Quantas pessoas são demais para o planeta?
Muita gente dizia, na Rio-1992, que o crescimento da população ameaça a vida no planeta. Entretanto, os dados mostram que – ao contrário do que pensa o conservadorismo neomalthusiano – o crescimento ameaça, na verdade, o sistema capitalista, pois a Terra tem capacidade para receber muito mais gente.
“Quantas pessoas são demais para o planeta?” Essa pergunta foi feita pela indiana Vandana Shiva numa reunião do “Planeta Fêmea” em resposta ao oceanógrafo Jacques Cousteau que, na presença de chefes de Estado, defendeu na Rio-1992 o controle da natalidade como forma de defesa do meio ambiente.
A Rio-1992, considerada a maior reunião de cúpula jamais realizada, trouxe chefes de Estado, representantes de governos, ambientalistas e organizações não governamentais para debater, durante quase duas semanas, formas de eliminar as agressões à natureza e, principalmente, discutir o modelo de desenvolvimento dominante em nossos dias. O controle da emissão de gases poluentes na atmosfera, a divisão entre ricos e pobres na apropriação (pelos ricos) da extrema riqueza vegetal e animal existente nas florestas (dos pobres), a defesa das florestas e das espécies vivas ameaçadas de extinção, foram alguns dos principais temas debatidos naquele encontro.
Um desses temas é particularmente importante devido às conotações ideológicas que revelam os limites da visão que a burguesia e seus ideólogos têm dos grandes problemas enfrentados em nossos dias pelas populações pobres do mundo. Trata-se da questão do controle da natalidade encarado por muitos como forma de conter em níveis toleráveis as agressões contra o meio ambiente.
Muitos temem que a explosão demográfica inviabilize a vida social organizada na Terra. Trata-se da atualização de uma velha tese de quase 200 anos: ela surgiu na ciência econômica em 1798 através do Ensaio sobre os princípios da população, do sacerdote inglês Thomas Robert Malthus. Para ele, a população cresce geometricamente e a produção de alimentos matematicamente. Em certo momento, pensa, a produção de alimentos será incapaz de atender a todas as bocas, daí a necessidade de conter os nascimentos, fazendo o crescimento populacional acertar sua velocidade com a lentidão da agricultura.
“Em defesa do capital “modernizam” uma teoria que já nasceu velha há 200 anos”.
“Nós já temos um planeta completamente ocupado”, disse às vésperas da Rio1992 o técnico norte-americano Noel Brown, diretor do programa das Nações Unidas para o meio ambiente (PNUMA), refletindo esse forte consenso entre políticos conservadores e ambientalistas. Mostafa Tolba, diretor do PNUMA, William Draper III, administrador do PNUMA, a revista italiana L’Espresso, o Dalai Lama, representantes do BIRD e da Comunidade Econômica Européia, os governos norte-americanos e europeus, todos manifestaram preocupações semelhantes. O BIRD anunciou, em junho, uma ilha de crédito para programas de controle da natalidade nos países pobres, enquanto Carlo Ripa di Meana, comissário da Comunidade Européia para o Meio Ambiente, propôs uma conferência mundial para analisar os problemas de superpopulação.
Lester Brown, do Worldwatch Institute, sediado em Washington, e coordenador dos livros Qualidade de Vida – Salve o Planeta!, versões 1990, 1991 e 1992, faz uma defesa explícita das teses de Malthus, e diz que a expansão agrícola mundial estacionou desde 1981, a produção mundial de grãos cresceu 1% entre 1984 e 1991, e a população cresceu 2%, levando a uma queda de 16% na produção mundial per capita de grãos. Apesar de não ter previsto o "enorme potencial da tecnologia em desenvolvimento para elevar a produtividade do solo", diz ele, "Malthus estava correto ao antecipar a dificuldade para expandir a produção de alimentos tão depressa quanto ocorria com o crescimento da população".
