Ilusões na sociedade pós-industrial
Continua válida a tese marxista da necessidade de a classe operária lutar contra o capitalismo e pelo socialismo? Teria o eixo do desenvolvimento social se deslocado para a luta estritamente pelos direitos sociais, pelo direito à cidadania, pela democratização do poder etc? Em uma palavra, teria alguma perspectiva o movimento socialista diante de uma suposta mudança de essência no modo de produção capitalista?
Nas últimas duas décadas, têm vindo à luz diversos pontos de vista que consideram que a evolução social é comandada pelos processos de desenvolvimento tecnológico, os quais teriam chegado a tal estágio que teriam derrubado a base da teoria econômica marxista, a teoria do valor-trabalho.
“A economia burguesa procura esconder o caráter transitório do capitalismo”.
Para o marxismo, no capitalismo, o processo produtivo domina o homem já que o objetivo da produção é a autovalorização do capital; o capital, para se auto-valorizar, suga trabalho não pago à classe operária constituindo-se a base objetiva de dominação de classe. Por outro lado, de acordo com as concepções "pós-industrialistas", o conhecimento e a informação passaram a ser os principais recursos econômicos da atualidade, substituindo o trabalho assalariado no sentido clássico. Como o trabalho é cada vez mais qualificado, exigindo maior nível de conhecimento, os proletários estariam passando por um processo de aburguesamento.
Segundo tal tipo de opinião, a luta da classe operária e demais trabalhadores contra a burguesia e pelo socialismo não teria mais sentido. Seria um anacronismo que a derrocada do socialismo soviético e do Leste Europeu enterrou para sempre. Como exemplo desta pregação, pode-se citar o professor norte-americano Peter Drucker, conhecido apologista da sociedade pós-industrial, quando ressalta:
"(…) até o início do século, (…) os grandes homens de negócios (…) eram de fato os capitalistas de Marx, aqueles que controlavam os meios de produção. Hoje a riqueza total das mil pessoas mais ricas dos Estados Unidos mal daria para cobrir as necessidades de capital de algum grande setor da economia industrial americana por poucos meses. Os próprios empregados, através de seus fundos de pensão, é que são hoje os capitalistas" (1).
A base para esta conclusão sobre o desenvolvimento atual estaria no avanço da produtividade do trabalho que teria derrubado a lei do valor de Marx e, consequentemente, a teoria da exploração capitalista. No mesmo trabalho acima citado, comentando os avanços de produtividade advindos do taylorismo, Peter Drucker sentencia:
“Sem Taylor (…) os operários teriam se tornado os proletários explorados de Marx. Ao invés, porém, quanto maior era o número de operários nas fábricas, mais eles se tornavam 'classe média' e 'burgueses' em termos de renda e de padrão de vida. E mais eles se tornavam conservadores – e não revolucionários como previra Marx – em seus estilos de vida e em seus valores" (2). O "mérito" deste tipo de combate à teoria marxista, diferentemente da chamada economia vulgar, reside no fato de procurar contra-argumentar a essência metodológica da economia marxista, a teoria do valor.
Marx, para descobrir a lei do desenvolvimento social no capitalismo, investigou a troca mercantil como elo universal de ligação dos fenômenos econômicos do capitalismo. Partiu das teorias dos economistas clássicos, especialmente Adam Smith e David Ricardo. Corrigiu os economistas clássicos em suas teorias do valor trabalho através da descoberta do duplo caráter do trabalho objetivado nas mercadorias. Pôde, com isto, passar das aparências dos fenômenos econômicos para sua essência. Descobriu que a mercadoria é uma unidade de contrários entre valor de uso (determinado pelo trabalho concreto) e valor de troca (determinado pela quantidade de trabalho abstrato); observou que cada trabalho é ao mesmo tempo um trabalho concreto, realizado de forma específica e, ao mesmo tempo, é uma parte alíquota do trabalho de toda a sociedade: trabalho humano em geral, independente de sua forma concreta.
