Biodiversidade: Novo alvo do imperialismo
Até pouco tempo o termo biodiversidade era de uso quase exclusivo daqueles que se dedicavam ao estudo das ciências biológicas. Nas vésperas da Rio1992 esta palavra ganhou espaço na mídia e, digamos assim, caiu na boca do povo. À primeira vista, este fato não merece maiores comentários. No entanto, esta popularidade expressa uma mudança significativa no conceito da palavra. Até então, biodiversidade significava apenas a variedade das espécies vivas existentes.
Hoje, ela é sinônimo de riqueza, e não por acaso governos do Norte e do Sul, ecologistas e empresários tenham incorporado o termo em seus vocabulários. Isto não significa, porém, que a biodiversidade tenha se alterado nestes últimos três anos de discussões preparatórias da Rio-1992. O que alterou foi a consciência dos países ditos do Terceiro Mundo, ricos em espécies animais e vegetais, sobre o papel que o uso dessas espécies tem exercido no desenvolvimento dos países ricos praticamente desde a colonização, e que se intensificou com o crescimento da indústria química e farmacêutica no nosso século.
Basta lembrar que portugueses e franceses disputavam o pau-brasil das matas brasileiras, insumo essencial para a indústria têxtil européia no século XVI. O caráter predatório dessa ação colonialista teve efeito dramático na Amazônia no começo do nosso século. A região praticamente detinha o monopólio mundial da produção de borracha natural, e fundamentou nele uma economia florescente que teve final melancólico. Os ingleses aprenderam com os seringueiros brasileiros a extrair o látex, e levaram mudas da árvore para grandes fazendas em suas possessões coloniais na Ásia. Com isso, rapidamente suplantaram a produção amazônica que, depois de 1910, foi perdendo rapidamente sua posição no mercado mundial, erodindo as bases da riqueza que começou a se formar na Amazônia.
“As 1,4 milhões de espécies conhecidas são apenas 1/3 dos seres vivos”.
Hoje, com o desenvolvimento da biotecnologia, os conhecimentos dos povos locais sobre as propriedades das plantas facilmente transformam-se em produtos de grande valor mercadológico.
Dados do Fundo Internacional para o Progresso Rural (Rafi), sediado em Otawa, Canadá, mostram que as comunidades indígenas e de agricultores locais deixam de receber cerca de US$ 3 milhões anuais, referentes, apenas, aos direitos de propriedade intelectual que as indústrias farmacêuticas e de pesticidas não pagam. Patt Money, diretor do Fundo, acusa os países desenvolvidos de estarem cometendo "pirataria intelectual". Por outro lado, dados do United States Office of Technology Assesment mostram que de 1986 a 1990 a média anual de vendas de produtos biotecnológicos foi de US$ 8,5 bilhões (equivalente a mais de seis meses de exportações brasileiras, quatro vezes o PIB de Madagascar e praticamente o PIB do Equador), sendo US$ 5,95 bilhões derivados do mercado de biofarmacêuticos. Calcula, também, que este mercado deve crescer a uma média de 9% ao ano até o ano 2000, quando deverá estar movimentando cerca de US$ 20 bilhões. Este mercado é dominado pelas multinacionais dos países desenvolvidos, que detêm a tecnologia para beneficiar a matéria-prima proveniente das florestas tropicais, quase todas localizadas em países em desenvolvimento. Brasil, Colômbia, México e Indonésia são os países mais ricos em biodiversidade. Além destes, Peru, México, Equador, Zaire e Madagascar completam o celeiro que detém 50% das espécies já conhecidas pelo homem. No entanto, os cientistas acreditam que as 1,4 milhões de espécies já descritas representem apenas um terço dos seres vivos que habitam o planeta, o potencial desse celeiro também é enorme.
Países pobres e ricos já estão convencidos da necessidade de preservar essas florestas, e os motivos não param na biodiversidade. Além da riqueza representada pelo material genético dessas espécies para a indústria de medicamentos e para a produção de alimentos, a existência desses bolsões verdes é associada – embora não haja consenso entre os cientistas – à manutenção do clima terrestre, da concentração de CO2 na atmosfera, da produção de oxigênio.
O esforço para conciliar os interesses contraditórios envolvidos nesta questão desembocou na Convenção sobre a Biodiversidade, discutida desde 1989, em inúmeras reuniões, por representantes governamentais do Grupo dos 77 (que engloba os principais países em desenvolvimento) e do Grupo dos 7 (formado pelos sete países mais ricos), e por entidades não governamentais de todos os países.
Essas reuniões foram marcadas por profundas divergências entre os ricos e os pobres, resumidas pelo biólogo italiano, Francesco di Castri, que preside o Programa Científico Mundial da Unesco, em entrevista a O Estado de São Paulo: "as divergências tiveram início quando os países ricos, que começaram a utilizar esse patrimônio com ajuda da biologia molecular, acharam que tudo que era material genético constituía propriedade universal e deveria ser conservado em estado natural. Os países mais pobres", continua, "começaram a defender a soberania das regiões onde existe esse material genético e quiseram uma compensação pelo uso de sua diversidade biológica".
