Os pobres colocam o mundo em perigo? (Final)
Muitos ambientalistas e conservadores temem que os recursos da Terra sejam insuficientes para sustentar uma população maior que a atual. Dizem que o planeta já chegou ao seu limite, e que se a população continuar crescendo de maneira "explosiva", faltará comida, energia, água. O ar será contaminado por emissões poluentes, a temperatura da Terra se elevará, as geleiras polares se derreterão elevando o nível dos mares, provocando inundações catastróficas para as populações litorâneas. Dizem que a pobreza polui, e que a limitação no crescimento das populações pobres terá o efeito de, pelo menos, evitar que os problemas atuais se ampliem.
O Fundo Mundial para a População, da ONU, que prevê uma população mundial de uns prováveis 10 bilhões de seres humanos no ano 2050, afirma que esse cenário dantesco se completará com ameaças ao desenvolvimento econômico e à própria democracia.
A fragilidade científica desses argumentos decorre de duas idéias principais. A primeira, como já vimos no artigo anterior, é a de que os recursos naturais da Terra serão insuficientes para atender às necessidades de uma população maior do que a atual. A segunda é a crença de que o desenvolvimento das atuais nações pobres poderá repetir o das nações ricas, e que o destino do capitalismo é espalhar pelo planeta o mesmo padrão de desenvolvimento dos atuais países ricos com níveis semelhantes de consumo perdulário e esbanjador. Assim, os ideólogos e os cientistas ligados ao capitalismo pensam que o chamado subdesenvolvimento é uma etapa necessária no rumo do desenvolvimento econômico. O desenvolvimento dos países pobres é encarado como a transição para o tipo moderno ou urbano industrial idealizado a partir das sociedades industriais ditas desenvolvidas, do ocidente.
Nesse sentido, o desenvolvimento das nações chamadas subdesenvolvidas é apreendido como mera difusão ou continuação da revolução industrial iniciada nos fins do século XVIII na Europa Ocidental e nos EUA.
Os teóricos da burguesia são – conscientemente ou não – incapazes de pensar formas de organização da produção material, da vida social e da distribuição das riquezas diferentes daquela que existe sob o modo de produção capitalista. Além da apologia do capitalismo, o terrorismo ecológico dos neomalthusianos esconde motivos geopolíticos e denuncia o medo que as elites dominantes dos países ricos – e também das nações do chamado Terceiro Mundo – têm das massas empobrecidas da África, Ásia e América Latina.
“É "necessidade da vida moderna" a massa de bugigangas oferecidas nos shopping centers”
Contra esses argumentos, deve-se levar em conta que – como a própria produção material – as formas de distribuição das riquezas e os níveis de consumo também são condicionados historicamente pelas necessidades objetivas dos modos de produção em que ocorrem, pela capacidade que a produção social tem de, simultaneamente, atender às necessidades vitais mínimas de suas populações e acumular reservas que permitam a reprodução da produção material e sua expansão. Assim, os atuais níveis de consumo dos países ricos – que, é preciso enfatizar, mesmo nesses países, não são iguais para toda a população, deixando muita gente de fora – são condicionados pelas necessidades de acumulação, reprodução e desenvolvimento ampliado do sistema capitalista, imperativos que geram as chamadas necessidades da vida moderna, traduzidas na imensa quantidade de bugigangas oferecidas nestes tempos do supérfluo que são os supermercados e os shopping centers.
Muitos ambientalistas e conservadores defendem a tese do desenvolvimento auto-sustentado que, juntamente com o controle demográfico, poderá – dizem – solucionar os problemas ambientais gerados pela pobreza. Embora não haja consenso sobre o que seja essa idéia, há uma forte suspeita de que seja apenas mais um artifício – dos muitos que o colonialismo e o imperialismo já criaram – para manter intocável a atual divisão do trabalho do mundo, com os atuais países industrializados dominando a economia e os mercados mundiais. Seu resultado poderá eternizar a posição subordinada e dependente dos povos e nações da África, Ásia e América Latina, levando – mais uma vez – à manutenção da situação internacional extremamente injusta e desigual, onde os 20% mais ricos da Terra detêm 83% do PIB mundial, enquanto os 20% mais pobres têm apenas 1,4%. Uma situação internacional que rouba aos povos pobres anualmente cerca de 500 bilhões de dólares através do comércio mundial dominado pelo imperialismo.