No Brasil, posições semelhantes são defendidas por muita gente, no governo, entre os políticos das classes dominantes, nos meios intelectuais e acadêmicos e na imprensa. O engenheiro Aldo Vieira Rosa, ex-professor da Unicamp e professor em Stanford, nos EUA, resumiu num artigo a essência da posição neomalthusiana, repetindo: "quanto mais pobre um povo, mais rapidamente cresce a população. Quanto mais cresce a população, mais pobre fica o povo", num círculo vicioso que pode levar "à instabilidade e à catástrofe".
“Onde predomina a fome existe uma minoria controlando a economia”
O ensaio de Malthus continua desempenhando em nosso tempo papel ideológico semelhante ao que fez seu sucesso quando foi publicado, há quase duzentos anos, embora o caráter não científico de seus argumentos tenha sido denunciado desde então. O economista inglês David Ricardo, um dos principais representantes científicos do pensamento econômico da burguesia, contemporâneo e amigo de Malthus, recusava a argumentação do sacerdote anglicano por ser cientificamente inconsistente.
Karl Marx, mais tarde, fez uma crítica arrasadora não só dos argumentos, mas também da atitude intelectual de seu autor. Na História Crítica da Teoria da Mais-Valia, ele acusou Malthus de plagiar (para pior) os argumentos do economista escocês James Anderson, um estudioso da agricultura. Além disso, como um "autêntico sacerdote da igreja anglicana", diz Marx, Malthus "era um sicofanta profissional da aristocracia latifundiária e um defensor econômico de suas rendas, sinecuras, sua dissipação e sua crueldade". Ele só "abraça a defesa dos interesses da burguesia industrial na medida em que esses interesses coincidem com os da propriedade territorial, com os da aristocracia.
Isto é, na medida em que são contrários à massa do povo, ao proletariado. Mas quando os interesses da burguesia e dos latifundiários se separam e se enfrentam, ele põe-se ao lado da aristocracia contra a burguesia". A única consequência prática deduzida por Malthus, diz Marx, "é a defesa das tarifas alfandegárias protetoras reclamadas pelos latifundiários em 1815", além de fornecer uma "nova justificação da miséria dos produtores diretos e uma nova apologia dos exploradores do trabalho".
Raras vezes Marx foi tão duro na crítica a um autor quanto em sua denúncia das limitações dos grosseiros argumentos desse "miserável autor". "Uma fundamental vulgaridade quanto às idéias: eis aí o que caracteriza Malthus", escreveu. Ele "procurou acomodar a ciência, não a um ponto de vista emanado da própria ciência, por errado que possa ser, mas a um critério ditado por interesses estranhos e alheios a ela". Assim, escreveu, "creio que não é injusto aplicar-lhe o qualificativo de desonesto". Sua obra, Sobre a População, "não é, em sua primeira edição, na qual não há uma única palavra científica nova, mais que um impertinente sermão de capuchinho".
“Existe potencial para alimentar 24 bilhões de pessoas no ano 2000”.
O primeiro mito da matemática malthusiana é o da inevitável lentidão do crescimento agrícola. Um estudo da Organização das Nações Unidas para a alimentação e agricultura (FAO), de meados de 1991, mostrou que em 90 países em desenvolvimento, menos da metade do potencial das terras cultiváveis é explorado. Assim, apenas com o cultivo dessas terras não aproveitadas, a produção mundial poderia ser aumentada. Segundo a publicação Global Outlook 2000, da ONU, ela cresceu a taxas anuais de, no Mundo, 3% para 1960-1970, 2,4% para 1970-1980, e 2,1% para 1980-1988. Nos países ricos, essas taxas foram de 2,2% para 1960-1970, 2,0% para 1970-1980, e 0,6% para 1980-1988. Nos países pobres do chamado Terceiro Mundo, as taxas foram um pouco mais elevadas: 3,5% para 1960-1970, 3,0% para 1970-1980, e 3,2% para 1980-1988.