O documento da Convenção sobre a Biodiversidade, produzido na última reunião preparatória em Nairóbi, em maio de 1992, tentou administrar essa contradição. Seus principais artigos, os mais polêmicos, propõem um financiamento especial aos países em desenvolvimento para a conservação da biodiversidade; o acesso justo e equitativo dos países em desenvolvimento à tecnologia de conservação da diversidade biológica e a transferência da tecnologia baseada em recursos biológicos existentes nos países em desenvolvimento. Além disso, a Convenção dá autoridade aos Estados para controlarem, soberanamente, o acesso aos seus recursos genéticos existentes em seus territórios.
Dispõe também que os Estados devem cooperar para que as leis nacionais e internacionais sobre patentes e outros direitos de propriedade intelectual não contrariem os objetivos da Convenção.
Apesar de ter sido elaborado com a participação de representantes de todos os países, a Convenção de Nairóbi causou polêmica na Rio1992, quando o presidente norte-americano George Bush se recusou a assiná-la. Alegando que a tecnologia norte-americana é desenvolvida pelo setor privado, o governo norte-americano está de fato preocupado com o futuro daquelas indústrias que, hoje, em meio a uma crise profunda, representam sua força de desenvolvimento: a indústria dos produtos tecnológicos, entre as quais se destaca a indústria farmacêutica.
A radicalização da posição norte-americana foi criticada por muitos e, aparentemente, isolou os EUA das outras nações. Mesmo porque, como diz a jornalista, brasilianista e coordenadora dos seminários sobre o Brasil na Universidade de Columbia (NY), Fay Haussman, a Convenção não cria o monopólio dos países pobres sobre o patrimônio genético. "Nos termos da Convenção da Biodiversidade, que, além do mais, permite às nações patentearem seus recursos genéticos", diz ela, "os custos poderiam até frear as pesquisas de indústrias estrangeiras com amplo capital, se as cláusulas financeiras da Convenção não fossem suficientemente opacas para permitirem, por exemplo, ao Japão e à Inglaterra assinar o controvertido documento com a quase certeza de poderem modificá-lo mais tarde".
“O imperialismo pensa que todas as riquezas do mundo devem estar à sua disposição”.
O texto do documento foi muito criticado. Não agradou completamente nem aos representantes governamentais nem aos ambientalistas, tanto do Norte como do Sul. Não chega, contudo, a ser um "documento de última hora", como quer o ministro José Goldemberg que, aliás, deixou dúvidas quanto à intenção do governo brasileiro, suspeito de tentar um acordo com os norte-americanos para dar um jeitinho nos artigos que não agradavam.
Apesar das críticas, o documento de Nairóbi é um passo inicial que deve ser desenvolvido para que não continue acontecendo, já no final do século XX, a mesma espoliação colonialista dos recursos que acontecia na época do descobrimento do Brasil. Tem gente que, historicamente ligada aos interesses do imperialismo, é radicalmente contra a Convenção. O Senador Roberto Campos, do PDS/MS, que já foi conhecido como Bob Fields devido a seu servilismo ante os interesses dos EUA, velho adversário do controle nacional dos recursos minerais, toma, mais uma vez, posição contrária aos interesses nacionais. "O mundo enriqueceu sem explorar a biodiversidade brasileira", escreveu ele num artigo a O Estado de São Paulo, e "é improvável que empobreça se lhe negarmos acesso aos bancos genéticos".
Assim, tudo indica que, além das questões científicas e éticas envolvidas com o aproveitamento dos recursos genéticos (como por exemplo o patenteamento dos seres vivos), poderá voltar a repetir-se o mesmo confronto entre o imperialismo e as nações dotadas de recursos naturais que existiu no passado. Durante a crise do petróleo, nos anos 1970, quando os países produtores resolveram aumentar o preço do barril, a revista The Economist registrou o sentimento generalizado dos países imperialistas quanto ao direito dos países pobres sobre seus recursos naturais. Trata-se, disse a revista, de "um punhado de fedayin, que se sentem no direito de arrasar o mundo só porque aconteceu de viverem em areias que guardam o ouro negro", Ora, os defensores dos interesses do imperialismo dizem que os estoques genéticos fazem parte do patrimônio da humanidade – eles repetem o mesmo sentimento de rapina que leva o imperialismo a ver, em todas as riquezas existentes em qualquer canto do mundo, uma riqueza que só pode estar à sua disposição, a despeito dos interesses das populações que vivam nos territórios onde essas riquezas estão localizadas.
Verônica M. Bercht – bióloga e jornalista
EDIÇÃO 26, AGO/SET/OUT, 1992, PÁGINAS 63, 64, 65