Concentração de riqueza num pólo e generalização da pobreza em outro – esta é a marca que o capitalismo traz desde suas origens, tendência confirmada por seu desenvolvimento mais recente. Por isso, a indiana Vandana Shiva tem razão ao denunciar a discussão isolada dos índices de crescimento demográfico do Terceiro Mundo como uma questão falsa, que não considera o consumo desigual de recursos entre as regiões, nem a distribuição geográfica heterogênea da população. Ela acusa o imperialismo de praticar uma política populacional baseada numa filosofia da triagem, tática militar de tempos de guerra que manda abandonar os fracos e feridos para que os fortes sobrevivam, explica ela, lembrando que os 20% da população mundial consomem 80% dos recursos.
Pesquisadores do Instituto Indira Gandhi de Pesquisa para o Desenvolvimento, da Índia, reforçam a denúncia da falsidade das teses neomalthusianas segundo as quais a pobreza é a pior poluição e a superpopulação ameaça os recursos do planeta. A poluição, mostraram, resulta na verdade do consumo perdulário dos ricos, baseado no desperdício e na dissipação. Eles dizem que se a Índia dobrar sua população até o ano 2000, sem alterar sua renda per capita e seus atuais padrões de consumo, as emissões de carbono cresceriam duas vezes. Mas se mantiver sua população atual, e apenas dobrar sua renda, as emissões aumentariam 2,2 vezes. Um habitante de qualquer país industrializado, dizem eles, consome de três a oito vezes mais recursos naturais do que alguém que viva em uma nação pobre. Em alguns itens específicos, como automóveis e produtos químicos, o consumo per capita dos ricos chega a ser 20 vezes maior!
Em seu ensaio sobre a população, Malthus escreveu: "os pobres são, eles próprios, a causa de sua própria pobreza", uma tese repetida até hoje. Registrou também o vaticínio terrível de que "todo homem que nasce num mundo já ocupado não tem o direito de reclamar parcela alguma de alimento. No grande banquete da natureza não há lugar para ele. A natureza intima-o a sair, e não tarda a executar essa intimação".
“Os pobres colocam em risco a estabilidade baseada na rapina em todo o mundo”.
Opinião semelhante guia os neomalthusianos modernos, que temem a necessidade de compartilhar seu banquete com os pobres do mundo. A história da população, contudo, está intimamente ligada não à produção da pobreza, através da reprodução humana, mas sim à produção da riqueza pelo emprego da força produtiva dos homens, e da forma como essa riqueza é distribuída. Ora, tratando-se de homens, não se pode falar em banquete da natureza, mas sim na divisão do produto do trabalho humano coletivo, que resulta do intercâmbio dos homens com a natureza, do domínio das forças naturais, e principalmente das relações de produção que os homens estabelecem entre si, relações que, nas sociedades divididas em classes, são baseadas na dominação dos produtores diretos por uma minoria que se apropria dos frutos dessa empresa produtiva comum.
E, da mesma forma como a produção material, a distribuição e o usufruto das riquezas produzidas pelo trabalho são condicionados historicamente pelas necessidades dos modos de produção. Nesse sentido, muitos demógrafos modernos combatem, contra os neomalthusianos, a tese que associa pobreza e crescimento da população. George Martine e José Alberto M. de Carvalho, por exemplo, reiteram que "o bem-estar da população é condicionado, sobretudo, pelo estilo de desenvolvimento adotado e não por taxas de crescimento demográfico". Eles dizem que o problema dos neomalthusian é acreditar "que a multiplicação dos pobres dá origem à multiplicação da pobreza", visão com a qual "é impossível entender a situação do Brasil, onde o crescimento demográfico diminuiu, a produção de alimentos aumentou, mas a miséria não desapareceu". Neide Lopes Patarra, por sua vez, diz que a aritmética neomalthusiana não pode mais "justificar a falência da busca da sociedade do bem-estar, nem o acirramento dos contrastes sociais chocantes e de carências crescentes". Fala-se que as populações pobres podem colocar em risco a estabilidade do mundo e a democracia. Mas o que elas colocam em risco é a estabilidade baseada na miséria da maioria e na exploração dos trabalhadores de todos os continentes, estabilidade que só se mantém pela força das armas! A guerra contra o Iraque, as lutas dos povos da América Latina e do Oriente Médio, o martírio de populações africanas e latino-americanas, a profunda miséria de povos da Ásia mostram que essa estabilidade só interessa aos poderosos do mundo, e que a superação radical dessa estabilidade da miséria por uma convivência mais justa é condição essencial para o progresso de todos os homens.
