O sistema distrital no Brasil
A simples descrição de uma figura ou de um instituto eleitoral não é suficiente para apreendermos todo o seu alcance e suas repercussões na vida de um povo. Apenas os políticos experimentados conseguem avaliar num relance as mudanças que as alterações no sistema eleitoral podem provocar na estrutura do poder. Por isso, embora nem sempre o povo se sensibilize pelas mudanças na legislação eleitoral, são elas as que mais atraem a atenção dos políticos.
Na história dos países democráticos não houve revolução profunda que não tenha sido precedida ou acompanhada de reforma eleitoral. Mussolini, por exemplo, receando a unidade das oposições, efetuada após o assassinato do deputado socialista Matteoti, instituiu na Itália a eleição majoritária, em distritos uninominais. Essa reforma, de 1925, não chegou a ser aplicada, porque em novembro de 1926 foram extintos os partidos de oposição. Em maio de 1928 aboliu-se o sufrágio universal, extinguiu-se a representação popular e implantou-se um sistema de representação corporativa.
Só podemos compreender o sistema distrital se medirmos todas as consequências da sua implantação. No capítulo anterior já mencionamos três dessas consequências: o reforço do status quo, a queda na representação dos partidos menores, o estreitamento do quadro partidário. Nos capítulos que seguem vamos conversar sobre esses e outros efeitos do sistema distrital, situando-os dentro da história brasileira e da experiência de outros povos. Desde já, fixemos o seguinte: nem sempre nós enxergamos a relação de causa e efeito entre fenômenos distanciados entre si, ou pertencentes a situações aparentemente distintas.
Vou dar um exemplo. A Constituição brasileira trata dos partidos políticos em seu artigo 17, dizendo ser livres a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana.
Diante desse enunciado constitucional parece que a existência de partidos políticos depende unicamente do livre jogo das forças sociais; entretanto, a legislação eleitoral, que fica abaixo da Constituição, cria na prática as condições de existência e sobrevivência de partidos políticos. O sistema eleitoral condiciona o sistema partidário e pode obliquamente, sem que o notemos, fulminar grupos, propostas ou partidos políticos. Se não estivermos atentos para esse nível de causalidade, a malícia do legislador eleitoral pode ofender, sem o percebermos, o princípio abstrato da Constituição: poderemos pensar que o quadro partidário existente resulta do livre jogo das tendências sociais; partidos natimortos são partidos que não são vistos; mas nem sempre terão morrido de morte natural.
O sistema distrital, estreitando o quadro partidário, é, em última instância, um sistema que objetiva a formação de blocos majoritários no Parlamento. Este é o objetivo real dos distritalistas, embora nem sempre, ou raramente, tragam o argumento à discussão. A razão é que dificilmente esse argumento seria aceito pelos eleitores; pesquisa efetuada no Reino Unido, em 1976, pela Comissão de Reforma Eleitoral (The Hansard Society, 1976: The report of the Comission on Electoral Law, cit. por Dieter Nohlen), mostrou, entre outras conclusões, que 25% dos eleitores não votam nos partidos favorecidos pelo sistema eleitoral; mais de 60% dos entrevistados – ao tomar conhecimento de qual seria a representação de cada partido na Câmara dos Comuns, caso as cadeiras fossem distribuídas proporcionalmente – manifestaram preferência por este sistema. Outra razão é que, se explicitado o objetivo real dos distritalistas, colocaria-se em xeque a constitucionalidade da reforma que pretendem. Em países cujas Constituições consagraram o pluralismo político e o pluralismo partidário, sistemas eleitorais determinantes de maioria seriam inconstitucionais.
“O chefe republicano Júlio de Castilhos era sistematicamente derrotado no seu distrito”.
Todos nós sabemos que o sistema eleitoral do Império era restrito e antidemocrático, a começar pelo voto censitário; ou seja, só podia votar quem tivesse bens ou renda acima de um determinado nível. O processo eleitoral mal disfarçava o que existia na realidade, que era uma verdadeira nomeação dos deputados; os críticos mais suaves desse sistema diziam que o Imperador, afinal de contas, era quem escolhia os representantes da nação. Vários fatores, entre eles a inexistência de uma verdadeira Constituição, contribuíram para a falta de representatividade. Um deles era o voto distrital – adotado com a chamada Lei dos Círculos (Lei nº 842, de 19-09-1855); a Lei do Terço (Lei nº 2.675, de 20-10-1875) que pretendia garantir às minorias a terça parte da representação – não vingou e foi revogado pela Lei 3.029, de 09-01-1881. A Lei dos Círculos dividira as províncias em distritos uninominais; a segunda Lei dos Círculos (Lei 1.082, de 18-09-1860) alargara os distritos, dando a cada um três deputados. A Lei Saraiva (1881) restabeleceu os distritos uninominais.
