A principal consequência internacional da Revolução Russa de 1917 pode ter sido, ironicamente, favorecer o desenvolvimento da democracia burguesa no Ocidente capitalista – esta tese, defendida pelo historiador Eric Hobsbawn, aparece desenvolvida com detalhes num dos ensaios do livro Depois da Queda – o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo, recém-editado pela Paz e Terra. Organizado por Robin Blackburn, editor da New Left Review, o livro traz ensaios de alguns dos mais eminentes intelectuais que se têm dedicado a estudar a queda dos regimes revisionistas do Leste europeu, como Norberto Bobbio, Hans Magnus Enzensberger, André Gorz, Jurgen Habermas, Fredric Jameson, Ralph Miliband, Edward Thompson, Diane Elson, além de Hobsbawn (que comparece com dois ensaios) e Blackburn.

Esse elenco de notáveis oferece uma boa mostra do debate que os acontecimentos de 1989 suscitou. Bobbio, por exemplo, diz: “o fracasso não é apenas dos regimes comunistas, mas da revolução inspirada pela ideologia dos comunistas”. Habermas, por sua vez, pensa que o único socialismo possível é uma variação do capitalismo. “As sociedades complexas”, escreve ele, “não podem se reproduzir, a menos que preservem intacta a lógica da auto-regulagem de uma economia regida pelos mercados”. Isto é, para ele, uma sociedade complexa jamais deixará de ser capitalista, já que “economia regida pelos mercados” significa economia baseada na produção de mercadorias, e esta economia tem um nome: capitalismo. Apesar disso, seu ensaio não pode ser desprezado, pois faz uma útil resenha das principais interpretações das transformações ocorridas no Leste.

A nova ordem mundial erigida sobre as ruínas no muro de Berlim é o tema de Fredric Jameson, para quem a falência do bloco soviético não significa o fracasso do socialismo – já que o sistema soviético não podia ser considerado socialista, pensa ele. Foi, na verdade, um bem sucedido esforço de modernização e construção de uma sociedade industrial, cujo resultado poderia ter evoluído para o socialismo. Além disso, pensa ele, esses acontecimentos estão ligados à crise do capitalismo ocidental: “se não se pode dizer que o socialismo fracassou, também não se pode dizer, com base em qualquer leitura significativa do sistema de mercado enquanto tal, que o capitalismo triunfou.

Entre os ensaios deste livro, porém, destacam-se o de Blackburn e os de Hobsbawn. Blackburn resenha o debate que a Revolução Russa provocou entre os socialistas desde os primeiros tempos. Recorda que as críticas de Kautsky à estratégia bolchevique centrava-se no que tal estratégia “implicava de sinistro para o desenvolvimento cultural e político dos trabalhadores”. Mostra como Martov, o líder menchevique, aceitou a Revolução de Outubro, “mas atacou violentamente o ‘terrorismo político’ e a ‘utopia econômica’ das políticas bolcheviques”. Apesar disso, diz ele, Martov tentou – ao contrário de Kautsky – estabelecer um modus vivendi com os bolcheviques, durante a guerra civil. Kautsky não chegou nem mesmo, diz ele, a apreender “adequadamente a modernidade do sistema soviético”.

Mas é na resenha do debate da planificação do mercado e da democracia que o ensaio de Blackburn se destaca, ao recordar o esforço de vários economistas e pensadores marxistas e socialistas como Bukharin, Trotsky, Oskar Lange, H. D. Dickinson, Otto Neurath, Eduard Heimann, Karl Polanyi, entre outros, para encontrar mecanismos de regulação econômica – um debate que envolveu inclusive pesos pesados na economia burguesa como Leopold von Moses e Friedrich von Hayek.

Hobsbawn, por sua vez, diz: “é muito mais fácil ver 1989 como uma conclusão do que como um começo” – trata-se da conclusão de uma etapa da história do socialismo. Uma etapa que, pelo simples fato de demonstrar o funcionamento de uma alternativa econômica e social do capitalismo, mantinha o ocidente capitalista na defensiva, levando a burguesia a fazer concessões políticas e sociais aos trabalhadores. “Talvez a história, em sua ironia”, diz ele, “decidirá que a realização mais duradoura da Revolução de Outubro foi a de tornar o mundo desenvolvido novamente seguro para a democracia burguesa”. Um mundo capitalista que viveu, neste século, uma verdadeira montanha russa política e social, lembra Hobsbawn: “duas guerras mundiais, seguidas por dois surtos de revolução global, levando ao colapso indiscriminado de velhos regimes políticos e a instauração do poder comunista, primeiro sobre um sexto do território mundial e mais tarde sobre um terço da população mundial, e a dissolução de vastos impérios coloniais construídos antes e durante a era imperialista”. Viveu também uma crise profunda como a de 1929, na qual as economias capitalistas quase foram ao colapso, enquanto a URSS atravessou imune a tormenta.

Assim, pensa Hobsbawn, o “principal efeito de 1989 é que o capitalismo e os ricos pararam, por enquanto, de ter medo” – apesar da incapacidade demonstrada por ultraneoliberais, como Reagan e Thatcher, em “liquidar ou mesmo reduzir de forma significativa as despesas com a previdência social” nos EUA e na Grã-Bretanha. Nesse quadro, cabe aos socialistas, pensa Hobsbawn, encontrar um sistema que combine mercado e interesse social.

EDIÇÃO 28, FEV/MAR/ABR, 1993, PÁGINAS 69