Desta forma, Marx pôde realizar um estudo científico das relações que os homens mantêm no processo produtivo; investigar as relações de produção, e sua relação dialética com o desenvolvimento das forças produtivas.
É comum as diversas correntes econômicas burguesas, e mesmo algumas ditas marxistas, não compreenderem a dualidade do trabalho na produção mercantil capitalista e, consequentemente, confundirem o processo de trabalho (criação de valores de uso) com o processo de valorização do capital (criação e manutenção de valores de troca tendo como objetivo o lucro, a exploração de trabalho alheio).
A economia burguesa procura de todos os meios fugir da realidade objetiva do capitalismo para não enfrentar a questão da transitoriedade deste modo de produção. Esconde a contradição entre o caráter social do trabalho e o caráter privado da apropriação, ou dito de outra forma, a contradição entre o caráter cada vez mais social das forças produtivas e as relações capitalistas de produção, baseadas na propriedade privada sobre os meios de produção. Entender o capitalismo como um modo de produção contraditório exige o estudo do duplo caráter do trabalho.
De fato, Marx em carta dirigida a Engels em 24 de agosto de 1867, logo após terminado o livro I d'O Capital alertava:
“O melhor de meu livro: 1) o duplo caráter do trabalho, sublinhado já no primeiro capítulo, segundo se expressa em valor de uso e em valor de troca (sobre isto repousa toda a compreensão dos fatos); 2) a investigação da mais-valia independentemente de suas formas específicas: o lucro, o juro, a renda da terra etc.".
Esclarecedora, do ponto de vista metodológico, é esta carta de Marx a Engels: a descoberta do duplo caráter do trabalho constitui-se na base fundamental da teoria econômica marxista. Representa a aplicação do método materialista dialético aos fenômenos econômicos.
Com isso, Marx pôde estudar a mais-valia – teoria científica da exploração capitalista – independente de suas formas de manifestação. E pôde compreender as contradições deste modo de produção, já que este possui em suas bases a dualidade entre trabalho concreto, criador de valores de uso, e trabalho abstrato ou social, criador de valores de troca. O caráter contraditório das mercadorias e do trabalho nelas objetivado faz com que todos os fenômenos econômicos tenham um caráter contraditório. O processo produtivo se divide, de forma antagônica, entre processo de trabalho propriamente dito e processo de valorização do capital. As crises econômicas não são mais do que a materialização desta contradição no tempo e no espaço.
“Errôneo pensar que o avanço da produtividade conduz ao fim da exploração”.
Portanto, quando se estuda os fenômenos advindos do avanço da produtividade do trabalho, há que se levar em conta a evolução das contradições do sistema. Há que se verificar que a socialização crescente do trabalho colide com a mesquinhez de colocar como o objetivo do processo produtivo o lucro, os interesses privados de uma pequeníssima parcela da população. Seria idealismo e um ponto de vista metafísico encarar o avanço da produtividade do trabalho como algo que linearmente conduziria à superação da exploração capitalista. É fugir da realidade concreta pensar que à medida que o trabalho vai se "automatizando", o capitalismo, baseado na exploração do trabalho, vai se esvaindo.
A tese sobre a superação do capitalismo por conta do desenvolvimento das forças produtivas é totalmente contrária ao próprio "fio condutor" de toda a obra de Marx:
"O resultado geral a que cheguei (…) pode resumir-se assim: na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. (…) Ao chegarem a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali (3).
É desta forma (a relação dialética entre as forças produtivas e as relações de produção a elas correspondentes) que Marx pôde periodizar a história da humanidade de acordo com o caráter das relações de produção que determinada época encerrava: comuna primitiva; escravismo; feudalismo; capitalismo e o futuro socialismo e comunismo.
Por seu turno, o sociólogo norte-americano Daniel Bell em seu livro El Advenimiento de la Sociedad Post-industrial faz uma periodização da história da sociedade tendo por base unilateral o desenvolvimento das forças produtivas. Procura apontar que a sociedade viveu uma era pré-industrial, uma era industrial e que estaríamos entrando na era pós-industrial.