Durante o longo período imperial sofremos a inexistência de partidos verdadeiros. Os assim chamados partidos conservador e liberal, que se alternavam no poder, eram grupelhos minoritários, que somente sobreviviam pelos favores do monarca; toda oposição verdadeira ou proposta alternativa fora eliminada através da repressão, principalmente nas lutas logo após a independência, quando nasceu o Partido Republicano, que não teve condições de se constituir pela via eleitoral e parlamentar; a primeira eleição realizada após 1889 deu aos republicanos a vitória nos mesmos distritos onde anteriormente eram sempre esmagados; na última eleição efetuada para a Câmara dos Deputados do Rio Grande do Sul, durante o Império (agosto de 1889), os liberais (partido da situação) fizeram seis deputados, enquanto os conservadores e os republicanos não elegeram nenhum; o grande chefe republicano, Júlio de Castilhos, que viria na República a comandar o Rio Grande do Sul, concorria ao Parlamento imperial no mesmo distrito do chefe liberal Silveira Martins, onde era sistematicamente derrotado.
A República Velha também se caracterizou pela falta de representatividade e pela hipocrisia do sistema eleitoral. Costuma-se falar muito nas “atas falsas”, que a Revolução de 1930 prometeu exterminar. Mas o que pervertia o sistema eleitoral da República Velha era menos a fraude na qualificação dos eleitores, na recepção e apuração dos votos, do que no “reconhecimento” do seu diploma, ou “verificação” dos seus poderes. Eleito, o candidato era diplomado ao próprio distrito e, para tomar posse, apresentava seu diploma à Câmara dos Deputados. Por ser notória a fraude e coação no processo eleitoral, a Câmara instituía uma comissão com o objetivo declarado de recusar o candidato escolhido tortuosamente; ora, o que fazia essa Comissão era admitir apenas os candidatos que lhe conviessem (…) O deputado gaúcho Assis Brasil, o maior defensor da reforma eleitoral e instauração do sistema proporcional dizia: “No regime que botamos abaixo com a Revolução, ninguém tinha a certeza de fazer-se qualificar, como a de votar (…) Votando, ninguém tinha a certeza de que lhe fosse contado o voto (…) ninguém tinha a segurança de que seu eleito haveria de ser reconhecido através de uma apuração feita dentro desta Casa e por ordem, muitas vezes superior”. O movimento de 1930 empenhou-se em cumprir a promessa de reforma eleitoral, que Getúlio Vargas reafirmou em seu discurso de posse na Presidência da República.
“Castelo Branco queria o voto distrital. Não precisou. O AI-2 extinguiu os partidos políticos”.
O novo código eleitoral (Dec. 21.076, de 24-02-1932), de cuja redação participou Assis Brasil, adotou o princípio da representação proporcional na eleição para a Câmara dos Deputados, com diplomação dos candidatos que, na lista partidária, alcançassem o quociente. Portanto, somente com a Revolução de 1930, que criou a Justiça Eleitoral, extinguiu o processo de “reconhecimento”, alargou o sufrágio e instituiu o voto feminino, foi abolido entre nós o sistema distrital. O sistema proporcional só começou a funcionar efetivamente com a Constituição de 1946 e logo produziu frutos: partidos de âmbito nacional, um quadro pluripartidário, a progressiva democratização na representação. Não cessaram, porém, as tentativas retrógradas de restauração da eleição distrital, entre as quais podemos mencionar o anteprojeto Edgard Costa, elaborado por incumbência do ministro da Justiça (1958); o projeto de lei n. 1.036-63, do deputado Oscar Corrêa; o projeto de lei n. 2.152-64, do deputado Franco Montoro; o projeto de lei nº 280-77, do senador José Sarney.
Os projetos contemporâneos à Constituição de 1946 não podiam prosperar, tendo em vista ter sido acolhido, em seus artigos 56 e 134, o princípio da representação proporcional. (Deixei de incluir na relação acima o projeto n. 38-60, do senador Milton Campos, visto que, extremamente coerente com sua justificativa, o que ele propunha o voto distrital, e não a eleição distrital). O general Castelo Branco, ao assumir o comando da República na crista do golpe de 1964, pretendeu reformar a legislação eleitoral, criando a eleição por distritos, solicitou então ao Tribunal Superior Eleitoral um estudo nesse sentido. A comissão redatora desse estudo, presidida pelo ministro Vilas Boas, propôs a adoção do sistema distrital misto, com metade dos deputados eleita por distritos a outra metade mediante distribuição proporcional das cadeiras. Afinal, a reforma não se fez necessária; alcançou-se o mesmo objetivo ao modo como Alexandre cortara o nó górdio: o Ato Institucional n. 2, de 1965, extinguiu os partidos políticos existentes, e criou um artificial sistema bipartidário; é sabido como, para completar o número de deputados necessários à montagem da oposição consentida (o MDB), Castelo Branco precisou rogar a deputados da situação, abrigados na Arena, que se transferissem para o MDB.
