos (…) que vêm existindo desde o princípio da história e desde o primeiro homem e que, sem dúvida, ainda hoje seguem regendo a história".
Outro momento da obra de Marx e Engels, importante nessa discussão, refere-se à divisão de trabalho: "A primeira grande divisão de trabalho nas sociedades primitivas", afirma Engels, "e isto se reafirma nos estudos da antropologia recente, é a divisão sexual do trabalho". Divisão de trabalho e propriedade privada são termos idênticos: um deles diz, com referência às atividades, o mesmo que o outro, com referência ao produto" (6). E mais, ao falar das sociedades primitivas, anteriores às classes, Engels coloca assim essa divisão sexual do trabalho:
"A divisão do trabalho é espontânea, só existe de sexo a sexo. O homem vai à guerra, se dedica à pesca e providencia o necessário para isso, assim como a matéria-prima para a alimentação. A mulher cuida da casa, dos alimentos e das vestes, cozinha, fia e cose. Cada um é dono de seus domínios, o homem na selva, a mulher na casa. Cada um é proprietário dos instrumentos que elabora e usa: o homem, de suas armas, de seus apetrechos de caça e pesca; a mulher, de seus utensílios caseiros" (7). de lavar, e ter de misturar suas roupas finas à da "gentalha", é produzir e criar a demanda das máquinas domésticas, personalizadas, vendidas uma a uma, e ter até lavanderias de luxo para pessoas de fino trato.
“As mudanças exigidas pela mulher são tão universais quanto as da luta de classes”.
A classe operária em seu conjunto, ao ser a principal interessada em pôr fim à propriedade privada dos meios de produção, não resolverá definitivamente esse problema, sem atacar os outros pilares da antiga estrutura, tomando para si, segundo seus interesses igualitários, o controle da reprodução. Só então, libertará a sua vida privada dos estereótipos e padrões opressores e conquistará seu direito à autodeterminação, no terreno da vida familiar e afetiva, podendo experimentar uma imensa gama de sentimentos, vivências e crescimento como ser humano, somente possíveis quando a sociedade como um todo estiver livre do jugo dos papéis de dominador e dominado, e a mulher, em particular, estiver liberta do papel que lhe é imposto, de simples reprodutora de mão-de-obra e escrava desse encargo, retirando da esfera privada tudo o que diz respeito à manutenção da existência.
Quando Engels se refere à família no comunismo, apesar de certo tom de utopia que possa exprimir, reflete de forma clara essa concepção: "As relações entre os sexos passará a ter um caráter puramente privado, pertencente somente às pessoas que tomam parte delas, sem o menor motivo para a ingerência da sociedade. Isso é possível em função da supressão da propriedade privada e da educação das crianças pela sociedade, com a qual se destroem as bases do matrimônio atual ligadas à propriedade privada: a dependência da mulher em relação ao homem e dos filhos em relação aos pais" (4).
Sob essa ótica, a questão da mulher não se inscreve, como uma série de lutas setoriais, apenas na esfera dos direitos humanos, nem diz respeito somente a elas, mulheres. As mudanças que ela exige estão na esfera do relacionamento individual, das leis, do Estado, da ciência, da cultura, das artes, das relações de produção, de todas as estruturas sociais, e é tão universal como a questão de classe.
Assim como no capitalismo surge a classe operária, coveira do próprio capitalismo, surgem também as condições para o fim da estrutura patriarcal e machista. Apesar da formulação pouco precisa de Marx e Engels, ao falarem do proletário e sua mulher, como se não existisse a mulher proletária, eles traduzem bem essa realidade: "As condições de existência da velha sociedade estão já abolidas nas condições de existência do proletariado. O proletariado não tem propriedade, suas relações com a mulher e os filhos nada têm em comum com as relações familiares burguesas. O trabalho industrial moderno, o moderno jogo do capital, que é o mesmo na Inglaterra, na França, nos EUA, na Alemanha, despoja o proletariado de todo caráter nacional. As leis, a moral, a religião são para ele meros prejuízos burgueses, atrás dos quais se ocultam outros tantos interesses da burguesia" (5).
Assistimos hoje, a fenômenos que nos demonstram o grau de contradição a que chegou essa estrutura de gênero no capitalismo e de que forma se criam as condições para a superação da opressão de gênero, como a divisão de heranças dentro das famílias de grandes proprietários (o processo de herança do grupo Bradesco, por exemplo, com a morte de Amador Aguiar, as disputas familiares no grupo Pão de Açúcar e outros), a possibilidade de confirmação de paternidade, com os modernos testes genéticos, como no caso de Pelé, por exemplo, ou dos bancos de espermas para inseminação artificial, entre outros.
Ao lado desses fenômenos, a classe operária vai ganhando consciência de que é explorada, enquanto classe, torna-se classe para si – um aspecto subjetivo da luta de classe –, mas deve também ganhar a consciência desses "meros prejuízos" e de que dentro dela existe uma outra opressão, intimamente ligada a essa primeira: a opressão de gênero. Ao venderem sua força de trabalho, suas famílias também passam a ser propriedades do capital, vivem e se reproduzem de acordo com os interesses ditados pela burguesia.
As mulheres, ao arcarem com todos os desgastes e aflições do controle que sofrem sobre sua capacidade reprodutiva e com a manutenção da vida – como se isso fosse tarefa sua –, pagam um tributo bastante alto por isso, quando, na verdade, estão atendendo a um conjunto de necessidades que são de toda a sociedade. Libertar-se dessa contradição, resgatar o caráter privado da reprodução, como vivência individual e prazerosa e tornar sociais todos os encargos da manutenção da vida, é libertar homens e mulheres de cadeias seculares que consomem e degradam a vida humana.
Notas
(1) Carta de Engels a Bloch.
(2) Engels, F. Origem da Família, da Propriedade e do Estado. Prólogo, 1884, Claridad, 1971.
(3) Marx, K. O Capital.
(4) Engels, F. “Fundamentos do Comunismo", 1847. Obras Escolhidas, Vol. I.
(5) Marx, K. Engels, F. "Manifesto Comunista", Obras Escolhidas, Vol. I.
(6) Engels, F. "Feurbach. Oposição entre as Concepções Materialista e Idealista", Obras Escolhidas, Vol. I.
(7) Engels, F. Origem da Família, da Propriedade e do Estado. Claridad, 1971.
EDIÇÃO 26, AGO/SET/OUT, 1992, PÁGINAS 42, 43, 44, 45, 46, 47