Bell vende a idéia de que a sociedade industrial visa à produção de bens; a sociedade pós-industrial visa ao atendimento de uma existência plena pelo desenvolvimento dos serviços. Assim, a era industrial corresponderia à missão do capitalismo com suas relações de produção. Na era pós-industrial não é mais o capitalista quem manda, mas sim o trabalhador especializado, rico em conhecimentos. A própria organização social estaria mudando com o desenvolvimento de organismo governamentais, particularmente os de caráter local, para o atendimento das necessidades das pessoas em termos de serviços e comodidades.
Fica claro que autores como Daniel Bell confundem trabalho concreto com trabalho abstrato ou social, desaguando na identificação do processo de desenvolvimento das forças produtivas com o processo de evolução social. Não vê, ou não quer admitir, que a humanidade de tempos em tempos entra em um processo revolucionário, de radical transformação das relações de produção, e que isto sim representa uma mudança no modo de produção.
O texto de Marcos Dantas Loureiros – "Teria Marx Algo a Dizer sobre a Informatização da Sociedade" –, apresentado no XXIV Congresso de Informática, que me provocou a escrever o presente artigo, enfoca erroneamente a questão da seguinte forma:
"Vivemos numa sociedade de radicais transformações. Sobre isto, quase todos concordamos. Curiosamente, não concordarão alguns marxistas que insistirão na permanência do conflito capital-trabalho. As transformações são determinadas pelo progresso da informática e da microeletrônica, substituindo o homem no trabalho direto e tornando as atividades produtoras de informação e conhecimento as mais importantes econômica e socialmente falando" (4).
“É inconsistente a defesa do marxismo sem levar em conta a luta de classes”.
O trabalho acima citado percorre diversos autores como Norbert Wiener, Peter F. Drucker, Daniel Bell e Yoneji Masuda, os quais discutem a evolução das sociedades no que diz respeito à revolução técnico-científica, convergindo para a conclusão sobre o inexorável processo de substituição do trabalho humano, a colocação do conhecimento como principal recurso econômico. Segundo os autores estudados no trabalho em questão, estaríamos vivendo uma era pós-industrial na qual o fundamento da teoria marxista sobre a exploração do trabalho alheio, tendo como base a propriedade privada sobre os meios de produção, não teria mais validade: "Numa economia baseada na informação, o valor é acrescentado não pelo trabalho, mas pelo conhecimento. A teoria marxista do valor, nascida no início da economia industrial, deve ser substituída por uma nova teoria do valor do conhecimento. Numa sociedade de informação, o valor é acrescentado pelo conhecimento, um tipo de trabalho diferente do que Marx tinha em mente" (5).
A partir deste ponto, Marcos Dantas passa a "defender" as teses de Marx indicando que os avanços recentes da sociedade no sentido da informatização e as teses sobre o consequente definhamento do capitalismo estariam de acordo com Marx.
Tal tipo de "defesa" do marxismo é inconsistente na medida em que despreza a luta de classes como motor do desenvolvimento social. Despreza o fato de, apesar das forças produtivas experimentarem colossais avanços na época do capitalismo, o sistema persistir baseado na propriedade privada sobre os meios de produção. O objetivo da produção continua sendo o lucro, a extração do trabalho não pago à classe operária. Não são os homens que podem escolher os destinos da sociedade, mas sim os movimentos espontâneos e anárquicos do processo de valorização do capital em meio a uma base cada vez mais estreita de consumo.
Só a revolução social, proletária, pode por fim ao capitalismo e abrir caminho a uma sociedade de ordem superior, a passagem ao mundo da liberdade e do conhecimento. A perspectiva de uma sociedade mais avançada, de maior "tempo livre" para o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas só pode ser concretizada com a tomada do poder pelos operários e demais trabalhadores e a derrocada da propriedade privada sobre os meios de produção. Nos marcos do capitalismo, os avanços tecnológicos e da produtividade do trabalho implicam crescimento do desemprego e diminuição da base já estreita de consumo sobre a qual opera o sistema capitalista.