Em 1991, o economista paquistanês Ul Haq, um alto funcionário da ONU, chamou a atenção para os riscos do desequilíbrio brutal na distribuição das riquezas no mundo, alertando: "as coisas vão se agravar". Em duas gerações, dizia então, 93% da população estarão no Terceiro Mundo e, se o desespero dos desprotegidos não for aliviado, virá "um caos social de proporções mundiais". Os miseráveis do chamado Terceiro Mundo "viajarão para o mundo desenvolvido", provocando superpopulação e queda na qualidade de vida. Temor semelhante figura também na edição de 1992 desse relatório, onde se diz: "a pobreza não precisa de passaporte para cruzar fronteiras internacionais, na forma de migração, de degradação do meio ambiente, de doenças e de instabilidade política".
Apesar da propaganda neomalthusiana contrária, o tamanho relativo das populações continua sendo um importante fator de poder não só das nações, mas para a estabilidade do mundo capitalista. As populações dos países ricos, hoje, crescem cada vez mais lentamente. No período de crescimento de suas economias, quando sua industrialização exigia mais e mais braços disponíveis para o trabalho nas fábricas, na lavoura e no comércio, o aumento de suas populações era encarado como fator de poder nacional.
“O capitalista trata a força de trabalho como um dos insumos usados na produção”.
Hoje, mesmo com preconceitos antinatalistas tão fortes, a diminuição da taxa de crescimento demográfico provoca preocupações num país como a França, por exemplo, onde a taxa de fertilidade foi de 1,4% em 1989 – muito baixa, que nem sequer repõe a geração atual. Hervé Le Bras, diretor do Instituto Nacional de Estudos Demográficos da França, escreveu em 1985 que o desenvolvimento das taxas de fecundidade despertava entre os franceses o mesmo interesse que a evolução do índice de preços. Afinal, sua população começa a parar de crescer e isso provoca – em alguns setores – inquietação e traz à lembrança antigos fantasmas, diz o jornal Le Monde. O historiador conservador francês Pierre Chaunu, numa entrevista de 1984, dizia temer pela sobrevivência da civilização européia, se taxas tão baixas de crescimento populacional se mantivessem. Um matemático francês, citado por Chaunu, diz que se a tendência européia atual, de taxa de fecundidade inferior a um filho por mulher adulta, se mantiver e se generalizar na Europa, os 64 milhões de alemães ocidentais (que formavam a maior população da Europa Ocidental naquele ano) teriam, no ano 2278 (isto é, em três séculos) apenas 6.400 descendentes!
No Brasil, setores da elite e do governo já encararam uma população grande como elemento indispensável para a segurança e poderia do país. Um documento da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, de 1967, considerava impatriótica a defesa do controle da natalidade. Na III Conferência Mundial sobre População, de 1974, o representante brasileiro, embaixador Manuel Osório de Almeida, manifestou opinião semelhante, dizendo que o Brasil manteria sua política de aumento demográfico para poder desenvolver o interior, e repudiou a tese de que o aumento da população poderia esgotar os recursos da Terra. E defendeu, claramente, a vinculação entre o poderio nacional e o tamanho da população: "O poder, seja ele político, econômico ou militar, tem como um de seus ingredientes necessários, embora não suficiente, uma grande população. (…) Não há grande potência sem grande população". Mas o sonho de um Brasil Grande acabou, e a elite brasileira parece, hoje, aceitar a política populacional imposta pelo imperialismo.