Os principais obstáculos ao aumento na produção de alimentos são a concentração da posse da terra, no Terceiro Mundo, e a forma como a produção agrícola está organizada no mundo. A África, por exemplo, poderia ser auto-suficiente em alimentos, diz um estudo do CEDOH (Centro de Documentação de Honduras), e tem "potencial para albergar uma população muito maior do que no presente", diz o Relatório da Comissão Sul. A ONU concorda com essa avaliação, e calcula que aquele continente "poderia facilmente alimentar uma população duas vezes e meia maior que a atual". Onde predomina a fome, diz o estudo do CEDOH, "existe um denominador comum – uma poderosa minoria exercendo um controle férreo sobre a produção de alimentos e outros recursos econômicos:
O aumento da produção agrícola nos países pobres depende, fundamentalmente, da reforma agrária e da democratização do acesso à terra, como denuncia o CEDOH e reconhece o Relatório da Comissão Sul.
A injusta estrutura fundiária do Brasil é um exemplo gritante dessa verdade. Para o núcleo de análise de conjuntura 13 de Maio – NEP, é o capitalismo e o latifúndio que criam o "desemprego da terra no Brasil". "Em um país com as vantagens territoriais brasileiras, não se pode aceitar uma produção de grãos (alimentos) que não passa de 60 milhões de toneladas por ano", diz em documento de 1991. "Considerando-se apenas as condições naturais oferecidas, o Brasil poderia produzir pelo menos 400 milhões de toneladas de grãos por ano", enfatiza. Seria necessário, somente, colocar em uso as terras subtraídas à produção agrícola. Segundo o IBGE, em 1985, dos 376,7 milhões de hectares de área agrícola do Brasil, apenas 52,3 milhões (isto é, 14%!) eram efetivamente usados.
Além disso, no Brasil, em 1987-1989, vários produtos agrícolas tinham produtividade inferior à média mundial, e muito abaixo da produtividade dos países ricos. O arroz, por exemplo, produziu 1,9 tonelada por hectare, enquanto a média mundial foi de 3,3 toneladas. Com 0,44 toneladas de feijão por hectare, o Brasil ficou abaixo da média mundial (que foi de 0,58 toneladas), e muito abaixo dos EUA (que foi de 1,65 toneladas, isto é, quase quatro vezes mais feijão por hectare do que no Brasil).
O poderoso obstáculo social à expansão na produção de alimentos no Brasil, portanto, é o latifúndio, e não o aumento da população. Em 1985, os estabelecimentos rurais com área superior a mil hectares eram apenas 50.150 (0,9%) do total, mas tinham quase a metade (44%) de todas as terras, isto é, monopolizavam uma área de 164,7 milhões de hectares, dos quais apenas 8,6 milhões eram cultivados – isto é, 5,2% da área total do latifúndio. Este é o verdadeiro e dramático retrato do desemprego da terra no país! Para corrigir esta distorção, o documento Reforma Agrária: uma solução para a crise brasileira, de 1983, defendia a distribuição de lotes a 6 milhões de famílias, no prazo de 10 anos, alcançando o total de 180 milhões de hectares, elevando a extensão da área de lavouras para cerca de 100 milhões de hectares, "o que estaria mais de acordo com a nossa superfície territorial, e nos aproximaria da área de cultura de países de grandeza territorial semelhante (Estados Unidos, União Soviética, China e Índia), todos eles com áreas de cultura maiores que 100 milhões de hectares".
O Brasil é apenas um exemplo gigantesco do que poderia acontecer com a produção agrícola mundial se os interesses dos grandes produtores mundiais de alimentos (os EUA e a Comunidade Européia) não impedissem sua expansão. "A concorrência entre estes dois blocos", diz a análise do 13 de Maio – NEP, "poderia ser mais tumultuada ainda se o Brasil resolvesse dobrar a sua produção de grãos". Do ponto de vista do desenvolvimento tecnológico, contudo, nada impede esse aumento na produção de alimentos.