Ao questionar esta lei do desenvolvimento social com base na negação da lei do valor, o autor mostra não compreender a essência da teoria marxista do valor: o duplo caráter do trabalho objetivado nas mercadorias, como pode ser observado quando afirma:
Para Marx, o trabalho é uma atividade física e intelectual do homem orientada a um fim: "atender a uma necessidade humana. E cria valor, como também reconheciam Smith e Ricardo, porque permite transformar elementos naturais em objetos apropriados ao consumo humano" (6).
"Na medida em que se desenvolvem as forças produtivas – e nelas os instrumentos de trabalho são substituídos por máquinas cada vez mais sofisticadas e poderosas – o homem vai sendo eliminado do trabalho direto. Na linguagem de Marx, o 'trabalho vivo' é substituído por 'trabalho morto', por 'automatas' dotados de 'órgãos mecânicos e intelectuais'”.
“Desenvolvimento do capital coloca em pauta mudanças de cunho revolucionário”.
Para mostrar que "os teóricos da sociedade da informação, ou do conhecimento, parecem, algumas vezes, repetir ipsis litteris certos pensamentos de Marx", o autor utiliza a seguinte citação dos Grundrisse de Marx:
"Mas na medida em que se desenvolve a grande indústria, a criação de riqueza efetiva se torna menos dependente do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que da potência dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder – powerful effectiveness – que não guarda nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas sim depende do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação da ciência à produção".
Da citação acima, o autor conclui que Marx já "sabia que haveria de chegar um momento no qual não caberia mais aplicar a lei do valor à análise econômica e social". Conclusão insuficiente já que omite a necessidade da revolução social para que o desenvolvimento das forças produtivas possa sair de suas amarras capitalistas, passar-se a distribuição segundo as necessidades e, aí sim, num mundo sem mercadorias, a lei do valor perde seu significado.
Para corrigir suas conclusões, o autor poderia ter utilizado uma outra citação de Marx, duas páginas à frente nos mesmos Grundrisse, onde se lê:
"O capital é a contradição posta em movimento: tende a reduzir ao mínimo o tempo de trabalho, ao mesmo tempo em que faz do tempo dele a fonte única da medida da riqueza (…) Por um lado, o capital coloca em marcha todas as forças da ciência e da natureza, de outra parte, trata de medir em tempo de trabalho as imensas forças sociais assim criadas, condenando-as, com isto, a se manterem dentro dos limites necessários para manter como valor o valor anteriormente criado" (7).
Desta forma, Marcos Dantas concluiria que o capitalismo é uma contradição em permanente processo de acirramento exatamente por conta dos avanços na produtividade do trabalho. Por um lado, o desenvolvimento social apresenta um aspecto evolutivo: as transformações nas forças produtivas. Por outro, esta evolução nega o homem como ser social, aumentando a necessidade e as potencialidades de mudanças revolucionárias nas relações de produção.
* Engenheiro Naval e mestre em economia.
Bibliografia
(1) DRUCKER, Peter F. As Novas Realidades. São Paulo. Pioneira. 1991. p. 131.
(2) Idem, p. 161.
(3) MARX, K. "Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política" in Textos, vol. 3. São Paulo. Edições Sociais. p. 301.
(4) LOUREIROS, Marcos Dantas. Terá Marx Algo a Dizer Sobre a Informatização da Sociedade. In XXIV Congresso Nacional de Informática – São Paulo, 1991, p. 3.
(5) NAISBITI, John. Megatendências. São Paulo, Círculo do Livro, Abril, 1983 p. 17, citado por LOUREIROS, idem, p. 17.
(6) LOUREIROS, op. cit., p. 7.
(7) MARX, K. "Grundrisse" in Obras Fundamentales, vol. 7, México, Fundo de Cultura Econômica. 1985. p. 115.
EDIÇÃO 27, NOV/DEZ/JAN, 1992-1993, PÁGINAS 34, 35, 36, 37, 38