Essa política populacional decorre de necessidades objetivas para a manutenção da atual situação no mundo. As leis de população são condicionadas historicamente. Isto é, cada época histórica tem sua própria superpopulação, que é gerada pelas contradições próprias de cada modo de produção, e o capitalismo não é exceção.
Sob o domínio do capital, a força de trabalho é apenas um dos fatores da produção, da mesma forma que as máquinas, equipamentos e matérias-primas. O trabalhador e o capitalista consideram de forma diversa a natureza da força de trabalho. Para o trabalhador, ela é condição para sua sobrevivência, para seu bem-estar, para a manutenção de si próprio e de sua família; o capitalista, ao contrário, vê a força de trabalho como um dos insumos usados na produção material: como mercadoria. Mercadoria que, segundo Marx, sob o capitalismo, só pode entrar em ação quando o trabalho necessário (com o qual o operário produz o equivalente a seus próprios meios de existência e reprodução) e seu trabalho excedente (aquele que, não pago, gera a mais-valia) são "condição para que se valorize o capital".
Marx diz que, sob o capitalismo, a superpopulação depende do capital, dos meios de trabalho, de emprego e não dos meios de subsistência. A população excedente, gerada pela dinâmica do capitalismo, aparece na verdade como trabalho necessário excedente,
desnecessário na medida em que seu aproveitamento não é condição para a valorização do capital.
No período inicial do desenvolvimento capitalista, a composição orgânica do capital, isto é, a equação entre matérias-primas + máquinas e equipamentos (o capital constante) e os salários – o emprego da força de trabalho (o capital variável) – era relativamente equilibrada no investimento necessário para a produção, permitindo grande emprego de mão-de-obra. Porém, para se desenvolver, crescer, acelerar a acumulação, o capital precisa necessariamente aumentar a produtividade do trabalho, ou seja, aumentar a capacidade produtiva de cada um dos trabalhadores, diminuindo seu trabalho necessário e aumentando seu trabalho excedente (ou sobretrabalho). Para isso, o capitalismo aplica na produção, cada vez mais máquinas e equipamentos mais sofisticados.
“Dinâmica populacional típica do capitalismo é regida pelas leis de ferro do mercado”.
A união da ciência com a indústria, sob o capitalismo, é consequência dessa busca de produtividade cada vez mais alta, e cobra seu preço. A composição orgânica do capital se desequilibra, em termos relativos, e a parcela do capital constante é cada vez maior nos investimentos, enquanto a parte do capital variável decai. Assim, a tendência do capitalismo desenvolvido a empregar instrumentos de produção cada vez mais sofisticados – e caros – leva à economia de mão-de-obra, para o capitalista, e ao desemprego, para os operários.
A pobreza e o desemprego, a superpopulação, são assim gerados, sob o capitalismo, pelo próprio desenvolvimento da força produtiva. "A invenção de trabalhadores excedentes, isto é, de homens privados de propriedade e que trabalham, é própria da época do capital", diz Marx, para quem a superpopulação é determinada da mesma forma que a população adequada: "superpopulação e população tomadas em conjunto são a população que determinada base de produção pode gerar".
Além disso, para o capitalismo, é indispensável a existência de uma massa suplementar de trabalhadores sem empregos, cuja mera existência faz com que as chamadas leis de mercado regulem a oferta de força de trabalho, mantendo seu preço em níveis aceitáveis para a produção capitalista. Ao poupar o uso de mão-de-obra, a alteração da composição orgânica do capital ajuda a criar e conservar este exército industrial de reserva requerido pela produção capitalista.
Essa é a dinâmica populacional típica do capitalismo. Essas condições mostram que, quanto mais desenvolvidos são os meios técnicos da produção, quanto mais íntima é a associação entre ciência e indústria, maior é o pesadelo para os trabalhadores. A contrapartida da valorização do trabalho de um punhado de operários científicos (como se poderia chamar os técnicos de alto nível e os engenheiros exigidos para a operação dos equipamentos cada vez mais sofisticados) é o reforço da alienação, a desvalorização – e muitas vezes desmoralização – do trabalho da grande maioria dos operários menos qualificados. Isto para os que têm a sorte de estar empregados; para os demais, esse pesadelo se traduz na dificuldade crescente de encontrar trabalho, levando-os a formas cada vez mais degradadas de subemprego.