Esses dados mostram a inconsistência das teses sobre a estreita e desfavorável correlação entre produção de alimentos e crescimento demográfico. Em 1984, o Banco Mundial mostrou que, nas condições atuais, se a produção mundial de grãos passar da média de então, de duas toneladas por hectare, para cinco toneladas, algo considerado perfeitamente possível com as condições técnicas já disponíveis, o mundo poderia abrigar 11,5 bilhões de pessoas – o dobro de sua população atual. A ONU, por sua vez, demonstrou que, melhorando as condições da agricultura, com o uso de pesticidas, fertilizantes etc, ela poderia alimentar uma população quatro vezes maior que a projetada para o ano 2000 – algo em torno de 24 bilhões de pessoas.
“Vinte e seis por cento das mulheres no mundo foram esterilizadas. E 34% usam anticoncepcionais”.
A capacidade de crescimento da produção agrícola, portanto, é muito mais elástica do que Malthus supunha. Atualmente, dos 13 bilhões de hectares da superfície da Terra, pouco mais de um décimo é cultivado. Como, segundo os especialistas, 11% da superfície dos continentes são aráveis, e 24% potencialmente aráveis, nas condições técnicas atuais a superfície da Terra dedicada à agricultura poderia ser multiplicada por três!
O crescimento da população, nas últimas décadas, revela a fragilidade do outro mito daquela matemática enganosa, o do aumento explosivo e incontrolável da população. Ao contrário do que apregoam os conservadores, hoje há uma visível desaceleração no incremento populacional em quase todos os países – exceto na África e nas nações muçulmanas.
A população mundial, em 1991, alcançou a marca de 5,38 bilhões de seres humanos e as previsões sobre sua evolução futura variam muito. Alguns pensam que chegaremos ao ano de 2025 com 8,5 bilhões, outros dizem que chegaremos a 2050 com 10 bilhões, ou 12 bilhões em 2100. Entre 1980 e 1985, a população mundial cresceu à taxa anual de 1,7%, e há uma queda generalizada na fertilidade das mulheres, principalmente no chamado Terceiro Mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde, hoje as mulheres em idade fértil do Terceiro Mundo têm em média 3,3 filhos, contra os 6,1 que tinham há duas décadas, uma rapidez inédita na diminuição no número de filhos: nos EUA, foram necessários 58 anos para uma queda semelhante.
Nos países pobres, as tendências demográficas variam enormemente. Na Ásia, o crescimento da população já é menor que 2% ao ano, e espera-se que durante os anos 1990 fique perto de 1,2% ao ano na China, de 1,7% no sul da Ásia e no resto da Ásia de Leste, e de 2,9% na Ásia Ocidental. Em grande parte da América Latina essas taxas declinam e espera-se que se estabilizem numa média de 1,9% ao ano na década de 1990. Em contrapartida, na maior parte da África, a tendência é ascendente, com taxas acima dos 3% previstas para esta década na África Subsaariana. Dessa forma, os especialistas esperam que, até o ano 2100 a população mundial deixe de crescer e se estabilize na faixa de 10 a 12 bilhões de pessoas.
No Brasil, a velocidade da desaceleração no crescimento populacional foi medida pelo Censo de 1991, que constatou um total de 146 milhões de habitantes, número sensivelmente inferior aos 153 milhões que se previa. Essa queda é bem maior do que a esperada pelos especialistas. Nessas condições, o Brasil chegará ao ano 2000 com 170 milhões de habitantes, muito menos do que os 205 milhões que alarmavam os neomalthusianos nos anos 1970.
A taxa de fertilidade das mulheres brasileiras reduziu-se pela metade em 30 anos. Em 1960, as brasileiras em idade fértil (dos 15 aos 44 anos), tinham cerca de 6 filhos, em média. Esse número caiu para 4 em 1980, chegando a 3 em 1991. Se continuar assim, a taxa de fertilidade da mulher brasileira será de 2,3 filhos no ano 2000. Essas taxas de fertilidade refletem-se na diminuição da taxa de crescimento populacional que, nos anos 1960, era de 2,9% e hoje baixou para 1,81% ao ano.
