A busca infrutífera do gene de Caim
Nos últimos anos a discussão sobre a determinação genética do comportamento humano reapareceu com força. O crime, a violência, a inteligência, o homossexualismo, o machismo (e seu correlato, a “feminilidade”) são cada vez mais vistos como determinados geneticamente – numa repetição moderna de velhos argumentos aristocráticos do darwinismo social que, no começo do século, eram usados para justificar a superioridade racial dos homens de pele branca e, entre eles, o domínio das massas trabalhadoras por elites privilegiadas e arrogantes.
Essas teses foram reaparecendo aos poucos. Publicado originalmente em 1968, O Macaco Nu, de Desmond Morris, é um marco na vulgarização moderna dessas idéias. Trata-se de uma tentativa suspeita do ponto de vista científico, e bem sucedida do ponto de vista comercial, de apresentar o homem como um primata que, embora um pouco mais evoluído do que seus primos irracionais, continua dominado pelos instintos e pela determinação genética, como eles. Desde então, O macaco nu tem tido inúmeras reedições, e uma grande aceitação entre leitores desavisados.
Nos anos 1970, surgiu mesmo uma nova “ciência”, a sociobiologia, sistematizada pelo etologista Edward O. Wilson, da Universidade de Harvard, uma ideologia biológica que, empenhada em provar que todo comportamento humano é determinado geneticamente, como nos animais, deu uma roupagem moderna ao velho darwinismo social.
A lista iniciada com O macaco nu contém, hoje, livros como A anatomia do Amor: A história natural da monogamia, do adultério e do divórcio, da antropóloga norte-americana Helen Fischer, para quem há uma lei natural, inscrita em nossos genes, que molda o relacionamento afetivo e o acasalamento entre os seres da espécie humana. O livro desse gênero é Personas sexuais, de Camille Paglia, que considera os papéis sexuais, o machismo e a feminilidade, decorrentes apenas de nossa natureza biológica, e não, também, das relações culturais, históricas, estabelecidas entre homens e mulheres; relações condicionadas pelas peculiaridades das épocas e dos lugares onde ocorreram. Em 1985, o norte-americano Richard Hermstein, psicólogo na Universidade de Harvard, publicou o livro Crime e natureza humana, onde expôs a tese de que muitos aspectos do comportamento criminoso decorreram não só de condicionamentos sociais, mas também de características biológicas. Hermstein é um dos que pensam que os negros são intrinsecamente mais propensos ao crime que os brancos.
“Para o ponto de vista neoconservador, o comportamento entre os homens é programado geneticamente”.
Pode-se citar, também nesta relação de neoconservadores, o livro O apogeu e a queda do terceiro chimpanzé, do biólogo norte-americano Jared Diamond, que sugere a tese de que a guerra, o estupro, o infanticídio, o racismo e o genocídio fariam parte de nossa carga genética. Seu livro recebeu, em 1992, o prêmio Rhone-Polenc, dado na Grã-Bretanha ao melhor livro de ciência. Por sua vez, biólogos norte-americanos como Michael Raleigh, da Universidade da Califórnia, e Robert Sapolsky, pesquisador da Reserva Nacional Maasai Mara, no Quênia, dizem que a capacidade de liderança entre os macacos (e, por extensão, entre os homens) é determinada pelo nível hormonal e pela presença de substâncias químicas (como a serotonina) elaboradas no cérebro – sugerem, portanto, que a capacidade de liderança é também determinada biologicamente.
Este ponto de vista neoconservador que procura uma predisposição inata para o comportamento humano, inscrita nos genes de cada um nós, simplesmente desconsidera o papel de fatores como o meio social, a cultura e a história particular de cada um dos grupos humanos.
O renascimento disfarçado do racismo e do darwinismo social, seja sob a forma da sociobiologia, seja sob a máscara de pesquisas genéticas do comportamento humano, foi nos anos 1960 uma resposta às lutas sociais que se acentuaram e aprofundaram na Europa e nos EUA. Trabalhadores imigrantes na Europa, negros, mulheres, estudantes, consumidores, ecologistas lutavam “contra o direito do capital privado de organizar a produção sem levar em conta o bem-estar público, e exigiam a regulamentação do processo produtivo pelo Estado”, afirma o biólogo Richard Lewontin, o psiquiatra Steven Rose e o psicólogo Leon Kamin, autores do livro Nous ne somme pas programmés – Génétique, Hérédité, Idéologie (“Não somos programados – genética, hereditariedade, ideologia”), uma crítica contundente ao determinismo biológico, em especial à sociobiologia. Esse pensamento se reforçou contra a crise dos modelos de organização social, não apenas no Leste Europeu, mas principalmente a crise dos países capitalistas desenvolvidos, onde, nos últimos anos, ela traduz-se no desemprego, no empobrecimento das populações, da degradação das condições de vida.
“Muitos vêem o destino escrito nos astros. Outros pensam que ele está na genética”.
A face visível e incômoda dessa desagregação social é o aumento da criminalidade, de formas anti-sociais de comportamento e ocupação, do uso de drogas etc.
