Um episódio conhecido por todos é a condenação de Galileu pelo Tribunal da Inquisição em 1633, por defender opiniões "contrárias à Santa Escritura". Esse célebre processo, devido à publicação em 1632 do Diálogo dos Dois Grandes Sistemas, levou Galileu a abjurar solenemente que a Terra gira em torno do Sol.

Sobre esse episódio, o Galileu Herético, de Pietro Redondi, é inovador não só pela completa mudança das posições clássicas já conhecidas, mas também pelas lições metodológicas oferecidas pelo livro à pesquisa em História da Ciência.

Durante o período entre duas de suas obras – o Saggiatore (1623) e o Discorsi (1638) –Galileu modifica sua teoria atomista, sem aparentemente nenhuma justificativa. Entretanto, o mesmo não aconteceu com as antigas convicções copernicanas, que motivaram a sua condenação. Essa contradição leva Redondi a buscar conhecer as razões que teriam motivado essa mudança.

Procurando nos arquivos do Santo Oficio, um documento onde um teólogo da época (padre Guevara) havia elucidado o caráter não condenável do sistema copernicano, Redondi encontra uma carta denunciadora, endereçada a uma autoridade do Santo Ofício e anterior à condenação de Galileu. Nela, um religioso se inquieta por causa de uma contradição entre certas teses do Saggiatore e o dogma da transubstanciação na Eucaristia, adotada pelo Concílio de Trento em 1551.

Nesse dogma, a Igreja romana afirma a presença real do corpo e do sangue de Cristo nas duas espécies consagradas, assim como subsistem as aparências sensíveis, ou "acidentes", do pão e do vinho na missa. Se adotamos a interpretação atomista das qualidades sensíveis de Galileu, o gosto, a forma e a cor dependem da ligação de partículas constitutivas. Assim, a distinção escolástica entre substância e acidentes perde toda a significação. A conversão das substâncias torna-se impossível e não há milagre.

Apesar de anônimo, um G no canto da página levou Redondi, num trabalho de detetive, a identificar o autor como sendo do padre Orázio Grassi, importante arquiteto e teólogo do Colégio Romano, a mais respeitável instituição cultural da Contra-Reforma, dirigida pela congregação dos padres jesuítas.
Seguramente, havia com o que inquietar o Colégio Romano, pois esse dogma era o ponto divisor de águas entre protestantes e católicos. Além de motivar duelos dentro da própria Igreja, refletia-se diretamente sobre as teorias do conhecimento e as filosofias da natureza, em um difícil conflito entre razão e fé:

A acusação contra Galileu, em 1624, era certamente a mais grave de todas, em função dos repetidos desafios heréticos naquele momento. Bastará recordar que o argumento da transubstanciação era tão grave, que permitiu ao cardeal Belarmino desbloquear o interminável processo de Giordano Bruno, e ao Cardeal Scaglia ir a fundo no processo de "De Dominis" (conhecido como teólogo, cientista e intelectual de fama européia), levando à sua condenação à fogueira, apesar de estar morto havia três meses e meio.

Reforçando sua tese, Redondi mostra que, para os jesuítas, o copernicanismo era um pecado menor, tanto que o livro de Copérnico retirado de circulação em 1616, foi liberado em 1920, com pouquíssimas modificações. Mas violar um dogma era heresia da mais alta espécie, e passível de condenação à fogueira, e os defensores do atomismo vinham sendo caçados e severamente punidos desde o início do segundo milênio. Conhecida na antiguidade como uma doutrina sem Deus, o atomismo tornou-se no século XVII uma doutrina herética.

Em seu livro, Redondi conta muitas tramas e acontecimentos contraditórios. Em 1624, o papa Urbano VIII, admirador e protetor de Galileu, é eleito. O ambiente político, cultural e religioso de liberdade e mudança, faz do "Saggiatore o acontecimento literário do novo pontificado". Por outro lado, o Colégio Romano desencadeia uma campanha de agressões contra a nova filosofia.

É nessas circunstâncias, segundo Redondi, que a condenação de Galilei em 1633, por heliocentrismo, resultou de uma trama para mascarar uma heresia bem mais perigosa, o atomismo, na qual estava comprometido um papa muito liberal para o gosto dos jesuítas, que faziam oposição.

EDIÇÃO 27, NOV/DEZ/JAN, 1992-1993, PÁGINAS 54