Um dos principais fatores dessa queda, acusam os especialistas, é a esterilização de mulheres. No mundo todo, hoje, 26% das mulheres foram esterilizadas, 19% usam DIU, e 15% pílulas anticoncepcionais. No Terceiro Mundo, o número de usuários de métodos contraceptivos alcança, hoje, 381 milhões. Entre 1965 e 1970, eles eram usados por apenas 9% dos casais nos países pobres; entre 1985 e 1990, essa percentagem subiu para 50%, e poderá chegar a 59% no ano 2000, diz um informe da Organização Mundial de Saúde, divulgado em junho de 1992.
Para a demógrafa Elza Berquó, a rapidez na redução dos níveis de fecundidade é a prova da esterilização das mulheres brasileiras. Uma pesquisa do Bemfam mostrou que, em 1986, 66% das mulheres casadas no Brasil, com idades entre 15 e 44 anos, estavam usando algum método anticoncepcional. Destas, 41% já estavam esterilizadas, denunciam os demógrafos George Martine e José Alberto M. de Carvalho.
“O envelhecimento da população traz consequências graves para a sociedade”.
Quando a taxa de fertilidade cai, a população envelhece. Na Europa, atualmente, os maiores de 45 anos já são metade da população. No Brasil, esse envelhecimento é acelerado. Segundo o IPEA, em 2025 o país terá 15% da população com mais de 60 anos de idade, chegando a 34 milhões de pessoas (atualmente, elas são 7,2% da população, ou pouco mais de 10 milhões), e podem-se prever as graves consequências sociais desse aumento no número de idosos numa sociedade que, hoje, já não consegue pagar seus aposentados!
Os argumentos conservadores explicam o baixo nível de desenvolvimento do país pelo crescimento do número de pobres. Assim, dizem ajudar o desenvolvimento ao promover agressivamente o controle populacional. Seu erro é o de não considerar o efeito combinado do desenvolvimento da indústria e da agricultura, nem as repercussões das melhorias no padrão de vida material dos povos sobre seu nível cultural – sobre seus hábitos e comportamentos, inclusive sexuais. Como diz Marx, leis abstratas de população – como os rígidos princípios malthusianos – não se aplicam ao homem, cujo crescimento populacional é condicionado histórica e socialmente. Mesmo para os animais e as plantas, as leis abstratas de população só se aplicam enquanto não há intervenção humana nesses reinos.
São as relações do homem com a natureza, e com os outros homens para a produção dos meios de vida, que determinam o caráter das formações sociais e a dinâmica populacional por elas condicionada. Os meios técnicos que permitem maior eficiência produtiva, a capacidade de acumular bens, a organização do trabalho, as necessidades de mão-de-obra, as formas que, ao longo do tempo, a produção material assumiu – tudo isso condiciona e determina as leis de população.
Os especialistas calculam que os primeiros hominídeos capazes de produzir ferramentas – nossos ancestrais mais antigos, portanto – surgiram há cerca de 3 milhões de anos. Há 100 mil anos surgiu o homem moderno – o homo sapiens dos cientistas. Nesse longo período, em que viviam da caça e da coleta, os homens tinham uma vida natural, como os animais, e sua capacidade de intervenção para transformar a natureza era pequena. O trabalho era duro e arriscado e a vida muito pobre, tão mesquinha que, às vésperas da revolução agrícola do neolítico, ocorrida há uns 10 mil anos, toda a humanidade devia alcançar somente uns 10 milhões de indivíduos, o número de habitantes de uma grande metrópole moderna.
Com o aparecimento da agricultura, a capacidade produtiva do homem cresceu enormemente – e, com ela, a população. Desde então, ela aumentou vertiginosamente. Atingiu a marca dos 250 milhões (25 vezes mais gente do que no começo da revolução agrícola) no início da era cristã; mesmo assim, era um crescimento lento, e levou mais de um milênio e meio para dobrar o número dos homens existentes, que chegou a 500 milhões em 1650.