Este é o quadro que progressivamente se apresenta mais nítido no capitalismo desenvolvido, de uma evolução que distorce e degenera a associação entre ciência e produção material, torna ameaçadores os ganhos de produtividade cada vez mais assombrosos que resultam do progresso no domínio do homem sobre a natureza. Isso resulta da natureza do capitalismo, onde a apropriação privada das riquezas produzidas pelos trabalhadores e o império da acumulação impedem que os ganhos de produtividade obtidos pela sociedade sejam compartilhados socialmente, beneficiando a todos os homens. Contudo, a mesma base técnica que, sob o capitalismo gera desemprego, miséria, alienação – e uma população excedente que parece não parar de crescer –, poderia levar ao emprego de mais gente, exigindo uma contribuição menor de cada um em termos de tempo de trabalho, permitindo que – livres das pesadas obrigações da sobrevivência – todos os homens pudessem dedicar-se ao desenvolvimento de suas potencialidades individuais e
humanas, como Marx já percebia em sua época. Referindo-se à Inglaterra, ele escreveu: "seus meios de poupar trabalho são colossais. Ainda assim, se amanhã o trabalho fosse limitado por uma medida racional, sendo adequadamente escalonado, conforme idade e sexo, para as diferentes camadas da classe trabalhadora, então a população trabalhadora disponível seria absolutamente insuficiente para levar avante a produção nacional em sua atual escala. A grande maioria dos trabalhadores ora improdutivos teria de ser transformada em produtivos".
Mas como não estamos sob o socialismo, e sim nas condições de produção do capitalismo, o desenvolvimento da força produtiva do trabalho se volta contra o próprio trabalhador. Assim, baseado em Marx, Fernando Henrique Cardoso escreveu em 1970 (quando ainda parecia levar o marxismo em conta) que as variações da população e a formação de uma superpopulação relativa se subordinam "à dinâmica da acumulação, que provoca mudanças periódicas ou reparte, simultaneamente, o capital em distintas órbitas de produção: 1) às vezes, a acumulação se dá por simples concentração, sem afetar a composição do capital, nem, portanto, o emprego; 2) outras vezes o aumento do capital vai unido à diminuição absoluta do capital variável ou da força de trabalho absorvida por ele; 3) em outras, ainda, o capital cresce sobre a mesma base técnica anterior, ocupando força de trabalho sobrante, em proporção ao seu crescimento; 4) por fim, pode ainda existir uma mudança na composição orgânica, que faz com que o capital variável se contraia. Apesar dessas variações – que, repito, nada têm a ver com o tamanho da população – a tendência para Marx era nítida: quanto mais maduro o capitalismo, mais repulsão de trabalhadores".
“Não a terra, mas o capitalismo é que esgota sua capacidade de receber gente”.
O capitalismo parece cada vez mais aceleradamente esbarrar em seus limites. As tendências do capitalismo mais avançado, o capitalismo de nossos dias, parecem mostrar isso. A aplicação da alta tecnologia à produção industrial torna os trabalhadores diretos cada vez mais supérfluos e impele grandes massas ao desemprego, ao subemprego ou ao trabalho improdutivo. Ao mesmo tempo, concentra riquezas nas mãos dos privilegiados que ocupam o topo da estrutura social, alargando o fosso entre os poucos que têm muito, e a enorme massa cada vez mais carente de bens elementares para uma sobrevivência digna – para não dizer as multidões dos países pobres, obrigadas a vegetar na miséria e na ignorância.
