Lutas Filosóficas na URSS (1922-1931)
O grande atrativo deste livro está em apresentar uma coletânea, traduzida para o francês, dos principais artigos das lutas filosóficas desenvolvidas na URSS na década de 1920. São 16 artigos assim agrupados: I- Editorial e artigos de Lênin e de Trotsky quando da fundação da revista Sob a Bandeira do Marxismo; II- Luta contra o liquidacionismo na filosofia, com artigos de S. Minine, V. Rumii e A. A. Déborine; III- Luta entre mecanicistas e dialéticos (ou deborinistas) com artigos de I. I. Stepanov e A. K. Timiriazev pelos mecanicistas e A. M. Déborine e Resoluções da "2ª Conferência de toda a União das instituições marxistas-leninistas de pesquisa científica" pelos dialéticos, cobrindo o período 1924-1929, e IV- Luta entre bolchevizadores da filosofia e dialética com artigos de A. M. Déborine, I. Luppol, I. Sten e outros pelos dialéticos, e de M. B. Mitine, V. N. Raltsevich e P. F. Iudin pelos bolchevizadores e mais o decreto do Comitê Central do PCURSS de 25-01-1931 afirmando as posições dos bolchevizadores como posições do partido. O livro conta ainda com prefácio de Dominique Lecourt e Notas Introdutórias aos artigos feitas pelo próprio René Zapata.
Aqueles que têm familiaridade com a filosofia marxista na sua forma sistematizada pelos autores soviéticos encontrarão nesta coletânea elementos para entender a trajetória que vai da revolução de outubro, quando não se dispunha de uma tal sistematização, ao período (metade da década de 1930 em diante) em que esta sistematização aparece nos diversos manuais de filosofia, de história da filosofia e no próprio Materialismo Dialético e Materialismo Histórico, de Stalin.
O que mais salta à vista no exame destes artigos é que a luta entre mecanicistas e dialéticos, o episódio mais destacado do período, constituiu-se de uma polêmica restrita à relação entre filosofia marxista e ciências da natureza. É um debate que guarda atualidade envolvendo noções como formas de causalidade, continuidade e descontinuidade, estrutura lógica subjacente às diversas disciplinas científicas etc. Mas a ausência neste debate de temas filosóficos relativos à história, à política, às ciências sociais, enfim relativos ao materialismo histórico, é no mínimo surpreendente, pois a própria existência, pela primeira vez na história, de um poder operário consolidado, apresentava para o marxismo uma enorme gama de novos problemas práticos e teóricos, associados exatamente ao desafio da construção socialista.
Esta ausência era assumida conscientemente como natural. Déborine, principal autor dos dialéticos, afirma que nas ciências sociais "os marxistas são os mestres de si mesmo". Ora os marxistas mais destacados eram por princípio os principais dirigentes partidários. Mas exatamente entre estes a década de 1920 não pode ser vista exatamente como um período de largo consenso. Para além das divergências práticas, mais conhecidas dos marxistas ocidentais, existiam latentes importantes diferenças teóricas não debatidas. É notório, por exemplo, o viés positivista e mecanicista presente nas obras de Bukharin, destacado dirigente e teórico do período.
Já nas posições dos bolchevizadores (1929) aparece a crítica à ausência dos temas ligados ao materialismo histórico na reflexão filosófica soviética. Mas sua principal crítica está centrada na exigência de resultados práticos para a reflexão teórica e de maior lealdade (partidismo) ao PCURSS nas lutas internas em curso.
Analisando retrospectivamente, com os olhos de hoje, duas questões se destacam referentes à sistematização da filosofia marxista na URSS. A fusão da exigência de unidade política com os desafios da elaboração da teoria revelou-se esterilizadora sobre a ulterior elaboração teórica. E a sistematização da filosofia que nós conhecemos, longe de elaborar sobre os novos problemas postos ao materialismo histórico pelo desafio da construção socialista, realizou de fato uma justaposição entre os temas do materialismo histórico com aqueles do materialismo dialético.
A coletânea organizada por Zapata ajuda-nos então a examinar mais de perto a própria trajetória da revolução socialista soviética.
EDIÇÃO 27, NOV/DEZ/JAN, 1992-1993, PÁGINAS 56