Até então, as sociedades estavam baseadas principalmente na agricultura, que era rudimentar, extensiva e itinerante, dependente da fertilidade natural do solo, sujeita a catástrofes naturais, com secas e enchentes. O comércio era restrito e as reservas alimentares reduzidas, de forma que os excedentes de uma região muito dificilmente podiam ser transferidos a outras. Assim, a mortalidade permanentemente alta da população decorria da escassez de alimentos, da baixa qualidade de vida, das más condições de higiene e saneamento. Ocorriam surtos de fome e epidemias que, juntamente com as guerras, dizimavam as populações. Fome, guerra e epidemias eram então os três reguladores demográficos, as forças cegas que agiam sobre as populações e freavam seu crescimento.
No século XVIII, porém, ocorreu outra mudança radical: a revolução industrial, que lançou as bases técnicas de um novo modo de produção, o capitalismo. Ela trouxe uma intensificação no comércio mundial, a melhoria dos transportes e condições de armazenagem de alimentos; ajudou a mecanizar a agricultura, que se transformou, multiplicando a produção de alimentos. Em consequência, melhoraram as condições gerais de vida que, aliadas aos progressos da medicina, da vacinação e do saneamento, preveniram doenças como a peste negra (que, na Idade Média, provocou uma catástrofe demográfica na Europa, ao matar cerca de 1/3 de sua população). A mortalidade urbana caiu sensivelmente, disparando o crescimento da população nos países mais adiantados.
Começou então aquilo que os especialistas chamam de transição demográfica. Primeiro, no século XVIII, nos países onde o capitalismo se desenvolveu originalmente. As taxas de mortalidade caíram, a fertilidade continuou alta e não controlada por algum tempo, gerando, diz Guaraci Adeodato A. de Souza, "uma fase de grande crescimento populacional". Muito mais tarde, a partir da Segunda Guerra Mundial, as taxas de fertilidade começaram a cair, primeiro nos EUA e França, e depois nos demais países industrializados. "Essa redução dos níveis de fertilidade fez diminuir os ritmos de crescimento populacional desses países até níveis quase tão baixos quanto os que vigoraram no passado, porém estáveis (com a natalidade e a mortalidade controladas)". Os países ricos levaram assim 150 anos para completar sua transição demográfica.
Em 1830, a população mundial atingiu o primeiro bilhão de seres humanos; mais cem anos, e outro bilhão se somou ao número dos homens, que chegou a 2 bilhões em 1930. Em 1950, éramos 2,5 bilhões na Terra, número que dobrou novamente em 1987, chegando aos 5 bilhões. No fim deste século, prevê-se que a população mundial ultrapassará os 6 bilhões, seiscentas vezes mais gente do que os escassos 10 milhões de adões e evas de 10 mil anos atrás.
Embora baixa, a velocidade de crescimento da população é extremamente desigual no mundo, sendo muito lenta nos países ricos, e mais rápida nos países pobres. Países como a Alemanha e a Hungria, por exemplo, tiveram mesmo uma redução no tamanho de suas populações nas últimas décadas. Assim, o Fundo das Nações Unidas para a População mostra que, em 1990, os países desenvolvidos tinham 23% da população mundial, enquanto os demais países (da América Latina, África e Ásia) tinham 77%. Daqui a 60 anos, em 2050, a participação dos ricos na população mundial cairá radicalmente, ficando com 13% do total, contra 87% dos pobres. Hoje, os países desenvolvidos têm 1,2 bilhões de habitantes, contra 4,2 bilhões de pobres. Especialistas prevêem que, no ano 2000, os desenvolvidos terão 1,3 bilhões, contra 5 dos demais países, num total de 6,3 bilhões para o mundo.
Em 2100, os ricos terão 1,5 bilhões, contra 10,1 bilhão dos pobres, num total de 11,6 bilhões.