A Ordenação de 1967 manteve a referência à representação proporcional, em seu art. 143. Ao outorgarem a Ordenação de 1969, os ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, assim fizeram constar em seu art. 148: “O sufrágio é universal e o voto direto e secreto, salvo nos casos previstos nesta Constituição; os partidos políticos terão representação proporcional total ou parcial, na forma que a lei estabelecer”. Reabriu-se, assim, a temporada de caça à representação democrática. O bipartidarismo forçado veio a ser extinto somente em fins de 1979. Deixara de interessar, ao governo castrense, a existência de um sistema partidário polarizado, em que o descontentamento do povo o levasse a votar em massa na oposição.
“Ibrahim Abi Ackel criou comissão para fazer anteprojeto instituindo voto distrital misto”.
Por que, entre 1969 e 1979, sendo permitida constitucionalmente a adoção do sistema distrital, e havendo vários projetos nesse sentido no Congresso, não se aproveitou a oportunidade para instaurá-lo? É que, adotado esse sistema durante a ditadura, ele teria conduzido à extinção do MDB; o regime perderia, com isso, importante elemento propagandístico: a existência de uma oposição consentida – tanto quanto a de algo que se chamara de “Constituição” – criava uma aparência de Estado democrático de direito.
No lugar da Arena inventou-se o PDS. No lugar do MDB, erigiu-se o PMDB. A relativa liberdade de criação de partidos políticos levou, entretanto, como desejava o governo, ao fracionamento da oposição. No início de 1982, porém, o PP fundiu-se com o PMDB, tornando problemática a manutenção da maioria do PDS. Veio aí o “pacote de maio”, com a emenda constitucional n. 22 que, entre outras providências, acrescentou um parágrafo ao art. 148 da Ordenação: “igualmente na forma que a lei estabelecer, os deputados federais e estaduais serão eleitos pelo sistema distrital misto, majoritário e proporcional”. Em 30-07-1982, o ministro da Justiça, Ibrahim Abi Ackel, criou a comissão para elaborar anteprojeto de lei instituindo o voto distrital misto. O projeto respectivo (n. 261-83) foi enviado ao Congresso no mês de março de 1983; ele previa: a) a divisão do território dos Estados em distritos e subdistritos para a eleição, respectivamente de deputados federais e de deputados estaduais; b) os distritos seriam uninominais e seu número, em cada Estado, igual à metade dos lugares a preencher; c) a demarcação dos distritos levaria em conta: a equivalência aproximada do número de eleitores e de habitantes; as condições sócio-econômicas semelhantes e a contiguidade de área, preservada, quanto possível, a unidade municipal; respeito aos limites das zonas eleitorais; facilidade de comunicações, estradas e meios de transporte na área do distrito; d) a divisão distrital de cada Estado só poderia ser alterada após o resultado e cada senso decenal. Esse projeto não chegou a ser votado; antes que se ferissem as eleições seguintes, previstas para 1986, Tancredo Neves foi escolhido presidente, pelo Colégio Eleitoral; teve início o que na época se chamou de Nova República; o Congresso apressou-se em enterrar o chamando “entulho autoritário” e – até que se pudesse instalar a Constituinte – em expurgar da Ordenação de 1967-69 os seus vícios mais flagrantes. No dia 8 de maio de 1985 foi aprovado substitutivo do deputado João Gilberto a projeto de emenda constitucional; a emenda constitucional n. 25 daí resultante, dentre outras medidas que adotou, restabeleceu a eleição direta para presidente da República, extinguiu o processo de nomeação de prefeitos em municípios declarados de interesse da segurança nacional, restaurou o sistema pluripartidário, e extinguiu o sistema distrital previsto no art. 148 – parágrafo único da Ordenação.
Com exceção de um só, os projetos de lei referidos acima tentavam implantar o sistema distrital misto; vamos examiná-los em outro capítulo. Neste, resta examinar o único desses projetos que optava pelo sistema distrital puro, ou seja, o Projeto de lei n. 280-77, apresentado pelo senador José Sarney. Segundo ele, cada Estado seria dividido em tantos distritos quantos as vagas de deputado federal a preencher; assim, os distritos seriam uninominais; a demarcação dos distritos, a ser feita pelo Tribunal Superior Eleitoral, observaria os seguintes critérios: população, contiguidade e aspectos sócio-econômicos, a demarcação só poderia ser alterada após a realização de duas eleições sucessivas (praticamente, após oito anos).
** Advogado, professor da Faculdade Católica de Direito de Santos, foi Vice-Prefeito, pelo PSB, desta cidade e um dos advogados de acusação a Collor.
* Fragmentos do livro O que é voto distrital, de Sérgio Sérvulo da Cunha, publicado por Sérgio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1991, p. 17-22. Nossos agradecimentos ao autor e ao editor pela autorização para esta publicação.
EDIÇÃO 28, FEV/MAR/ABR, 1993, PÁGINAS 17, 18, 19