A tentação de encarar esses fenômenos como determinados geneticamente, como uma inclinação mórbida inata de muitos indivíduos é forte. “Toda atividade científica ocorre dentro de um contexto social e objetividade científica perfeita não passa de uma quimera”, lembra o professor Ricardo Ferreira, pesquisador de biologia quântica na Universidade Federal de São Carlos. “Nas ciências ligadas ao comportamento humano, porém – linguística, psicologia etc – a ideologia do cientista raramente é desprezível e, em alguns casos, pode ser um favor importante em sua atividade científica”. Diz ele: “Muitas vezes o cientista não percebe, ou percebe mal a influência de sua ideologia em seu trabalho”. Outras vezes a ideologia do cientista leva-o mesmo à fraude, quando os resultados de suas observações contrariam convicções muito profundas.
Pesquisas norte-americanas recentes que procuram relacionar criminalidade e herança genética encaixam-se num desses casos de deformação da ciência por preconceitos ideológicos. Ao invés de avaliar criticamente o sistema social, procura-se mudar as pessoas, considerando-as, e não o meio onde sobrevivem, responsáveis por comportamentos tidos como anti-sociais. Recentemente, a revista Scientific American registrou iniciativas científicas nesse sentido, apoiadas pelo governo e por universidades. Em 1992, um programa de pesquisas foi idealizado pelo médico negro Louis W. Sulivan para estudar a violência entre os negros, que tem cinco vezes mais homicídios que os brancos, sendo essa a maior causa de morte entre jovens negros de 15 a 24 anos de idade. Esse programa previa a aplicação, em cinco anos, de US$ 400 milhões para esse tipo de pesquisa: cerca de 5% das verbas iriam para a pesquisa “biológica”, incluindo estudos sobre hormônios e neurotransmissores associados a comportamentos agressivos em animais e humanos.
“O racismo científico antigo desmoronou com o nazismo ao final da guerra”.
Ainda em 1992 estava prevista a realização de conferência intitulada Fatores Genéticos no Crime: Descobertas Usos e Implicações, na Universidade de Maryland, cujo prospecto referia-se ao “aparente fracasso do enfoque social para o crime” e sugeria a realização de pesquisas genéticas para o desenvolvimento de métodos capazes de identificar – e tratar quimicamente – criminosos em potencial.
A National Academy of Sciences, dos EUA, por sua vez, publicou em novembro de 1992 o relatório “Compreender e Prevenir a Violência”, sugerindo a realização de mais pesquisas desse tipo, incluindo investigações sobre marcadores bioquímicos e tratamentos com drogas para comportamentos violentos e anti-sociais, embora admita a escassez de evidências substantivas para a propensão ao crime per se.
A desenvoltura dos autores de iniciativas desse tipo choca-se, felizmente, com fortes resistências. Frederick K. Goodwin, diretor do National Institute of Mental Health, por exemplo, abriu a polêmica contra a pesquisa proposta por Sulivan. A conferência de Maryland provocou a fúria de lideranças e entidades de defesa dos direitos civis, e os protestos provocaram o adiamento do evento. Peter Breggin, psiquiatra de Bethesda, por sua vez, denunciou que os EUA estão planejando um programa de larga escala para segregar crianças negras e tratá-las com drogas. Nessa linha, uma revista negra, em Washington, assegura: o “governo dos EUA quer sedar os jovens negros”.
Diane B. Paul, cientista política da Universidade de Massachussetts, diz que o debate deve intensificar com o avanço de pesquisas dessa espécie. “Nós estamos cada vez mais focalizados na genética”, diz ela, lembrando que as recentes descobertas de genes responsáveis por inúmeras doenças podem induzir muitas pessoas a procurarem semelhante origem para comportamentos considerados anti-sociais. Ela é cética sobre as pesquisas associando genes e comportamento. Paul lembra que, no passado, pensava-se que o comportamento fosse determinado pelos astros – e muita gente acredita nisso ainda hoje. Naquela época, essa crença atendia a uma necessidade social de encarar o comportamento humano como inato, isto é, submetido a leis eternas e invariáveis. Com a descoberta da genética, esse papel pode estar sendo atribuído à herança biológica. Como diz James D. Watson, descobridor da dupla-hélice do ADN e, assim, um dos pais da revolução na biologia e, hoje, um dos cabeças do Projeto Genoma Humano: “(…) nós costumávamos pensar que nosso destino estava nas estrelas, e agora nós sabemos que ele está em nossos genes”. “O racismo e o darwinismo social ressurgem, na forma de determinismo biológico”.
No final do século passado, o criminologista italiano Cesare Lombroso ficou famoso com sua teoria do criminoso nato, caracterizado por traços anatômicos, fisiológicos e patológicos. Francis Galton e Karl Pearson, também na passagem do século XIX para o século XX, criaram a teoria da eugenia, promovendo campanhas para a reprodução seletiva dos seres humanos, com o objetivo de impedir a degradação da raça pelo mestiçamento. Um dos resultados práticos dessas idéias foi a aplicação, por muitos estados norte-americanos, durante a década de 1930 – com a aprovação da Suprema Corte –, da esterilização de condenados para reduzir o crime nas gerações seguintes. Esse pensamento “científico” legitimou, também, a tragédia que foi a perseguição, pelo nazi-fascismo, das chamadas raças inferiores.