O desenvolvimento acelerado do capitalismo a partir do século XVIII contrariou as expectativas de Malthus. Não ocorreu o descompasso entre a produção de alimentos e a produção de novos seres humanos, pelo menos nos países onde o capitalismo industrial teve seu forte impulso inicial. A indústria, num nível de tecnologia ainda baixo, empregava gigantescos contingentes de mão-de-obra. A florescente economia dos EUA foi, aliás, o grande sorvedouro do excesso populacional europeu.
A partir dos anos 50 do nosso século, o alto nível de desenvolvimento material nos EUA e países capitalistas europeus repercutiu sobre seus hábitos, levando a uma mudança na dinâmica populacional. A taxa de mortalidade continuou caindo, e a expectativa de vida alcançou os 80 anos; a taxa de nascimentos reduziu-se na mesma proporção, ou mais. A população dos países ricos estagnou então, ou mesmo entrou em declínio. É esse padrão de crescimento que está se repetindo de certo modo no Brasil de nossos dias. Três fases marcam, assim, a transição demográfica, iniciada no século XVIII. Na primeira, os índices de mortalidade e de natalidade eram altos, e a população cresceu lentamente; essa fase encerrou-se por volta da revolução industrial. Em seguida, a mortalidade diminuiu, mas a natalidade continuou alta, fazendo a população crescer rapidamente. Essas características marcaram o período que vai da revolução industrial até meados do nosso século, quando teve início a terceira fase, em que as taxas de mortalidade e natalidade se equilibram, fazendo a população se estabilizar, ou mesmo declinar.
Mesmo assim, o crescimento da população mundial vai se manter ainda por algumas décadas, mesmo se todas as mães resolverem ter apenas dois filhos. Em muitos países em desenvolvimento, o número de mulheres jovens que alcança a idade fértil é tão grande quanto antes, diz um balanço publicado pela revista The Economist no início de 1990. Portanto, o número de bebês continuará alto por muito tempo depois que as taxas de nascimento começarem a cair. Isso ocorre porque há uma defasagem entre a desaceleração das taxas de fertilidade e o número de nascimentos. Assim, os especialistas da ONU dizem que somente em meados do próximo século essas taxas se equilibrarão, estabilizando a população mundial.
“O homem tem como controlar as forças cegas que agiam sobre as populações”.
A mesma defesa da ordem estabelecida, dos interesses da elite dominante, a mesma apologia da forma vigente de organização da produção material, move os neomalthusianos de nossos dias, baseados nessa fraude científica histórica que está na base de sua matemática, onde a população e a produção de alimentos crescem com diferentes velocidades. Ora, a história mostrou, à exaustão, que – ao contrário do que pensava Malthus – em condições sociais favoráveis, a produção de alimentos pode crescer mais rapidamente do que a população. Além disso, em nossos dias, os demógrafos – pelo menos no Brasil – preocupam-se na verdade com a acelerada diminuição no crescimento populacional. Mas os defensores dos interesses da elite, que querem manter a sociedade como ela está organizada hoje, são incalculáveis, e sofisticaram sua argumentação com a ameaça da catástrofe ambiental que o excesso de população poderia provocar.
Na verdade, não é a Terra que esgotou sua capacidade de alojar mais gente. Na verdade, é o capitalismo que chega, aceleradamente, aos limites de sua capacidade de suprir, mesmo que em níveis mínimos, as necessidades da população por ele dominadas.
Em seu desenvolvimento, através de sua própria dinâmica, o capitalismo é um sistema que substitui na produção o emprego direto de mão-de-obra pelo uso de máquinas cada vez mais sofisticadas. Em consequência, diz Marx, no capitalismo "a força produtiva do trabalho avança muito mais depressa do que o progresso na acumulação e o crescimento da riqueza social". Essa contradição leva, inevitavelmente, à formação de um exército industrial de reserva – essencial para a manutenção do sistema capitalista – e à superpopulação relativa. Seus efeitos são o tema de um próximo artigo.
José Carlos Ruy é jornalista
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