O capitalismo é incapaz de atender às necessidades do conjunto dos trabalhadores; não pode sequer fornecer-lhes a possibilidade de empregar sua força produtiva para obter os meios necessários à vida. Os neomalthusianos, conservadores e ambientalistas, os ideólogos do capitalismo confessam inconscientemente essa impotência quando clamam pela necessidade de contenção do crescimento das populações pobres. Nesse sentido, os cientistas da Academia Nacional de Ciências, dos EUA, e da Royal Society, de Londres, duvidam que a ciência possa enfrentar os problemas que o crescimento da população poderá provocar. Em declaração conjunta eles afirmaram que se a população mundial "continuar crescendo e a atividade humana no Planeta não se modificar, a ciência e a tecnologia não poderão impedir uma degradação irresistível do meio ambiente e o empobrecimento da maior parte da Terra".
Em parte eles têm razão. Suas limitações ideológicas impediram-lhes completar o diagnóstico. Não é a Terra que está esgotando sua capacidade de receber mais gente; é o sistema capitalista que cada vez mais não dá conta de suprir nem em níveis mínimos as necessidades das populações por ele dominadas, e faz sobrar cada vez mais gente. Deter o crescimento da população torna-se então essencial para a segurança e manutenção do capitalismo. Seus ideólogos e propagandistas precisam, a todo custo, evitar que as massas pobres se multipliquem, pressionem por trabalho e meios de vida e coloquem, assim, em risco o já precário equilíbrio mundial desse modo de produção ultrapassado, injusto e incapaz de abrir novos horizontes para o crescimento dos homens.
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A opinião de Marx
Vale a pena ver mais de perto o que Marx pensa a respeito: "Como a demanda de trabalho não é determinada pelo volume do capital global, mas por seu valor variável, ela caiu progressivamente com o crescimento do capital global ao invés de, como antes se pressupôs, crescer de modo proporcional a ele".
"Esse decréscimo relativo de sua composição variável, acelerado pelo crescimento do capital global, e que é mais acelerado que seu próprio crescimento, aparece, por outro lado, inversamente, como crescimento absoluto da população trabalhadora sempre mais rápido do que o capital variável ou seus meios de ocupação. No entanto, a acumulação capitalista produz constantemente – e isso em proporção à sua energia e às suas dimensões – uma população trabalhadora adicional relativamente supérflua ou subsidiária ao menos no que concerne às necessidades de aproveitamento pelo capital".
"Em todas as esferas, o crescimento da parte variável do capital, e portanto do número dos trabalhadores ocupados, está sempre ligado a fortes flutuações e a produção transitória de superpopulação, quer agora esta assuma a forma mais notável de repulsão de trabalhadores já ocupados, quer a menos aparente, mas não menos efetiva, de absorção dificultada da população trabalhadora adicional pelos canais costumeiros. Com a acumulação do capital produzida por ele mesmo, a população trabalhadora produz, portanto, em volume crescente, os meios de sua própria redundância relativa. Essa é uma lei populacional peculiar ao modo de produção capitalista". Ironicamente, a dinâmica do capitalismo parece ver razão na afirmação de que os pobres são responsáveis por sua própria pobreza: é o desenvolvimento da força produtiva dos trabalhadores que cria as condições que os tornam cada vez mais supérfluos no processo de produção. "Se uma população trabalhadora é produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com base no capitalismo, essa superpopulação torna-se, por sua vez, a alavanca da produção capitalista.
Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital, de maneira tão absoluta, como se ele o tivesse criado à sua própria custa. Ela proporciona às suas mutáveis necessidades de valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independente dos limites do verdadeiro acréscimo populacional", dando à exploração capitalista a "liberdade de ação" que o mero crescimento natural da população não oferece. A existência de um exército industrial de reserva permite ao capital superar essa barreira natural. Além disso, "a condenação de uma parcela da classe trabalhadora à ociosidade forçada em virtude do sobretrabalho da outra parte, e vice-versa, torna-se um meio de enriquecimento do capitalista individual e acelera, simultaneamente, a produção do exército industrial de reserva numa escala adequada ao progresso da acumulação social." (O Capital, Livro Primeiro, Cap. XXIII, seção 3: "Produção progressiva de uma superpopulação relativa ou exército industrial de reserva").
EDIÇÃO 27, NOV/DEZ/JAN, 1992-1993, PÁGINAS 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33