Na sociedade européia agressiva, expansionista e cindida em classes radicalmente antagônicas daquela época, essas idéias encontravam campo fértil para florescer, e seu status científico era contestado por poucos.
Hoje, a busca do gene de Caim, que poderia ser responsável pelo comportamento criminoso – da mesma forma como as teses que procuram na biologia explicações para fenômenos que são sociais – não encontra mais aquele ambiente inconteste, sendo recusado por grande parte dos cientistas. Com a derrota do nazismo na Segunda Grande Guerra o status científico do racismo desmoronou, embora não tenha sido eliminado completamente. Muitos cientistas e pensadores proclamaram, desde então, a inconsistência científica das pesquisas que sustentavam o inatismo do comportamento do homem.
Descobriu-se que a base de muitos dos principais estudos dessa corrente era formada por investigações fraudulentas. Samuel G. Morton, antropólogo norte-americano, desenvolveu no século passado argumentos “científicos” mostrando que a capacidade craniana – e, portanto, pensava-se então, a inteligência – dos negros, índios e asiáticos, eram menores do que a dos brancos. Foi apenas cem anos depois que o paleontólogo Stephen Jay Gould descobriu que Morton havia fraudado sua experiência. Como os homens têm estatura média maior do que as mulheres, sua capacidade craniana média também é maior. Assim, ele usou metade de crânios masculinos quando mediu os brancos, e apenas um terço de seus crânios masculinos para os negros. Além disso, preencheu os crânios não brancos com sementes de mostarda (que são leves, e por isso não compactam bem, dando como resultado um volume menor). Os crânios de brancos, porém, foram cuidadosamente preenchidos com chumbo de caça. Ao corrigir esses desvios, os dados mostram uma capacidade craniana uniforme para todas as raças.
Outro fraudador foi Sir Cyrill Burt, autor de pesquisas que tiveram grande influência no meio científico “provando” que a inteligência é transmitida hereditariamente; descobriu-se, contudo, que os dados de seu estudo, bem como os próprios pesquisadores e pesquisados, foram inventados por ele.
“O ponto comum a todas as manifestações políticas recentes do determinismo biológico é que elas se opõem diretamente às reivindicações políticas e sociais daqueles que não possuem o poder”, dizem Lewontin, Rose e Kamin. Eles enfatizam, assim, a natureza propriamente ideológica e não científica dessas teses. O determinismo biológico, dizem eles, não morreu, como se viu com a iniciativa norte-americana contra a violência. Ele é “um modo de explicação poderoso para as desigualdades de status, riqueza e de poder nas sociedades capitalistas industriais contemporâneas”. É a expressão, em nível teórico e ideológico, dos mesmos preconceitos que animam o nacionalismo que ressurge em nosso dias e o racismo que o acompanha.
“Reduzir o homem à expressão animal e genética significa eliminar o que caracteriza o ser humano”.
Ao reduzir o homem à sua expressão animal e genética os deterministas eliminam aquilo que caracteriza propriamente o ser humano, que é resultado da conjunção de cultura e biologia. “A humanidade não pode ser separada de sua própria biologia”, lembram Lewontin, Rose e Kamin. Os traços dos indivíduos humanos não podem existir isoladamente. Sua herança genética, sem o contato social, não poderá jamais ser desenvolvida completamente. Sem o trabalho, a interação com os outros homens e o aprendizado, o potencial genético que leva à formação do cérebro humano e ao pensamento nunca se desenvolveria. Por outro lado, a natureza dessa vida social é, por sua vez, consequência da natureza biológica, animal, genética, que nós, seres humanos, também carregamos.
Se fosse possível separar estas duas características (uma biológica e genética, outra cultural e histórica) que se relacionam dialeticamente nos seres humanos, o resultado seria a criação de dois seres hipotéticos que não são humanos, por mais que os deterministas biológicos pensem o contrário.
BIBLIOGRAFIA
FERREIRA, Ricardo, “Determinismo biológico e integridade científica”, Revista Civilização Brasileira, n. 21, março de 1980.
SACARRÃO, Gemano da Fonseca, “Biologia e Sociedade”, vol. I, Crítica da Razão Dogmática, Lisboa, Publicações Europa-América, 1989.
The Economist, 26-12-1992, artigo “Nature or Nurture?”.
Scientific American, fevereiro de 1993, artigo “Genes and Crime”.
LEWONTIN, Richard C.; ROSE, Steven; KAMIN, Leon J. Nous ne sommes pas programmés – Génétique, Hérédité, Idéologie, Editions La Découvert, Paris, 1985 (Original ingês: Not on our genes, Biology, ideology and human nature).
EDIÇÃO 29, MAI/JUN/JUL, 1993, PÁGINAS 67, 68, 69