Milhões contra milhões
O movimento pelo impeachment arrastou setores conservadores ao rompimento com Collor, estilhaçou as bases de sustentação do governo, brecou a avalanche fisiológica. O povo, vitorioso, mostrou sua força.
Os choques entre os milhões nas ruas e as elites milionárias tornam-se frequentes. Em 1984, as multidões afrontaram o regime militar com a bandeira das diretas-já. Tanta esperança acumulada, entretanto, não conseguiu evitar que o campo para a derrota da ditadura se transferisse para o Colégio Eleitoral. Tancredo, apesar de uma formação conciliadora, empolgou imensas manifestações populares. Como agora foi a pressão das massas que esfacelou os esquemas governistas e derrotou
o representante dos generais, Paulo Maluf.
Em 1989, os oprimidos fizeram da Frente Brasil Popular o canal para exigir mudanças. Pela primeira vez na história do nosso país, as forças populares marcharam unidas para a disputa da Presidência contra as oligarquias. Obtiveram o resultado estrondoso de 31 milhões de votos, contra 35 alcançados pelo aparato dominante. Os dois "grandes" partidos, PMDB e PFL, que se pretendem com direito a monopolizar as decisões sobre o país, juntos, não somaram 5% dos votos.
Em todos esses episódios, evidencia-se o divórcio declarado entre as correntes dominantes – e seus mecanismos de poder – e a imensa maioria da população. Os governantes já não têm soluções duradouras para os gravíssimos problemas do Brasil. Suas saídas têm fôlego curtíssimo. O país sai de uma crise para cair em outra no dia seguinte, com o agravamento dramático do quadro social.
A "era Collor", como foi denominada pela grande imprensa que hoje finge esquecer toda cobertura que lhe proporcionou, fez aflorar escandalosamente esse abismo.
De um lado, milhões de sem-teto, sem-emprego, sem-saúde, sem-escola, vítimas do sucateamento do sistema produtivo do país e dos salários miseráveis. De outro, milhões de dólares esbanjados criminosamente no jardim das mil e uma noites do Palácio da Dinda, na desavergonhada ciranda de corrupção e até na compra de calcinhas da Primeira Dama.
De um lado, os refinados perfumes franceses com que o aristocrata presidente cuidava de disfarçar o fedor da burguesia, denunciado por Cazuza. De outro, moedas podres para liquidar valiosíssimos patrimônios públicos, como a Usiminas e outras estatais estratégicas para o Brasil, construídas com o esforço de décadas de milhões de trabalhadores.
Quando o escárnio se tornou insuportável e as denúncias romperam as barreiras do silêncio e da cumplicidade, o quadro de falência das instituições revelou-se com todas as cores.
O Legislativo manifestou indisfarçável dificuldade para movimentar-se e agir. Foi palco de inconfessáveis manobras para restringir o episódio ao desmoralizado PC. O depoimento do magnata Antônio Ermírio de Morais, na CPI, foi uma demonstração humilhante da submissão dos que deveriam portar-se como representantes do povo diante do "grande senhor". O andar da carruagem só foi alterado pelo brado ameaçador das multidões. E por depoimentos de gente do povo simples, como o motorista Eriberto. Assim mesmo, nas vésperas da votação da autorização para o processo de impeachment, o leilão de votos era escancarado, como se fosse uma coisa natural. A tal ponto a degradação chegara, que se temia uma surpresa se os votos fossem secretos. E houve uma verdadeira batalha, parlamentar e jurídica, para que, como todo o Brasil reclamava, a posição dos parlamentares fosse transparente.
O Judiciário, acostumado a julgar e condenar gente comum, ao farejar a possibilidade da presença dos ricos no banco dos réus, reforçou a venda nos olhos, tapou os ouvidos, escondeu-se olimpicamente na "imparcialidade" da lei. A sessão do Supremo Tribunal, transmitida ao vivo pela TV, parecia uma visita a um museu. O telespectador sentia, em sua casa, o cheiro de mofo daquelas túnicas pretas da idade média. Depois da manifestação de cada juiz, um comentarista tinha que "traduzir" para os simples mortais o que a meritíssima e empolada sabedoria queria dizer. Se não fosse a vigilância severa de uma infinidade de olhos de trabalhadores, o mordomo (quem sabe, no caso, o motorista!) iria de novo para a cadeia.
Os grandes grupos econômicos foram flagrados envolvidos até o pescoço nas teias da corrupção. Até o chefão do grupo Votorantim, que arrotava honestidade, foi pego com a mão na massa. Não se envergonhou de declarar que entrou com 250 mil dólares para pagar serviços inexistentes da EPC.
Diante de uma situação dessas, é evidente que não basta afastar um presidente. O desfecho dos confrontos anteriores e a batalha vitoriosa contra Collor indicam que a burguesia, embora golpeada, detém o controle da máquina. No caso atual, mesmo o esforço para barrar a orientação neoliberal não está decidido. A permanência da mobilização popular é que pode levar adiante alterações mais sensíveis. A atitude dos meios de comunicação e de grupos políticos, contra a formação do novo ministério e a favor de acelerar a votação de projetos "modernizadores" encaminhados pelo governo anterior, mostra o desejo de enquadrar Itamar e de dar continuidade ao collorismo sem Collor. A mobilização popular tem conseguido atingir seus opressores e tem elevado sua capacidade de combate. Mas os sucessos alcançados não chegam a abalar os alicerces do poder. As transformações revolucionárias não encontram ainda canais para fluir. E a ofensiva internacional permanece nas mãos da reação imperialista.
Seria errôneo, entretanto, subestimar o significado dessa batalha. Além de despertar e elevar a consciência das massas e, pode-se dizer, quebrar o encanto do Caçador de Marajás, que hipnotizava tanta gente, o impulso das ruas desarticulou as estratégias políticas ambiciosamente voltadas para a sucessão. O movimento violou a auréola imperial que sempre manteve o presidente inatingível, e dirigiu-se, por cima da questão da moralidade pública, contra o próprio modelo neoliberal, pretensamente modernizador. Todos começam a perceber que é impossível chegar a 1994 sem passar por 1993 e o governo Itamar. As faces pintadas dos jovens e a onda humana nas praças representam, pode-se dizer, a cara do futuro. Não se "passou o Brasil a limpo", como se proclama, com a preocupação de refrear o ímpeto popular. Mas é de um amálgama complexo de fenômenos como esse a que assistimos, e a outros em que os milhões sejam os atores principais, que se construirá um Brasil diferente, livre do sistema obsoleto em vigor.
EDIÇÃO 27, NOV/DEZ/JAN, 1992-1993, PÁGINAS 3, 4, 5